“O arcabouço da Fazenda é teto de gastos com bandas”, afirma Nilson Araújo de Souza
“O limite definido de gastos da proposta termina limitando a expansão não apenas do gasto social, mas também de seu componente mais dinâmico, que é o investimento, base do aumento da capacidade produtiva da economia – portanto, principal alavanca do crescimento da economia”
O professor Nilson Araújo de Souza, doutor em Economia pela Universidad Nacional Autónoma de México, pós-doutor em Economia pela Universidade de São Paulo, professor visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), e pesquisador da Fundação Maurício Grabois, avaliou, nesta segunda-feira (3), o arcabouço fiscal, apresentado pelo ministro Fernando Haddad.
Em entrevista ao HP, ele afirmou que a proposta do ministro representa alguns avanços, como o fato do “ajuste fiscal” ser feito, sobretudo, pelo aumento da receita, e não, como a ortodoxia monetarista costuma fazer, pelo corte da despesa; por isso, a despesa real tenderá a aumentar e o investimento terá um “piso” de R$ 75 bilhões”.
“Mas, alerta o professor Nilson, “‘essas ‘bondades’ não anulam a essência do ‘teto de gasto’, porquanto, tal como ele, mantêm como objetivo maior gerar superávit primário a fim de estabilizar a relação dívida/PIB”. “Tanto os 70% quanto os 2,5% deveriam ser bem maiores para dar conta das necessidades de reconstrução da economia”, prosseguiu o especialista.
O economista, que é autor de diversos livros sobre a economia brasileira, também defende que os investimentos fiquem de fora de fora do arcabouço. “O investimento deveria estar fora de qualquer teto; não deve estar limitado por qualquer peia. Deveria ele próprio ser a ‘âncora’, a variável determinante, a ‘variável independente’, como dizem os economistas”, defendeu. Confira a entrevista na íntegra!
HORA DO POVO – Como você avalia o novo arcabouço fiscal apresentado pelo ministro Fernando Haddad?
NILSON ARAÚJO DE SOUZA – Ainda não é possível uma análise mais completa do arcabouço do Haddad porque ainda não foi apresentado o conjunto do plano, mas apenas algumas planilhas comentadas. No entanto, pelo andar da carruagem, já dá para ter alguma ideia de seu conteúdo. É possível perceber alguns avanços: o “ajuste fiscal” seria feito, sobretudo, pelo aumento da receita, e não, como a ortodoxia monetarista costuma fazer, pelo corte da despesa; por isso, a despesa real tenderá a aumentar; o investimento terá um “piso” de R$ 75 bilhões.
Mas essas “bondades” não anulam a essência do “teto de gasto”, porquanto, tal como ele, mantêm como objetivo maior gerar superávit primário a fim de estabilizar a relação dívida/PIB. Será, na verdade, o “teto com banda”. Ou seja, o “teto” com alguma flexibilização. É o próprio ministro que o admite, quando, em uma das planilhas, afirma: “O atual teto de gastos passa a ter banda com crescimento real da despesa primária entre 0,6% a 2,5% a.a. (mecanismo anticíclico)”.
Assim, a despesa, que poderá aumentar nominalmente até 70% do incremento da receita, terá um aumento real limitado por uma banda que varia de 0,6% a 2,5% ao ano. Ou seja, deverá crescer, em termos reais, no mínimo a 0,6% ao ano, mas, no máximo, a 2,5%. Isso significa que se, em determinado ano, os 70% redundarem num aumento real acima de 2,5%, o aumento da despesa estará limitado por esse “teto”. É um limite, obviamente, muito estreito. Tanto os 70% quanto os 2,5% deveriam ser bem maiores para dar conta das necessidades de reconstrução da economia.
As metas para o superávit primário são: 2023: -0,50%; 2024: 0%; 2025: +0,50%; 2026: +1%. A banda seria de 0,25 ponto percentual para cima ou para baixo – uma flexibilização muito pequena. Essa programação zeraria o déficit no ano que vem e, a partir do ano seguinte, começaria a gerar superávit. Convenhamos: essa meta é mais do que demandam os próprios representantes da banca e dos donos das finanças, os rentistas. Segundo o próprio material distribuído pelo ministro no dia da divulgação do arcabouço, as “expectativas do mercado” em 24 de março eram as seguintes: 2023: -1,02%; 2024: -0,80%; 2025: -0,50%; 2026: -0,27%.
O objetivo é, inicialmente, estabilizar a relação dívida/PIB em 2026 para depois começar a declinar. Usa como parâmetro a dívida bruta do governo geral. A evolução dessa relação no cenário 1 seria a seguinte: 2023: 75,11%; 2024: 76,17; 2025: 76,43%; 2026: 76,54%. Realiza-se um enorme esforço fiscal para garantir que, ao final do período, essa relação dívida/PIB não ultrapasse 76,54%.
Mas quem estabeleceu que o limite dessa relação é esse? Qual a fundamentação teórica? Vejam a realidade de outros países: Índia – 89%; União Europeia – 90%; Zona do Euro – 97%; Reino Unido – 97%; França – 115%; Canadá -118%; Espanha – 120%; Estados Unidos – 127%; Portugal – 135%; Itália – 150%; Japão – 259%.
Além disso, como indicamos antes, adota-se como parâmetro a dívida bruta. Por que não a dívida líquida? Esta seria um parâmetro mais apropriado porquanto se trata da verdadeira dívida, já que o adequado para medir a verdadeira dimensão da dívida é descontar as reservas disponíveis, tanto as cambiais quanto as existentes em reais no Tesouro. Segundo cálculos do economista André Lara Resende, a relação dívida (líquida)/PIB encolheria para 45%. Ademais, como nossa dívida é basicamente em reais, moeda que o governo emite, este pode, em determinadas circunstâncias, como uma situação com capacidade ociosa, monetizar a dívida.
HP – Você acha que, com essas medidas, há espaço para investimentos públicos nos níveis que o Brasil precisa?
NILSON ARAÚJO – O limite estreito para o aumento da despesa pública termina limitando a expansão não apenas do gasto social, mas também de seu componente mais dinâmico, que é o investimento, base do aumento da capacidade produtiva da economia – portanto, principal alavanca do crescimento da economia.
É certo que o arcabouço fixa um “piso” para o investimento direto da União, que é de R$ 75 bilhões, mas, como ele faz parte da despesa, também estará limitado por sua estreita banda. É certo que está um pouco acima da média do período recente, mas está longe das necessidades do momento atual.
A economia nacional, depois de desmontada pelo ultraneoliberalismo do fascismo bolsonarista, mergulhou em nova recessão desde o último trimestre do ano passado. A quebra de dois gigantes do varejo brasileiro – as Lojas Americanas e a Casa Bahia – é apenas a ponta do iceberg da situação gravíssima em que, devido aos juros elevados, encontram-se as empresas brasileiras.
Nessa situação, o esforço para sair da crise e deflagrar a reconstrução nacional exige muito mais investimento. Na verdade, acho que a âncora, em lugar de convergir para o superávit primário e a estabilização da relação dívida/PIB, deveria convergir para o nível de investimento.
HP – Há quem diga que o limite de 2,5% de gastos é um teto um pouco mais flexível. O que você acha disso?
NILSON ARAÚJO – Evidentemente, ter uma “banda” de 2,5% é melhor do que zero%, como era no natimorto teto de gastos anterior. No entanto, essa ligeira flexibilização não está à altura das necessidades do momento. Não estamos num momento qualquer da vida nacional. Estamos num momento de reconstrução precisamente quando a crise econômica se agrava.
HP: Você acha que os investimentos deveriam ficar fora dessas regras?
NILSON ARAÚJO – O investimento deveria estar fora de qualquer teto; não deve estar limitado por qualquer peia. Deveria ele próprio ser a “âncora”, a variável determinante, a “variável independente”, como dizem os economistas.
O arcabouço avança um pouco nessa direção, ao estabelecer que o “resultado primário acima do teto da banda permite a utilização do excedente para investimentos”. Mas insuficiente para as necessidades do momento, incorporadas pelo Presidente Lula, quando insiste em baixar os juros como forma de incrementar os investimentos.
Essas restrições na política fiscal se juntam à política monetária restritiva para bloquear a reconstrução nacional. Enquanto Roberto Campos Neto estiver à frente do BC, o arcabouço de Haddad não o sensibilizará para uma necessária forte redução da taxa de juros – no máximo, realizará alguma redução.
HP: Já que o arcabouço se assenta, não no corte de gasto, mas no aumento da receita, como Haddad pretende aumentar a receita?
NILSON ARAÚJO – Ele declarou que não aumentará impostos. Deverá cobrar de quem deveria pagar e não paga, além de cortar desonerações fiscais (registre-se que, segundo a Anafisco, de R$ 457 bilhões de renúncia fiscal por ano, só R$ 141 bilhões se justificam econômica e socialmente).
Entre essas medidas, estão a tributação de apostas esportivas eletrônicas; alinhamento da cobrança do Imposto de Renda dos fundos exclusivos, que abrigam aplicações de investidores de renda elevada, com os demais fundos: em lugar de cobrar o IR apenas no resgate dos recursos, a tributação passaria a ser feita duas vezes por ano; ajustar a cobrança de Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL), com o objetivo de corrigir distorções que reduzem a arrecadação da União: empresas que têm benefício de ICMS o utilizariam para diminuir o pagamento do tributo federal. Isso antes da prometida reforma tributária.
Haddad também pretende diminuir desonerações tributárias, que, como indicamos antes, atingem o montante de R$ 457 bilhões por ano. Planeja, com essas medidas, arrecadar entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões em doze meses. São medidas, em princípio, corretas e seriam altamente defensáveis se fossem para fortalecer o investimento público; no entanto, são destinadas a gerar superávit primário para reforçar o pagamento dos juros da dívida pública.