Tensão entre Congresso e STF faz parte da ‘rotina democrática’, mas não deve extrapolar poderes, dizem analistas
Ministros e parlamentares vêm julgando e legislando sobre os mesmos temas recentemente
Caroline Oliveira
No mesmo dia da aprovação da PEC na CCJ, o presidente da Câmara, o deputado federal Arthur Lira (PP-AL), defendeu que cada poder atue dentro dos próprios limites, num recado explícito aos ministros da Corte. O parlamentar afirmou que a Constituição “delimita claramente as atribuições de cada poder. Quais são os limites constitucionais, quais são as atribuições, quais são os deveres, quais são os direitos”.
“Eu penso sempre que o equilíbrio entre os poderes é a melhor maneira de viver em harmonia, que é o que se prega: independência com harmonia. Posso falar pela Câmara, não pelos outros poderes. Com a Câmara, eu posso afirmar que ela sempre se conteve dentro dos seus limites constitucionais e assim permanecerá”, disse Lira na abertura de evento em comemoração aos 35 anos da promulgação do texto constitucional.
Pouco depois, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, disse que não é o momento para “mexer” nas regras de funcionamento da maior instância do poder judiciário. “De modo que eu, honesta e sinceramente, considerando uma instituição que vem funcionando bem, eu não vejo muita razão para se procurar mexer na composição e no funcionamento do Supremo.”
“Na vida democrática, a gente convive com a discordância e com a diferença, e a absorve. E, no geral, [a gente] se curva à vontade, eu penso, da maioria”, afirmou. “Acho que o lugar em que se fazem os debates públicos das questões nacionais é o Congresso. Portanto, vejo com naturalidade que o debate esteja sendo feito. Mas nós participamos desse debate também. E, pessoalmente, acho que o Supremo, talvez, seja uma das instituições que melhor serviu ao Brasil na preservação da democracia, não está em hora de ser mexido”, disse também à imprensa.
No Senado, o clima em relação ao STF também é de tensão. O presidente da Casa, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), defendeu a criação de mandatos para ministros da Corte, no último dia 2, após ser questionado sobre o tema em coletiva de imprensa.
“Considero que é uma tese interessante para o país. Muitos países adotam essa metodologia, muitos ministros do Supremo já defenderam isso. Há matéria legislativa nesse sentido aqui no Senado e acho que é um tema sobre o qual deveríamos nos debruçar e evoluir, não simplesmente aprovar de qualquer jeito. É bom para o Poder Judiciário, para a Suprema Corte, para o país”, afirmou Pacheco.
Parte da democracia ou exceção?
Ao Brasil de Fato, Gabriella Bezerra, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), afirma que a tensão entre Legislativo e Judiciário é um “paradoxo” do “ordenamento democrático”. Em suas palavras, a sociedade brasileira está posicionada em espectro mais conservador, o que reflete na composição dos deputados e senadores. Por outro lado, “as cortes, em especial, a Corte Suprema, em alguns temas, têm caminhado para o polo mais progressista do espectro, o que entra em choque com a perspectiva majoritária da sociedade brasileira”.
“A democracia reflete as escolhas mais fortes e numerosas em um dado momento, em uma dada sociedade, mas essas escolhas não podem ferir os direitos basilares, nem sufocar ou impedir a expressão das minorias”, explica a docente. Nesse sentido, as disputas deveriam ocorrer no Legislativo, “o campo do debate, argumentação e definição do regulamento social”, e o Judiciário “apareceria apenas para esclarecimentos pontuais”.
A realidade brasileira, entretanto, extrapola tais expectativas. Hoje, os congressistas tentam retomar o protagonismo do papel do legislador, desgastado diante do ativismo judicial da Operação Lava Jato. No entanto, “pesa contrariamente a esse movimento do Congresso Nacional, a sua indisposição, em diversos casos, em lidar com temas polêmicos, a dificuldade em promover discussões qualificadas e respeitosas, a espetacularização, a promoção de decisões simplórias e populistas, o difícil equilíbrio entre o desejo eleitoral e a realidade da gestão das políticas públicas e, mais recentemente, o excessivo corporativismo de seus membros”, disse ela.
Na linha do ativismo judicial, o mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Elisandro Roath do Canto, explica que o comportamento visto hoje no parlamento é uma reação a “um desdobramento daqueles efeitos que nós tivemos no sistema político das ações, por exemplo, da Lava jato, de um certo assédio por parte do Judiciário, dos organismos de controle, junto à classe política, principalmente parlamentares federais”.
Trata-se, segundo essa tese, de um Congresso Nacional que busca retomar o controle sobre as pautas de decisão que competem ao Legislativo, após terem deixado elas a cargo do Judiciário, para evitar perder votos, já que eram temas impopulares.
“Pela própria fragmentação política do Congresso Nacional e pelo envolvimento com outras prioridades, ele deixou de lado decisões e interpretações sobre questões polêmicas. O Congresso não quis enfrentar uma série de pautas no passado porque eram delicadas e geravam muita incerteza para o seu eleitorado. Então essas questões foram decididas pelo Judiciário, especialmente pelo STF”, afirma do Canto.
Tal tipo de tensão, porém, é natural da relação entre os poderes. “São independentes ou autônomos, devem ser harmônicos, mas cada poder tem objetivos diferentes que vão produzir tensões. Isso é da rotina dos sistemas federativos, da rotina dos sistemas democráticos, que utilizam o princípio da consocialidade.”
Ainda assim, o cientista político aponta que é necessário diálogo entre os presidentes dos três poderes “para não ser apenas uma briga de poderes ou, principalmente, ser uma indiferença entre os poderes. Por exemplo, o judiciário considerar uma matéria constitucional ou inconstitucional e mesmo assim o Congresso Nacional aprovar uma legislação fragrantemente contra a Constituição”. No caso da tese do marco temporal, Do Canto acredita que o tema será vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula Silva (PT), sem ser derrubado pelo Congresso.
“Nós já tivemos episódios, em torno de 65 ou 64, de pedidos de projetos de emenda constitucional tentando interferir na construção do STF, no perfil dos ministros, na forma de seleção e mandatos. Todas essas propostas de peso constitucional, exceto uma, foram arquivadas, possivelmente pelos presidentes do Congresso ou pelo presidente da Câmara dos deputados. São episódios de saliência das posições políticas, das divergências, de preferências, das posições, mas que acabam não sendo levados a efeito.”
Medidas no radar Congresso Nacional
A PEC 8/2021, que restringe a atividade de ministros do STF, prevê mandato entre oito e 11 anos, sem direito a outro. Hoje, no Brasil, os ministros se aposentam compulsoriamente quanto completam 75 anos de idade.
O texto também estabelece limitações às decisões monocráticas, ou seja, àquelas tomadas individualmente. Nesses casos, não seria possível suspender a eficácia de uma lei ou norma com efeito geral ou ato do presidente da República, do Senado ou da Câmara dos Deputados. Sendo assim, esse tipo de decisão só seria possível durante o recesso do Judiciário, em caso de grave urgência ou risco de dano irreparável. Ainda assim, o Judiciário precisaria, necessariamente, julgar o caso em 30 dias após o retorno aos trabalhos.
Um dos argumentos utilizados pelos defensores da PEC é a suspensão determinada pelo então ministro Ricardo Lewandowski, hoje aposentado, de um trecho da Lei das Estatais. Em março deste ano, o magistrado suprimiu a parte que previa restrições a indicações de políticos para cargos de diretoria em empresas públicas.
Recentemente, o ministro Kássio Nunes Marques também suspendeu a quebra dos sigilos telemático, telefônico, fiscal e bancário de Silvinei Vasques. Em julho deste ano, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investiga os atos golpistas do 8 de janeiro havia aprovado a quebra dos sigilos do ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF).
De acordo com a PEC, os pedidos de vista — quando os ministros pedem mais tempo para analisar uma matéria antes de votar — também devem ser concedidos coletivamente, e não individualmente como é hoje, segundo um texto. A PEC também estabelece um prazo para esse tempo: se seis meses, com possibilidade de prorrogação por mais três. Em dezembro de 2022, o STF já havia fixado um prazo de 90 dias para os pedidos de vista. A Corte, no entanto, não mudou a regra de que o pedido deve ser feito por um único ministro.
Uma outra PEC que também tramita na Câmara dos Deputados dá ao Congresso Nacional o poder de anular decisões definitivas do STF, quando, na avaliação dos parlamentares, extrapolarem limites constitucionais. Se aprovada pelos parlamentares, a anulação passaria a valer imediatamente, sem necessidade de sanção presidencial.
O autor do projeto é o deputado Domingos Sávio, do PL de Minas Gerais, o mesmo partido do ex-presidente Jair Bolsonaro. Para o congressista, “se o Supremo Tribunal Federal, de forma controversa, decide e julga contrariando a própria Constituição e, portanto, a ampla maioria dos representantes do povo, o estado democrático de direito é colocado em risco”.
Pautas polêmicas do STF
Entre os julgamentos incluídos no STF – na visão de alguns parlamentares, como Domingo Sávio, “de forma controversa” –, está o da tese do marco temporal. No final de setembro, os ministros declararam a inconstitucionalidade do tema.
A tese jurídica criada por ruralistas proíbe demarcações de áreas que não estavam ocupadas por indígenas no dia da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Nove dos 11 ministros demonstraram, no entanto, que a Constituição não prevê um critério de tempo para validar as demarcações. Os únicos favoráveis ao marco temporal foram Nunes Marques e André Mendonça, ambos indicados por Jair Bolsonaro ao STF.
A tese, porém, foi aprovada pelo plenário do Senado também no fim de setembro e, agora, segue para sanção de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Caso o presidente opte por vetar a proposta, os legisladores têm a possibilidade de reverter essa decisão em uma sessão conjunta do Congresso Nacional. Nessa situação, o conteúdo seria promulgado e passaria a ter força de lei imediatamente.
Outro julgamento que causou incômodo entre a ala conservadora do Congresso Nacional foi o da descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. O senador Magno Malto, do PL de Jair Bolsonaro, já afirmou que os parlamentares terão de “criar uma série de leis por conta de uma tomada de atitude”.
“Um motorista de táxi; um ordenador de despesa; um gerente de loja. Eles vão ter que nos obrigar a manter o cara maconheiro, porque ele fuma maconha e agora ele pode fazer isso de forma livre”, disse o deputado.
Até o momento, o placar é de cinco a um para que o porte não seja considerado crime, e de seis a zero para definir um limite de quantidade para diferenciar usuário de traficante com base na quantidade de droga encontrada – os resultados variam devido ao voto do ministro Cristiano Zanin, que discordou da legalização do porte de maconha, embora tenha concordado com a importância de distinguir entre usuários e traficantes. O julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro André Mendonça.
Os ministros também começaram a julgar a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. No fim de setembro, a então ministra Rosa Weber, hoje aposentada, votou a favor da descriminalização do aborto, mas um pedido de destaque apresentado pelo ministro Luís Roberto Barroso levou a ação para o plenário físico, ainda sem data para o julgamento.
Em seu voto, Weber afirmou que a “justiça social reprodutiva, fundada nos pilares de políticas públicas de saúde preventivas na gravidez indesejada, revela-se como desenho institucional mais eficaz na proteção do feto e da vida da mulher, comparativamente à criminalização”.
No Congresso, já há movimentações sobre o tema. Na Câmara, a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Família e da Vida tem apoio suficiente para a tramitação de urgência do PL que trata do Estatuto do Nascituro, que dispõe sobre a proteção integral ao feto.
STF x Congresso: quem tem o poder de definir a lei?
Por um lado, o STF possui a autoridade para determinar o que está ou não em conformidade com a Constituição. No caso da tese do marco temporal, por exemplo, a Corte concluiu que o tema não está alinhado ao texto constitucional e que, por isso, essa interpretação deve ser aplicada a todos os casos relacionados à demarcação de terras, uma vez que o julgamento foi estabelecido como de repercussão geral.
Por sua vez, o Congresso tem o poder de aprovar leis. Atualmente, é a interpretação do STF que prevalece, uma vez que o projeto de lei aprovado pelo Congresso ainda não foi transformado em lei. Após se tornar lei, entretanto, só poderá ser aplicada em conflitos que surjam após o vigor da legislação. Ainda assim, poderá ser contestada pelo STF.
Fernando Fernandes, advogado criminalista, doutor em Ciência Política e mestre em Criminologia e Direito Penal, explica que quando há uma questão concreta declarada constitucional ou inconstitucional pelo STF, o Congresso não pode fazer alterações. “Exemplo: o Supremo Tribunal Federal julgou que a Constituição brasileira exige a admissão da regulamentação da união homoafetiva. Portanto, o Congresso Nacional não pode proibi-la, porque estaria agindo, neste caso, contra a Constituição”, disse Fernandes em entrevista anterior ao Brasil de Fato.
“A própria Constituição diz que um a lei não prejudicará o direito adquirido, portanto, nenhuma lei pode mudar um direito anterior a ela. O Congresso não pode ir em direção contrária ao entendimento do STF.”
Tânia de Oliveira, jurista e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), defende que “o Poder Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal, exerce o controle de constitucionalidade das leis. Significa que uma lei que fere a Constituição Federal já nasce inconstitucional. É o caso, por exemplo, do marco temporal. Após o STF decidir que o marco temporal é inconstitucional, o Congresso Nacional não pode posteriormente aprovar uma lei determinando que ele seja aplicado”.
“No caso, as leis que nascem inconstitucionais passam pela análise de constitucionalidade na sanção presidencial e se for sancionada se faz uma provocação ao STF para que ela seja declarada inconstitucional. Então não se trata de conflito entre STF e Congresso. Cada um atua dentro de suas competências”, disse Oliveira também em entrevista anterior ao Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Durão Coelho