Discurso de ódio deve ser atacado como negócio político lucrativo

por Cezar Xavier

Quando o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH) montou um Grupo de Trabalho (GT) para elaborar um estudo sobre o enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo no Brasil, muitos associaram a iniciativa com a regulação das plataformas digitais. No entanto, o relator do estudo, o advogado e professor Camilo Onoda Luiz Caldas, pós-doutor pela Universidade de Coimbra em Democracia e Direitos Humanos, explica ao Portal Vermelho, que o assunto tem outras facetas que demandam medidas ousadas para além do Projeto de Lei 2630, conhecido como PL das Fake News.

O “Relatório de recomendações para o enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo no Brasil” foi elaborado a partir de um debate profundo sobre o que efetivamente caracteriza a dinâmica de funcionamento desta prática discursiva, que se espalha de forma nociva pelas redes sociais, mas também no estímulo a uma mentalidade e na violência cotidiana.

A percepção jurídica mais importante é a de que os superdisseminadores (superspreaders) devem ser alvo preferencial das políticas públicas e da reação da sociedade. Pessoas com poder e recursos financeiros que investem em jogar um grupo social contra outros, para obter poder político, precisam ser barradas. O professor e advogado explica como chegamos a esse ponto de haver “gabinetes de ódio” espalhados por todo o país.

Estratégia política

Caldas explica que o fenômeno do discurso de ódio é muito anterior à tecnologia. Ela sempre foi uma estratégia política, elegendo categorias como o comunista, o homossexual, o seguidor de uma religião, com impactos dramáticos especialmente a partir do século XX. “O movimento segregacionista ou o nazista estão ancorados no discurso de ódio”, exemplifica, citando o caso da separação entre negros e brancos nos EUA, até a década de 1960, assim como na estigmatização de judeus na Alemanha dos anos 1930.

No Brasil, ele afirma que, após a Constituição de 1988, houve uma década de trégua, porque não havia o discurso de ódio como elemento de mobilização política e uma ferramenta para disputa eleitoral. Para o advogado, foi depois da ascensão do governo Lula que este movimento se acirra, como reação às políticas sociais e ao enfrentamento ao neoliberalismo feito por ele. “Mas é com a ascensão do bolsonarismo, que começa haver grupos que se organizam em torno do discurso de ódio”.

Ele descreve essa trégua da redemocratização como um “intervalo de lucidez na disputa política”. “Nem o PFL usava discurso de ódio como elemento central da sua disputa política. Agora, o [deputado] Nikolas Ferreira [PL-MG] tem como elemento central de sua mobilização o discurso de ódio. É sempre a feminista, o comunista, a comunidade LGBTQIA+, que é o preferencial deles. Está estruturado”, compara.

Sinceridade tóxica

Existe uma identificação entre o cidadão comum que se sente alheio aos discursos de novos movimentos sociais e agentes opositores a esses discursos. “Quando as pessoas dizem que o Bolsonaro fala o que ele pensa, ele podia falar o que pensa sobre economia, sobre relações internacionais. Mas, 90% das vezes que “fala o que ele pensa” foi usada para dizer que Bolsonaro é sincero, remetia a discurso de ódio (misógina, homofobia, racismo)”, observa Caldas.

Antes, os partidos de direita estavam numa defensiva, em que precisavam provar que eram os agentes que solucionariam os problemas sociais. Tinham que defender propostas para resolver os problemas da pobreza. Hoje, a preocupação não passa por este fator. Pelo contrário, a preocupação com a questão social se tornou um filtro para setores das classes médias conservadoras afastarem certos políticos.

Caldas aponta que, antes dos governos progressistas, havia uma disputa entre um modelo privatizante que ia ser melhor para todo mundo. “A experiência da década de 1990, em contraponto ao governo Lula, mostrou a falência do modelo neoliberal. Era um governo que podia ter sido mais desenvolvimentista, caminhado mais longe para um estado de bem-estar-social, mas onde ele foi, se mostrou um acerto”, avaliou.

Estes acertos, na opinião dele, colocaram na berlinda o discurso neoliberal da década de 1990. “Se punha FHC e Lula na balança, Lula dava uma goleada. Como retomar o discurso da década de 1990, de privatizar, cortar CLT, direitos sociais, acabar com a aposentadoria? Era muito difícil entrar com isso numa eleição. Esse papo não pega!”, diz ele.

O grande achado dos políticos neoliberais foi o discurso de ódio. “Bolsonaro traz essa pauta da Escola de Chicago de contrabando, escondida na mala. Nem tão escondido, porque a Faria Lima leu isso. Tem muito cara do capital econômico que não gosta desse discurso de ódio do Bolsonaro, mas gosta do Paulo Guedes. Isso é para dizer que o Bolsonaro não teria essa projeção, se não fosse um agente do neoliberalismo”, analisa.

Caldas ainda lembra que Bolsonaro só chegou à posição de liderança política, porque conseguiu dar essa guinada, final, ele não tinha esse perfil na década de 1990. Quando ele disse “esquece o Bolsonaro que disse que as privatizações eram criminosas”, e muda a chave para esse discurso neoliberal da Escola de Chicago, ele alcança uma liderança. “A liderança dele não vem só pelo discurso de ódio”, salienta.

O professor cita o autor de Crítica do Fascismo, Alysson Mascaro, quando diz que o fascismo sempre foi um movimento de contenção das pautas da esquerda. “Bolsonaro é a contenção da pauta econômica da esquerda, não só da pauta identitária. Só que ele não põe isso na linha de frente do discurso dele. Só falava em coisas genéricas como ser contra pagar imposto, quando só quem paga imposto no Brasil é pobre. O grosso do discurso dele é família, levar cartilha no Jornal Nacional etc”, menciona.

Esta nuvem de fumaça da falsa polêmica é o que tem feito parte da extrema-direta crescer no mundo, na opinião dele. De acordo com Caldas, eles não têm como dizer que o eleitor vai ter que trabalhar mais anos para se aposentar mais tarde, sem regulamentação trabalhista, sem bem-estar-social, sem SUS (Sistema Único de Saúde). São raros os políticos mais francos que abrem suas pautas ultraconservadoras. Ele cita os políticos do MBL (Movimento Brasil Livre) que se afirmam para um público restrito de direita a partir dessas pautas econômicas.

Mais que conservador, retrógrado

O especialista diferencia o lugar do conservadorismo neste cenário da pós-verdade e do ultraliberalismo. Segundo ele, o conservadorismo é uma corrente filosófica que é baseada no princípio da regra da experiência, que pode ser questionável, mas que tem uma lógica interna. “Aquilo que se preservou historicamente seria supostamente algo que tem um valor, caso contrário não conseguiria se manter no tempo. Por isso, os conservadores são contra mudanças abruptas e propostas que não foram submetidas à regra da experiência. Então falam em mudança aos poucos, ‘sem queimar a casa’, reformar aos poucos”, explica.

O discurso de ódio, por sua vez, não é puramente conservador, mas reacionário e retrógrado. Ele cita o caso da defesa do fim das cotas raciais, após 20 anos de experiência de ação afirmativa, que comprovou que funciona, tornando a universidade mais diversa. “Não há nenhuma evidência empírica no sentido de rebaixar os cursos com candidatos menos qualificados, pelo contrário, demonstra que o cotista tem desempenho igual ou superior ao não-cotista”, cita.

O conservador dizia que era melhor mudar o sistema de base para favorecer a entrada desses alunos na universidade, no longo prazo. “Não vamos dar cavalo de pau”. Mas com vinte anos de experiência, o conservador teria que dizer que está comprovado que a política de cotas funciona.

Nos EUA, a decisão da Suprema Corte, de acabar com a seleção das universidades por critério racial, se mostrou retrógrada, porque após décadas, o sistema mostrou que funciona e aumenta a inserção de negros, hispânicos etc. “O mesmo com o voto feminino, que se mostrou muito bom para sociedade, mas há grupos antifeministas, hoje, que dizem que o voto feminino e a integração feminina no trabalho foi o início do fim da mulher. O bom era antes”, diz Caldas.

Nostalgia da servidão

Para além do conversadorismo, existe uma nostalgia de uma época em que o negro, a mulher, o homossexual se mantinham no seu lugar de subordinação e silêncio. Uma idealização do passado típica do mecanismo fascista, que promove uma reescrita da história, a volta à tradição e ao período pré-iluminista.

Ele cita o mentor do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, que acreditava em sociedade hierarquizada, uma ideia influenciada pelo perenialismo, em que o modelo bom é o da Idade Média, — uma sociedade estamental em que uns mandam e a maioria obedece, uma hierarquia natural estabelecida por Deus. “Gente que não escancara que o homem, o branco, têm um papel superior”, diz o professor.

Para fazer frente ao socialismo/comunismo, a sociedade dos anos 1960 e 1970 nos EUA dizia que seria de igualdade de oportunidades. Mas o especialista em Direitos Humanos denuncia, é que o que a Suprema Corte está argumentando agora, é que “não tem como ter igualdade de oportunidades”. Este é o caráter retrógrado dessa argumentação ultraliberal.

“O que a década de 1960 fez, foi a partir de uma lógica econômica, que depois foi encampada pelo Banco Mundial. Tem documento deles que diz que racismo, machismo, capacitismo é igual a prejuízo econômico. O conservador não se comove pela lógica humanitária, mas pela financeira. Então, o objetivo era mostrar que recrutar com preconceito pode te levar a perder pessoas talentosas”, afirma.

Tem também o fato de que a mulher, o homossexual, a pessoa com deficiência, por exemplo, para além de ser talentosa, agrega uma contribuição e um olhar diferenciado para a empresa. “Para além de estar perdendo uma pessoa talentosa, a diferença produz benefício. A ideia nos anos 1960 era maximizar a concorrência, uma lógica do capital”, ressalta.

No século XXI, o capitalismo chega a uma crise tal e qual que é preciso dizer que não dá pra integrar todo mundo no sistema. “Tanto que é cada vez mais comum ouvir que não vai dar para ter saúde para todo mundo, previdência, o que é uma contradição. Se a humanidade produz muito mais riqueza, hoje, por que essa equação não fecha? Por que tem que trabalhar mais horas, mais dias, mais anos da nossa vida, se cada vez tem uma implementação tecnológica maior?”, indaga.

Ódio e necropolítica

É por essa lógica econômica, que o fascismo precisa eliminar uma parte das pessoas. Ele menciona a aporofobia, — o ódio ao pobre—, como parte desta lógica. “Quem vem com um pacote do neoliberalismo numa mala, vem com um pacote do fascismo na outra. O pacote do extermínio de uma parte das pessoas, ou o pacote do direito penal, em que tem que prender e manter na cadeia todo mundo. Porque se você vai destruir com o estado de bem-estar-social, isto vai ter um custo, que se resolve com eliminação ou prisão. Por isso, precisa ter um discurso [de ódio] para desumanizar essas pessoas e justificar a eliminação ou prisão”, pondera.

Mas Caldas é otimista ao observa que há condições de ganhar a maioria da sociedade para a defesa dos direitos de todos os humanos e não apenas uma parcela branca de classe média, como quer a extrema-direita. Será preciso encontrar a narrativa correta para isso.

O relatório elenca quais grupos podem ser considerados em situação emergencial em relação ao discurso de ódio. “Se a gente analisar, a maior parte da população se identifica com algum daqueles elementos. Eu sou tentando a arriscar que todo mundo se identifica com algum grupo daqueles”, diz ele.

Ou a pessoa é mulher, ou negra, ou LGBTQIA+, ou indígena, ou pessoa com deficiência, ou sofre intolerância religiosa. “Mas eu não tenho religião. Beleza, mas você também é alvo de hostilidade. Todo mundo cabe nessa da intolerância religiosa”. Ainda tem as pessoas da ciência ou jornalistas que são hostilizadas. Difícil alguém não se ver contemplado no relatório. E mesmo que não se veja, a mãe dele, a esposa, o irmão são.

Entre os próprios evangélicos, em alguma circunstâncias, pode-se ser alvo de intolerância. Principalmente, quando a pessoa não compartilha da mesma posição política de sua liderança. Ele é hostilizado religiosamente. “Você não está sendo de Deus…”

Desta forma, Caldas acredita que o alcance do discurso de ódio é o elemento para fazer com que a sociedade perceba a gravidade da violação de direitos humanos. O segundo ponto que pode trazer a opinião pública para o lado dessa luta, é perceber que uma coisa é a oposição e o conflito sadia e ser crítico, outra coisa é o discurso de ódio com sua postura de destruição e de humilhação.

“Não aceitar a posição do outro e pregar a desumanização e a eliminação do outro. O pastor André Valadão é a expressão disso. Eu já acho grotesco a pessoa dizer que não aceita que o outro seja homossexual. Mas é diferente você dizer: essas pessoas têm que morrer. É uma outra escala”, opina ele.

O discurso de ódio tem uma progressão, de acordo com o professor. Começa com “não podemos aceitar isso” até a escalada final de que o sujeito não tem direito de existir.

“As pessoas podem se identificar com vários aspectos do nosso relatório, por esse caráter destrutivo do discurso de ódio, com o qual a maior parte das pessoas não compactua”.

Liberdade de expressão

A liberdade de expressão não está em risco com a repressão ao discurso de ódio, diz Caldas. Segundo ele, essa liberdade está garantida, porque é o discurso de ódio que elimina e silencia a liberdade de expressão. “No discurso de ódio, uma pessoa da comunidade LGBTQIA+ não pode existir ou tem que existir escondida. Isso é o fim da liberdade de expressão”, menciona.

Desta forma, o argumento mais citado pelos opositores das medidas de combate ao discurso de ódio não passa de uma falsa polêmica.

Por outro lado, o advogado lembra que a liberdade de expressão já está limitada pela nossa legislação e a pessoa que abusa da liberdade de expressão já sofre repressão, pelos preceitos atuais. “A nossa Constituição já estabeleceu limites, tanto que a gente pouco fala da questão penal no relatório”, diz. “A gente podia até falar em definição jurídica de discurso de ódio”.

Assim, o GT do governo não está falando numa inovação legislativa, quando diz que o discurso de ódio tem que ser reprimido. “Mas de formas de concretização do que está previsto no Artigo 3, Inciso 4 da Constituição, de lutar contra todas as formas de discriminação”.

Outra falsa polêmica, segundo ele, são as pessoas que abusam da liberdade de expressão, se escorando numa suposta liberdade de consciência religiosa, para praticar discurso de ódio. “Na verdade, essas pessoas utilizam este recurso como método de ganhar capital político e disputar eleição. Eles precisam defender esse método. A preocupação não é com liberdade de expressão, mas com manutenção de poder político e cargos eleitorais”.

É o caso de personalidades religiosas que disseminam um lugar comum de que não vai poder citar versículos bíblicos na igreja, que são contra os direitos humanos. “O abuso sobre pretexto de ser discurso religioso não é contemplado na nossa legislação. Se eu quiser fazer um culto de sacrifício humano baseado na minha liberdade de crença, não posso”, compara.

As práticas religiosas e o discurso religioso também têm limites dados pela Constituição. “Deus me mandou sinal de que as mulheres têm que ser mortas. Não, não pode! Nem criança, nem gato preto. Tem a lei de proteção dos animais”.

Segundo ele, a pessoa pode até pensar isso e ter a convicção de que sua religião é isso, mas não pode externalizar se houver dano para outra pessoa.

Caldas defende a necessidade de um debate no campo da teologia, que alguns já fazem. Muitos movimentos religiosos dizem que essa pregação contra o movimento LGBTQIA+ não é cristianismo. “E mesmo que essa pregação seja aceita teologicamente, eles não podem trazer essas consequências para onde eles querem extravasar”, diz, voltando ao caso do pastor Valadão. O caso mais recente de mobilização de discurso de ódio como estratégia política foi o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) comparando professores a traficantes.

Caldas também cita o caso do casamento civil, a que LGBT+ têm direito. “Casamento não regulamenta afeto das pessoas, mas propriedade privada. O eixo central são os direitos e deveres, é o que fazer quando separa, quando tem filhos, não o que faz com os sentimentos das pessoas. Beleza, se na sua religião o casamento é uma liturgia, e você não casa pessoas do mesmo sexo, mas o casamento civil é uma gestão de bens e patrimônio”, explica.

Ele acrescenta que o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo não é prejudicial e abusivo ao direito de outras pessoas. “É diferente de um pai querer casar com a filha, por exemplo”, compara.

Do Portal Vermelho

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