60 anos entre silêncios e gritos

Lembrar o 1° de abril de 1964 não é falar de algo restrito a um momento histórico, mas de uma ferida de memória que ainda permanece viva neste país porque não foi tratada com o devido cuidado

Por Táscia Souza*

 a tarefa do tradutor de antígona (tradução buana)

 antígona, mulher:
em grego teu nome significa algo tipo contra o nascerou ao contrário de nascer
mas o que existe ao invés de nascer?
não que a gente queira entender tudo
ou mesmo entender alguma coisa
a gente quer entender uma outra coisa
eu fico voltando pra brecht
que te fez passar a peça toda com uma porta colada nas costas
uma porta tem vários significados
eu fico parada diante dessa porta
e o estranho é, tu fica do lado de fora da tua porta também
a porta não tem parte de dentro
ou se tiver, tu és a pessoa que não pode entrar
porque pra família que vive lá, as coisas deram bem errado
ter um pai que é também teu irmão
significa ter uma mãe que é tua avó
uma irmã que é ao mermo tempo tua sobrinha e tua tia
e um outro irmão que tu ama tanto que tu quer pegar ele
coxa com coxa na cova
ou ao menos você diz que quer, bem no comecinho da peça
mas ninguém fala disso de novo, depois
e como tu sempre exagera! meu pai me dizia
e aqui bora enfiar uma nota de hegel chamando a mulher de a eterna piada da comunidade
quão a sério a gente pode te levar?
tu és “antígona entre duas mortescomo lacan diz
ou uma paródia da lei e da língua de kreon tão judith butler
que inclusive encontra em você “a ocasião para um novo campo do humano”?
e mermo assim, um exemplo de intelecto masculino e senso moral
é o julgamento de george eliot, enquanto que para vários estudiosos você
(talvez previsivelmente)
soa como uma terrorista
e zizek te compara afetadamente com tito
o líder iuguslavo que disse não! pra stálin em 1942
falando nisso, tu causasse uma boa impressão no alto comando nazista
e ao mesmo tempo entre os líderes da resistência francesa
quando eles todos se sentaram na plateia
da antígona de jean anouilh
noite de estreia paris 1944: eu não sei a cor dos teus olhos
mas posso imaginar tu girando eles com tédio
bora voltar pra brecht, talvez ele tenha sido o que melhor te entendeu
carregar a própria porta faz de alguém
um sujeito desastrado, cansado e estranho
por outro lado, pode ser proveitoso
se tu for para lugares que não têm uma entrada óbvia, tipo a normalidade
ou uma saída óbvia, tipo síndrome de estocolmo
bom problema teu
meu problema é entender tu e teu problema
cruzando do grego antigo para o inglês
tudo que se mantém escondido nesse povo, teu povo
crimes e horrores e anos tudo misturado, uma família, ou o que chamamos de família
uma das minhas primeiras memórias, escreveu john ashbery na new york magazine em 1980,
“é eu tentando descascar o papel de parede do meu quarto,
não porque tivesse irritado
mas porque parecia haver algo fascinante
atrás daqueles navios e planetas e telescópios
isso me lembra samuel beckett que mais tarde descreveu
suas aspirações em relação à língua
cavar um buraco atrás do outro, até que aquilo que se esconde escorra pelo furo
antígona, mulher: tu também és alguém de fé
com uma organização profundamente própria que se encontra logo abaixo daquilo que a gente vê ou diz
para citar kreon, tu és autônoma
uma palavra feita de autos (o self) e nomos (a lei)
autonomia soa como um tipo de liberdade
teu plano
“é costurar tu mesma na tua própria mortalha usando a linha mais fina
como traduzir isso?
eu me inspiro em john cage que, quando perguntado
como ele compôs 4’33”, disse
eu fiz gradualmente juntando muitos pedacinhos de silêncio
antígona, tu não aspira,
mais do que john cage, a uma condição de silêncio
tu queres é que a gente escute o som dos acontecimentos
quando tudo que for normal/musical/cauteloso/convencional ou piedoso nos for tirado
ai, irmã e filha de édipo
quem é que pode ser inocente ao dar rolê contigo?
nunca houve uma tábula rasa
a gente sempre ficou passado com a senhora
talvez tu conheça aquele poema de ingeborg bachmann
dos fim da vida dela que começa
perdi meus gritos
antígona, mulher,
eu tomo como a tarefa do tradutor a seguinte:
fazer com que tu nunca perca teus gritos
(Anne Carson)

O ponto de partida da minha tese de doutorado defendida em 2017 e transformada, pela Editora UFJF, no livro “Aqui (não) jaz: o trágico e os mortos sem sepultura da ditadura civil-militar brasileira”, foram os gritos de Antígona. E, apesar de esses gritos poderem ser  — e terem sido — escutados de maneiras distintas ao logo da história, por diferentes escritores, filósofos, governos (e nem todos com o sentido de resistência a uma opressão que eu escolhi enfocar aqui), vou ousar concordar com Anne Carson de que talvez Brecht tenha sido aquele que melhor a compreendeu. Não digo isso exatamente pela versão que ele escreve da tragédia de Sófocles, como se ela fosse melhor do que as outras (embora seja realmente incrível), mas especificamente pelo recurso brechtiano — que eu cito várias vezes no livro — de recorrer ao lá e então para falar do aqui e agora.

Vali-me desse recurso duplamente ao longo da pesquisa. Em primeiro lugar, ao tomar o mito de Antígona e do corpo insepulto como uma espécie de chave de leitura para K.: relato de uma busca, de Bernardo Kucinski, Antes do passado: o silêncio que vem do Araguaia, de Liniane Haag Brum, e Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva, obras bem contemporâneas — lançadas, respectivamente, em 2011, 2012 e 2015 — para falar dos traumas familiares provocados pelo desaparecimento forçado de seus entes queridos, mortos cujos corpos, mesmo passadas décadas, nunca foram entregues às respectivas famílias. Se em Antígona há uma inversão — o morto é condenado a ficar insepulto enquanto a irmã é condenada a ser encarcerada em um sepulcro ainda em vida —, acredito que a sensação dessas famílias também seja a de emparedamento, de uma condenação em vida, marcada pelo sentido de tragicidade, na concepção do George Steiner, de uma dor irremissível e irreparável.

Há, porém, um segundo uso dessa relação brechtiana: falar do lá e então da ditadura civil-militar brasileira e das violações de direitos humanos cometidas por ela — sequestro, tortura, assassinato, ocultação de cadáver — para refletir sobre o aqui e agora de um país em que parte da sociedade, mesmo que pareça pequena, ainda acredita que, durante os 21 anos de regime ditatorial, e sobretudo naquele período mais duro da repressão, pós-AI-5, o Estado — esse Estado que sequestrou, torturou (inclusive crianças), assassinou e escondeu corpos — na verdade “foi atacado e utilizou-se de seus agentes para se defender”. O aqui e agora em que, há 8 anos, um deputado federal homenageou um torturador no plenário da Câmara dos Deputados e, em vez de sair de lá preso, foi eleito presidente do Brasil. O aqui e agora de presos políticos que continuam existindo e de desaparecimentos forçados que continuam a acontecer sob a égide de governos democráticos, como aconteceu com o pedreiro Amarildo, “desaparecido” há 11 anos. O aqui e agora de um país em que um deputado, um conselheiro de um tribunal de contas e um ex-chefe da Polícia Civil são apontados como mandantes do assassinato de uma vereadora.

Para uma escritora-pesquisadora, publicar um livro deveria ser uma conquista extremamente feliz. E, apesar de ser mesmo uma conquista grandiosa, não é felicidade o que ela me proporciona. Este não é o livro dos meus sonhos. Sim, ele é exatamente aquilo que eu me propus estudar, sobre um assunto que me apaixona e me dói. E ele seria o livro dos meus sonhos em outras circunstâncias, se eu estivesse falando de algo restrito a um momento histórico, e não de uma ferida de memória que ainda permanece viva neste país porque não foi tratada com o devido cuidado. Construímos nosso processo de redemocratização à custa de uma tentativa de silenciamento dos gritos de nossas Antígonas. Mas esses gritos continuam soando, ainda que sufocados. Meu livro não é o livro dos meus sonhos não por ele, não pela temática, não pelo processo, muitas vezes doloroso, de escrita. Mas porque, nos meus sonhos, eu gostaria de ter falado apenas do lá e então, e não do aqui e agora.

Felizmente, diante de tantos retrocessos que vivemos nos últimos anos e de tanta exacerbação de pensamentos que flertam com o fascismo, ainda há resistência, ainda há tentativas de trazer à tona essas memórias e esses gritos silenciados que eu busquei ouvir, por meio das três narrativas: K., Ainda estou aqui e Antes do passado. Neste mês de março, foi noticiado que o estudante Honestino Guimarães, que foi desaparecido pela ditadura militar em 1973, terá sua expulsão da UnB revertida e será homenageado com o diploma acadêmico post mortem. Isso me lembrou que, sete anos atrás, quando defendi o doutorado, a PUC-SP também tinha promovido um ato para diplomação simbólica de cinco estudantes da universidade que foram assassinados pelo regime civil-militar durante a ditadura. Entre esses estudantes, está Cilon Cunha Brum, de quem eu falo no livro, cuja execução na guerrilha do Araguaia acaba de completar 50 anos. Na solenidade da PUC, o jornalista Lino Brum Filho, pai da escritora Liniane Haag Brum, autora de Antes do passado, fez um discurso emocionado dizendo que “Resistir é preciso. Temos que resistir. Mas esse ato aqui também tem um novo significado. Este ato é um ato de amor. De amor ao ser humano. De amor aos nossos irmãos. O desaparecimento de dezenas de brasileiros, que até hoje não foi esclarecido… é profundamente lamentável que numa cidade como esta nós tenhamos ainda a figura do desaparecido político. Em minhas andanças, nessa luta, tenho dito que nos referimos mal: não temos desaparecidos políticos. Temos mortos escondidos”.

Espero, com esse trabalho, ter contribuído, ainda que minimamente, para que, se os mortos permanecem escondidos, ao menos suas mortes não estejam. E que os gritos de suas Antígonas não se percam.

Foto da home: Arquivo Nacional/Correio da Manhã

*Táscia Souza é graduada em Comunicação Social, doutora em Estudos Literários pela UFJF e jornalista da Contee

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