Congresso da UNE 68 (II) – quando a defesa de teses acontece na cadeia
Leia abaixo o segundo texto da série de três artigos escritos pelo ex-presidente da Confederação e atual membro da Comissão da Verdade dos Trabalhadores em Educação do Setor Privado de Ensino, Augusto César Petta, sobre o Congresso da UNE realizado em Ibiúna, em 1968:
Por Augusto César Petta*
Em artigo anterior, escrevi sobre o Congresso da UNE realizado em 1968, mais especificamente sobre os caminhos percorridos para ter acesso ao local do evento, um sítio localizado em Ibiúna, no estado de São Paulo.
Hoje, meu depoimento se estende desde o momento da prisão até o debate das teses realizado no Presídio Tiradentes. Estávamos nós, mais de 700 delegados – no dia 12 de outubro de 1968 pela manhã –, nos acomodando numa arquibancada semelhante à de jogos de futebol para dar início às discussões políticas do Congresso, quando começamos a ouvir o barulho de tiros. Imediatamente, nos lembramos da orientação que já havia sido debatida e permanecemos onde estávamos, quietos, sem empreender nenhuma reação. Agentes do Dops e policiais da Força Pública do Estado de São Paulo – sendo ordenados pelo governador Abreu Sodré – cercaram todo o local onde nos encontrávamos e fortemente gritavam, nos chamando de subversivos e comunistas. Esses dois termos, que para eles tinham um caráter extremamente pejorativo, agressivo, de ataque a todos nós, revelava o conteúdo da opção política de muitos de nós. Subversivos, no sentido de não concordar com a ordem injusta imposta pela ditadura militar e querer alterá-la profundamente ou subvertê-la, e comunistas, no sentido de que a luta desenvolvida e os conceitos teóricos que abraçávamos nos davam a certeza de que o capitalismo seria superado pelo modo de produção socialista, que, por sua vez, iria desembocar na sociedade comunista preconizada por Marx e Engels.
Após nos dirigirmos, já presos, aos locais precários onde deixamos nossas roupas e outros pertences, fomos colocados em uma longa fila. Nesse momento, uma estudante – que depois se transformou numa grande educadora, professora da Unicamp, e que até hoje luta pelos mesmos ideais da construção de uma sociedade justa – sentiu-se mal e desmaiou. Imediatamente, arrumamos uma padiola e, contando com mais três colegas, a socorremos e logo depois ela melhorou. Um jornalista que cobria a prisão fotografou esse momento e essa foto foi publicada no dia seguinte na Folha de São Paulo. Imaginem a tensão fortíssima que atingiu nossos pais ao verem os filhos com fotos estampadas, sabendo o que o destino poderia reservar, numa época de duríssima repressão da ditadura. Voltando ao momento da prisão: na minha frente os policiais identificaram José Dirceu – presidente da UEE-SP e candidato a presidente da UNE – e logo após Luís Travassos, presidente da UNE, que encerraria seu mandato naquele Congresso. Caminhamos vários quilômetros até chegar a um gramado amplo em que nos ordenaram que sentássemos, a fim de que os comandantes da operação identificassem outras lideranças de expressão nacional. Quando um dos que comandavam a operação identificou o presidente da Upes, Antonio Ribas, disse mais ou menos o seguinte: “Você não tem jeito mesmo, seu Ribas; foi preso, entregando panfletos, no desfile de 7 de setembro em São Paulo, foi solto na véspera desse Congresso da UNE. Hoje, três dias depois de ser solto, já é preso novamente. Você é caso perdido”.
Enquanto ouvíamos a preleção dos agentes da ditadura, os ônibus começaram a chegar para nos levar para São Paulo. Uma fila de no mínimo 20 ônibus desfilou nas ruas de São Paulo, sob os olhares curiosos das pessoas, até chegar ao Presídio Tiradentes.
Chegando ao presídio, fomos alojados em celas que abrigavam, cada uma delas, 60 estudantes, evidentemente em condições muito precárias. As portas de entrada e de saída das celas eram voltadas para um saguão retangular. Essa disposição física permitia que, nos horários das refeições que eram servidas nesse saguão, houvesse uma comunicação entre os estudantes das várias celas. Foram essas condições que permitiram o debate das teses do Congresso. O esquema planejado e executado foi o seguinte: em todas as celas, promoveu-se o debate das teses relativas à conjuntura internacional e nacional, à educação, ao movimento estudantil, ao calendário das lutas a serem desenvolvidas. Após o debate de cada um dos temas, procedia-se a votação, proclamava-se o resultado, tendo cada uma das tendências que apresentava propostas seus respectivos fiscais. No horário das refeições, em que todos daquela determinada cela saíam para o saguão, os fiscais comunicavam os resultados para os fiscais respectivos das outras celas, ao mesmo tempo em que contabilizavam os resultados verificados nessas outras celas. Dessa forma, a soma dos votos, obtidos em cada uma das celas para cada uma das propostas, permitia verificar quais as teses vencedoras.
Como a eleição para a diretoria da UNE, certamente seria definida com uma diferença muito pequena de votos, portanto numa disputa muito acirrada, não houve condições de realizá-la no Presídio Tiradentes. Acabou ocorrendo posteriormente, num congresso menor, no qual foi eleito como presidente o estudante Jean Marc Van de Weid.
No próximo artigo, pretendo escrever sobre o deslocamento dos estudantes para o Presídio Carandiru, a pressão dos familiares pela libertação e, finalmente, a soltura dos presos.
*Augusto César Petta é professor, sociólogo, coordenador-técnico do Centro Nacional de Estudos Sindicais e do Trabalho – CES, membro da Comissão da Verdade dos Trabalhadores em Educação do Setor Privado de Ensino instaurada pela Contee e ex-presidente do Sinpro Campinas e da Contee
O primeiro artigo da série está disponível em: http://contee.org.br/contee/index.php/2014/04/congresso-da-une-de-68-quando-a-lapa-fica-na-china/#.U3ElwPldUuc