Indígenas ameaçados pelo marco temporal comemoram vitória no STF: ‘agora dá para respirar’
Povos que seriam afetados pela tese jurídica se dizem aliviados, mas mobilizados para barrar PL de mesmo tema no Senado
Lideranças indígenas que vivem em áreas ameaçadas pelo marco temporal comemoraram a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa quinta-feira (21) a Corte declarou inconstitucional a tese jurídica criada por ruralistas com o objetivo de restringir as demarcações. Pelo critério, terras não ocupadas por indígenas na data da promulgação de Constituição de 1988 não poderiam ser demarcadas.
Respiram um pouco mais aliviados povos que tentam sobreviver em meio aos mais graves conflitos pela posse da terra do país, com extenso saldo de mortos e feridos. De um lado, estão fazendeiros e grandes empresas do agronegócio. De outro, indígenas cercados por pistoleiros que viam no julgamento uma esperança de garantir o futuro das próximas gerações.
“Pela primeira vez temos uma reparação de danos depois de 523 anos da chegada de [Pedro Álvares Cabral]. O Supremo foi muito feliz em definir isso. Agora com certeza dá para respirar. É uma vitória do movimento”, afirmou Daniel Vasques, liderança da Aty Guasu, organização que representa os Guarani Kaiowá.
No Mato Grosso do Sul, os Guarani Kaiowá são vítimas de um permanente estado de violação de direitos humanos. Nos últimos 20 anos, mais de 100 indígenas foram mortos. O estado é marcado por retomadas indígenas feitas após 1988. Se o marco temporal fosse validado, fazendeiros teriam legitimidade para pleitear na Justiça a expulsão das famílias.
O alívio é sentido também na Terra Indígena Guyraroká, que teve a portaria declaratória anulada no STF com base no marco temporal. Invalidado o critério jurídico, os indígenas poderão reaver seus direitos territoriais.
Indígenas comemoram em meio à “Guerra do Dendê”
“Acompanhar o desfecho dessa votação pra nós, enquanto indígenas que lutamos pela nossa casa, foi emocionante”, diz Miriam Tembé, presidente da Associação Indígena Tembé do Vale do Acará.
Os Tembé são vítimas da chamada “Guerra do Dendê” no Pará, que já deixou pelo menos cinco indígenas mortos, além de lideranças quilombolas. Os indígenas e o Ministério Público Federal (MPF) dizem que a empresa Brasil BioFuel (BBF) é a responsável por promover a violência, por meio de um exército de seguranças armados, o que é negado pela empresa. As comunidades mais vulneráveis são aquelas que surgiram em retomadas indígenas após 1988.
“O sentimento agora é de gratidão, de emoção, por a gente ter conseguido essa vitória. Sabemos que ainda há muito desafios, mas nesse momento podemos dizer que temos a garantia de que continuaremos habitando nosso território, continuaremos tendo a nossa casa, continuaremos tendo esse patrimônio que é inegociável”, acrescentou a líder Tembé.
Próximas etapas da luta indígena
Embora declarado inconstitucional no Supremo, o marco temporal segue em tramitação no Congresso Nacional. Por meio de um projeto de lei, a tese foi aprovada na Câmara e deverá ser votada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado na próxima quarta-feira (27).
Dinamam Tuxá, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), disse que o desfecho no STF é uma fruto de uma “luta árdua” de anos, mas enfatiza que a vitória foi “de uma batalha, e não da guerra que travam contra os povos indígenas”.
Além do Senado, os olhos do movimento indígena brasileiro se voltam a pontos polêmicos levantados por dois ministros durante o julgamento do marco temporal: a indenização prévia a fazendeiros e a abertura de terras indígenas a atividades econômicas de grande impacto, como a mineração.
“Esses pontos dos votos do Toffoli e do Alexandre de Moraes nem deveriam estar no âmbito da discussão [do marco temporal], porque o objeto da ação não é esse, o objeto é o marco temporal”, avaliou Dinamam, que é advogado.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que representa os povos do bioma, comemorou o desfecho no STF, mas também se disse preocupada com o avanço do marco temporal no Congresso.
“Ainda temos receio de como os parlamentares podem reconfigurar o debate da tese do Marco Temporal, mesmo a Suprema Corte a tendo rejeitado. Ademais, o PL em questão viola inúmeros outros direitos através da tentativa de legalização do garimpo em Terras Indígenas e da fragilização dos direitos dos povos indígenas isolados e de recente contato”, escreveu em nota a Coiab.
Edição: Thalita Pires