9 de julho de 1932: reação ou revolução? | Por Marcos Celeste
Por Marcos Celeste*
A Revolução Constitucionalista de 1932 é comemorada no Estado de São Paulo como sendo um episódio histórico de resistência ao Período Varguista, iniciado em 1930 e que duraria até 1945. Os dois jornais paulistas de maior circulação, Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, enfatizam o caráter democrático e constitucionalista da resistência paulista. A abordagem deles, muitas vezes, é superficial, resumindo-se a expor os acontecimentos inusitados, as histórias dos personagens e no arrolamento das principais datas.
Para as ciências humanas, resistência e reação são dois conceitos distintos. Resistência ocorre quando um grupo político, comunidade, classe social, etc, se rebelam contra o Poder estabelecido e oficial ou por conta de sua repressão a estes mesmos grupos ou por conta dos não atendimentos aos interesses mais necessários dos mesmos. Reação, por sua vez, ocorre quando um determinado grupo político tenta recuperar sua influência e sua participação no cenário político do qual foi afastado ou perdera influência.
São Paulo, com o Varguismo, havia perdido influência no cenário político brasileiro. Após ter dominado as esferas nacionais de poder durante as três primeiras décadas do século XX, a elite paulista foi obrigada a aceitar um Presidente da República que chegou ao poder sem o seu apoio e o seu crivo. Com Vargas chega ao fim a República Velha, também chamada de República Café com Leite (alternância de poder entre paulistas, produtores de café, e mineiros, produtores de leite).
Após a Proclamação da República, os dois primeiros presidentes foram militares (Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto). Somente em 1894 é que teríamos o primeiro presidente civil: Prudente de Morais, sucedido por outro paulista, o presidente Campos Salles. Mais quatro paulistas ocuparam o cargo máximo da República brasileira. Dos 11 presidentes civis eleitos, seis foram paulistas e três mineiros (apoiados pelo Partido Republicano Paulista).
É importante contextualizar esse período. Os partidos políticos dessa época não representavam setores mais amplos da sociedade como os partidos da atualidade (dos trabalhadores, de evangélicos, de conservadores, de comunistas, dos aposentados). Eram partidos ligados aos interesses de cada estado, por exemplo, o Partido Republicano Paulista, o Partido Republicano Mineiro e o Partido Republicano Rio-grandense. Além disso, o sistema democrático de então era distinto do atual. Naquela época havia o voto censitário, ou seja, a renda da pessoa é que permitia a sua participação ou não nas eleições. Da mesma forma, poucas pessoas podiam se candidatar. Mulheres e analfabetos estavam impedidos de se candidatar e de votar.
Nesse contexto, os partidos representavam, então, os interesses daqueles que possuíam uma renda mínima: geralmente, os proprietários de terras, funcionários públicos, militares, grandes comerciantes e proprietários industriais. Grupos que estavam presentes em boa parte dos estados brasileiros e não só em São Paulo. Ocorre que os paulistas foram os principais fiadores da substituição do Império pela República, a partir de sua promulgação seus políticos e intelectuais, quase sempre membros da elite, se tornaram a principal referência política na primeira metade do século XX. Esse foi um dos fatores que permitiram aos paulistas o domínio político nesse período. As questões econômicas, apenas, não bastam para explicar essa supremacia paulista, é preciso considerar aspectos culturais e sócio-políticos.
O ideal de república paulista possuía uma peculiaridade: defendia uma maior liberdade dos Estados em relação ao poder central. Para eles só era possível construir um regime republicano no Brasil respeitando-se a ampla autonomia dos estados em relação ao poder central. A mínima intervenção do poder central nos Estados já se caracterizaria como uma afronta à República. Essa visão tornou-se predominante, pois as elites de outros estados, sobretudo as mineiras e gaúchas, também compartilhavam dessa visão.
Outro aspecto importante é que os republicanos brasileiros, principalmente os paulistas, eram adeptos da visão econômica liberal. Na época, o liberalismo econômico consistia, sobretudo, na proteção às liberdades econômicas dos capitalistas, evitando qualquer forma de regulação de sua atuação na economia. O Estado existia para proteger seus interesses e não para regular suas atuações.
Assim, durante as primeiras décadas do século XX, as políticas nacionais se reduziram aos interesses dessas classes econômicas, representados nos partidos estaduais. As principais medidas federais foram os aportes financeiros para financiar os grandes agricultores, sustentar os preços dos produtos agrícolas em um nível que seus produtores conseguissem lucros, atuações militares para expansão territorial, bem como a proteção das fronteiras, missões diplomáticas internacionais e questões de segurança interna (muitas vezes confundidas com a perseguição das classes mais desfavorecidas).
O poder central até 1930 foi dominado, então, por uma aliança marcada pelos partidos estaduais, representadas por suas principais lideranças agrárias. O pilar de sustentação dessa aliança eram os aportes econômicos dados aos agricultores, sobretudo, nos momentos de crise. Até a década de 1920 essas crises eram passageiras. A partir dessa década, entretanto, houve uma séria crise mundial que corroeu o pilar dessa aliança: os aportes econômicos do governo federal começaram a se tornar ineficientes frente ao tamanho da crise. Além disso, nessa década o Partido Republicano Paulista desrespeitou o acordo feito com Minas Gerais sobre a alternância de poder, indicando o paulista Júlio Prestes para suceder o também paulista Washington Luís.
Assim, as elites estaduais começaram a se desconfiar mutuamente. Não foi só isso. O Brasil passou por um processo de industrialização nos anos de 1910 e 1920 que permitiu o surgimento de uma classe operária, de intelectuais e artistas ligados ao modernismo, do pensamento comunista e de uma vida urbana mais intensa.
A elite agrária descontente com a mínima intervenção federal para salvar a economia brasileira e, principalmente, seus negócios, logo capitaneou a oposição contra as forças que queriam manter a status quo (membros do PRP). Surgiu então a Aliança Liberal, encabeçada por Getúlio Vargas e João Pessoa, que disputaram a presidência da República contra Júlio Prestes do PRP. Este último foi o vitorioso nas urnas de então. Entretanto, o assassinato de João Pessoa, que se deu por motivos distantes da disputa eleitoral, acirrou os ânimos da oposição. O episódio permitiu a Getúlio Vargas tomar o poder em novembro de 1930.
Ao contrário do que os paulistas previram no inicio do novo governo, aos poucos Getúlio Vargas foi se acomodando no poder, isolando as forças políticas do PRP, inclusive em seu próprio Estado. Getúlio Vargas fez importantes concessões às novas classes sociais que surgiam no Estado de São Paulo, como os trabalhadores e a elite industrial. Além disso, o início de seu governo foi marcado por importantes medidas intervencionistas do Estado brasileiro na economia, favorecendo, principalmente, elites de outros estados.
O levante da elite agrária paulista (e não dos paulistas) contra Getúlio Vargas se deu nesse contexto e não para defender a democracia ou mesmo a Constituição. A defesa da democracia e de uma Constituição era mera retórica dos membros do PRP para arregimentar parte da população paulista nos frontes de guerras espalhadas pelas divisas paulistas. Obviamente que o governo Vargas foi muito distante de um governo voltado para o povo: suas medidas trabalhistas, por exemplo, obedecem mais a necessidade de controlar as eventuais revoltas dos trabalhadores. Além disso, a tomada de poder pela Aliança Liberal teve como intuito principal a salvaguarda dos interesses das elites agrárias descontentes com o domínio paulista.
O que é preciso pontuar é que a reação de 1932 não decorreu de valores democráticos, pois o PRP nunca fez propostas pelo fim do voto censitário e masculino. Era um movimento para levar Júlio Prestes de volta ao poder e restaurar a supremacia paulista no governo federal evitando as tão temidas políticas intervencionistas.
* Marcos Celeste é mestre em História pela Unesp de Franca e professor da rede municipal de São Paulo
Fonte: Fepesp