Por uma educação democrática
Um passo importante para o fortalecimento da luta por uma escola pública, gratuita, laica e plural foi dado no dia 30 de junho. A data marcou a fundação do Movimento Educação Democrática (MDE), associação que nasce com o objetivo de conectar país afora trabalhadores, estudantes e pais que se preocupam com o crescimento das pautas conservadoras no campo educacional. O exemplo mais conhecido atende pelo nome de ‘Escola sem Partido’. Não por acaso, nos últimos dois anos a “semente” do MDE – o movimento ‘Professores contra o Escola sem Partido’ – centrou forças no combate aos projetos de lei que restringem a atuação do professor sob o argumento de que há “doutrinação de esquerda” e “propaganda de ideologia de gênero” nas salas de aula brasileiras. A partir de agora, a bandeira se amplia: o MDE quer continuar fazendo oposição ao Escola sem Partido, mas também pretende organizar a resistência ao crescente autoritarismo no desenho das políticas públicas da área e reconstruir, junto com a sociedade, os sentidos da democracia na educação.
“Não há a menor pretensão de que estejamos fundando a luta pela educação democrática, que vem de muito tempo”, esclareceu Fernando Penna, que será presidente do MDE pelos próximos três anos, para a plateia que lotou a sala Paulo Freire na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, Rio de janeiro. A trajetória dessa luta e seus desafios atuais foram o tema do debate que apresentou experiências de entidades como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), o Observatório da Laicidade na Educação (OLE) e o Coletivo Cultura Negra na Escola.
A onda conservadora na educação
“Trabalhadores da educação desafiam os pais. Vai ter gênero nas escolas sim”. “Escândalo: Ministério Público Federal libera o uso de crianças como massa de manobra de professores militantes”. “Iniciada a contagem regressiva para o fim da doutrinação nas escolas”. Essa é uma pequena amostra da atuação do Escola sem Partido nas redes sociais. O movimento, que se tornou a principal expressão da onda conservadora no campo da educação, atua junto a parlamentares em municípios, estados e no Congresso Nacional para aprovar um mesmo projeto de lei para proibir que professores veiculem conteúdos ou realizem atividades “que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis”.
Essa sintonia começou nas eleições de 2010, segundo o coordenador da CNDE, Daniel Cara. “Foi um divisor de águas”, disse, em referência ao segundo turno do pleito presidencial, marcado pelo debate sobre a descriminalização do aborto. “Na medida em que José Serra [candidato do PSDB, atualmente senador pela sigla] não conseguia mais pautar a sociedade brasileira, se serviu do tema para constranger a então candidata do PT, Dilma Rousseff, que tinha um diálogo com o movimento feminista. E ela caiu na cilada e recuou para essa pauta moral-cristã”, relembra. Para ele, um momento-chave dessa virada é a ida de Dilma à Basílica de Nossa Senhora Aparecida, para assistir à missa do dia 12 de outubro, feriado ligado à santa católica. “Três dias depois desse episódio, a Campanha aproveitou o Dia do Professor para entregar o manifesto pelo cumprimento do PNE [Plano Nacional de Educação] – que àquela altura sequer tinha chegado à Câmara de Deputados – aos candidatos. Foi impressionante ver a quantidade de movimentos católicos e evangélicos na agenda de Dilma”. A votação que elegeu Dilma Rousseff aconteceu em 31 de outubro.
A partir daí, conta Daniel, candidatos ultraconservadores começaram a conformar uma nova força no Congresso Nacional: “A pauta das igrejas neopentecostais e setores conservadores católicos é regressiva e isso ficou muito claro assim que terminaram as eleições”. Foi quando dois políticos do Rio de Janeiro – Eduardo Cunha e Anthony Garotinho, então deputados federais – lideraram um movimento paradigmático contra o que ficou conhecido como ‘kit-gay'”. O material produzido pelo governo federal no âmbito do projeto ‘Escola sem Homofobia’ se dirigia aos professores, buscando orientar a abordagem das questões relacionadas à sexualidade e gênero. Financiado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), o material estava pronto em 2011, quando se propagou que o “kit” se dirigia às crianças e visava incentivar “promiscuidade” e o “proselitismo gay”. “Nunca vou deixar de cobrar Fernando Haddad e a presidenta Dilma, que recuaram na distribuição. Em seu artigo na Piauí, Haddad fala que não estava nada pronto, etc. Não é verdade. Estava impresso e pronto para ser distribuído”, garante Daniel, em referência ao texto publicado pelo ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo na edição de junho da revista.
Segundo Daniel, antes do episódio, os parlamentares conservadores não conformavam um bloco, como desde há muito fazem os ruralistas. “Se reuniam, por exemplo, para a defesa do Estatuto da Família. Mas no cômputo geral, não eram uma força articulada. Cunha, que sempre foi conhecido como interlocutor do empresariado, passou a ser a principal liderança evangélica dentro do Congresso Nacional. A ascensão do Eduardo Cunha tem gênese aí. Em 2010, a bancada da Bíblia tinha 70 deputados. Hoje, são 75, já fizeram um presidente da Câmara e sua atuação apontou o caminho que políticos como [Jair] Bolsonaro [PSC] começaram a traçar”, analisou.
Mas se a expressão institucional da onda conservadora só ficou clara há sete anos, o caldo de cultura que em que ela fermentou foi formado pelo menos uma década antes, garante Fernando Penna. Usando como ponto de partida o Escola sem Partido, o coordenador do MDE e professor da UFF chegou à conclusão, em sua pesquisa, de que o movimento se aproveitou de elementos do discurso conservador que já existiam. Penna citou como exemplo um texto do filósofo Olavo de Carvalho escrito no início dos anos 2000. Nele, o guru da nova direita brasileira já utiliza a expressão “estupro intelectual”, que hoje é largamente usada pelo Escola sem Partido na sua cruzada de criminalização da figura do professor. “O Escola sem Partido tem uma dupla certidão de nascimento. Seu fundador, o advogado Miguel Nagib, sempre conta a história de que fundou o movimento com base numa experiência pessoal. Mas o que o Escola sem Partido fez foi fixar elementos de um discurso que já tinha repercussão”.
“Sequestro intelectual”, “síndrome de Estocolmo”, estudantes “dóceis” à “propaganda comunista”. Expressões como essas demonstram, segundo Penna, que o Escola sem Partido e a direita brasileira constroem um discurso sob medida para despertar desconfiança nas famílias em relação a tudo que se refira ao campo educacional. “Quem é o outro nesse discurso? Quem fica do lado de fora é o professor, a escola, a pedagogia – os inimigos que devem ser destruídos”, responde, acrescentando: “Recentemente, numa audiência pública, Miguel Nagib disse que quando os professores alegam que os estudantes não são folhas em branco, agem como ‘um estuprador que justifica o abuso de uma menina de 12 anos'”.
Para Penna, além de o Escola sem Partido ser o ponto modal de um discurso mais amplo que ele – o do “antiesquerdismo”, atual herdeiro do “anticomunismo” da Guerra Fria –, o movimento tem feito um link importante com o discurso da bancada da Bíblia, sua aliada no Congresso Nacional, ao incorporar o termo “ideologia de gênero”. “Com isso, eles tentam fixar que educar é uma tentativa de transformar os jovens em gays, lésbicas, destruir a família tradicional… Quando educar é desconstruir a discriminação, o machismo, a homofobia, a transfobia. O inimigo é o professor, mas também o movimento LGBT, o feminismo, etc.”.
Surfando na pauta moral
De acordo com Daniel Cara, há uma novidade nesse cenário. Segundo ele, a pauta ultraconservadora está sendo apropriada por movimentos que na sua origem se diziam liberais e vêm sofrendo debandada da sua base social por defender mudanças impopulares como as reformas previdenciária e trabalhista. Episódios recentes parecem demonstrar isso. No último 25 de maio, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e o Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH) participaram de uma audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a Organização dos Estados Americanos, para tratar dos impactos do Escola sem Partido nas instituições de ensino e também denunciar a retirada das expressões “gênero” e “orientação sexual” da última versão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), entregue pelo Ministério da Educação (MEC) ao Conselho Nacional de Educação no dia 6 de abril. A Campanha e o IDDH também levaram essas denúncias às Nações Unidas. Em resposta, a ONU afirmou que há influência de “ideias conservadoras” na definição da BNCC e pediu explicações ao governo brasileiro sobre o Escola sem Partido. A partir da divulgação dessas notícias, o Movimento Brasil Livre (MBL) passou a atacar as entidades.
“O MBL entrou na pauta do Bolsonaro e isso significa que a luta nas escolas públicas tem que ser feroz. O MBL é o futuro do Escola sem Partido. O movimento percebeu que a pauta liberal começou a ter forte rejeição. Na próxima eleição, o governo Temer estará sub júdice. Haverá um desgaste da pauta ultraliberal. O problema é que a pauta ultraconservadora vai permanecer. Não é só dizer que tem doutrinação marxista, não é só atacar a pauta LGBT e falar que existe ‘proselitismo gay’ na escola brasileira – quando, ao contrário, nossa escola é extremamente discriminatória. É também evitar o debate contra discriminação racial e de classe”, aponta Daniel, arrematando: “São movimentos conservadores no sentido estrito da palavra. Querem manter a sociedade brasileira do jeito que ela é: uma sociedade de privilégios”.
Lissa Passos, do Coletivo Cultura Negra na Escola, defendeu a importância de a educação brasileira superar o racismo que impera no sistema educacional hoje. “No currículo de História, depois que o negro ganha, entre aspas, alforria ele some. Cadê o negro na abolição? Na luta contra a ditadura? Retirar a possibilidade de sabermos do nosso passado tem nome: é epistemicídio, uma forma de genocídio. Pensar numa educação democrática é pensar em inclusão mesmo: não são histórias homogêneas. A história do homem branco ocidental cristão está longe de ser a única que existe. Se você não faz parte deste seleto grupo, lamento, mas o currículo de história não é para você, que terá sua identidade negativada e apagada ao mesmo tempo”, afirmou. A organização, criada há três anos, começou oferecendo oficinas para escolas e, hoje, organiza um projeto-piloto de revisão do currículo de História em um colégio estadual em Niterói (RJ).
Fio condutor das lutas
“O mundo não pula ora numa perna só, ora na outra. O mundo caminha com as duas pernas. As contradições não são acidentes de percurso, são inerentes aos processos”. A frase, de Luiz Antonio Cunha, serve para espantar o fatalismo de quem acompanha de perto a conjuntura política e se preocupa com o avanço do conservadorismo no país. Isso porque, segundo ele, ao mesmo tempo em que os militantes que lutam pela democracia na educação podem sentir que estão apenas sendo reativos aos retrocessos no campo, também a direita conservadora é reativa ao crescimento dos movimentos ligados aos direitos civis no país que luta, dentre outras coisas, por mais pluralismo nas salas de aula. “Acredito que estamos em uma segunda onda laica, cuja vanguarda é o movimento LGBT”, disse o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Observatório da Laicidade na Educação.
Luiz Antonio destacou pontos de contato entre ataques à educação passados e atuais e defendeu que, se algumas políticas autoritárias e processos de privatização se apresentam de roupa nova, a luta continua na mesma direção. É o caso da reforma do ensino médio, um dos focos de crítica do Movimento Educação Democrática. “No período da ditadura empresarial-militar foi muito importante a luta contra a política de profissionalização universal e compulsória no segundo grau. Em determinados momentos, parece que determinadas ideias vão resolver todos os problemas. Era o que se dizia da profissionalização compulsória em 1970: ‘Agora, sim, o ensino do segundo grau vai ter significado’; ‘os estudantes vão ser qualificados para um mercado de trabalho supostamente carente’. Essa política foi o maior fracasso”, lembra. Segundo o professor, quando a ditadura “começou a se desboroar”, o governo Geisel percebeu a dificuldade de continuação do mecanismo de sustentação autoritária do governo e começou a famosa abertura lenta, gradual e segura. “A implicação disso? Cada área de atividade do governo tinha que descobrir o que gerava mais tensões e distensionar. Na educação, esse foco era a profissionalização compulsória que a partir daí foi reinterpretada pelo Conselho Nacional de Educação até que, em um período de dez anos, os pareceres do CNE mudaram a lei que era a ‘salvadora das políticas educacionais no Brasil'”.
Qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência. O Novo Ensino Médio, que prevê que os estudantes escolham itinerários formativos, dentre eles, a formação técnica e profissional, é anunciado pelo governo Temer como salvação. “A perspectiva da profissionalização volta hoje sem a compulsoriedade, abrindo alternativas para diferentes projetos, retomando na clandestinidade a perspectiva de contenção da demanda de ensino superior”, avalia Luiz Antonio.
Construindo estratégias
A mesa com entidades também debateu estratégias de ação que podem ser adotadas pelo Movimento Escola Democrática. Daniel Cara fez duas sugestões. A primeira delas diz respeito ao campo jurídico e mira especificamente o Escola sem Partido. Isso porque os projetos apresentados pelo movimento em casas parlamentares no país inteiro, segundo ele, não cumprem prerrogativas básicas. “Toda lei tem que ser exigível, ou seja: o cidadão tem que poder acionar Estado e o sistema de justiça em situações de descumprimento. Toda lei tem que ser implementável. Tem que sair do papel. E ser compreensível. As pessoas têm que ter clareza do que a lei pede. Nenhum PL [do Escola sem Partido] cumpre esses critérios”, garante.
A segunda estratégia é levar o embate para o campo pedagógico e se dirige ao Escola sem Partido e a outros movimentos que flertam com suas ideias. “Quando eu vou para o debate com o Escola sem Partido, a primeira pergunta que eu faço é: ‘o que você acha que é educação?’. Dá ‘tilt’ porque eles não sabem responder. Sabem responder o que é doutrinação, proselitismo comunista, síndrome de Estocolmo…”, ironizou, reforçando: “A melhor resposta é retomar debate educacional. Retomar o controle da área, discutir educação com base na valorização docente, exemplos de boa pedagogia. Quando eleva o debate para essa questão, eles não acompanham mais”.
Usando a experiência do ‘Professores contra o Escola sem Partido’, Fernando Penna afirmou que o Movimento Educação Democrática vai continuar desconstruindo o discurso conservador e moral na educação para reconstruir a liga dos educadores com a sociedade brasileira. “Tentamos fazer um debate em todos os espaços e construir um discurso fundamentado que chegue às pessoas que não conhecem a discussão educacional e estão sendo manipuladas por esse pânico moral”, afirmou o presidente do MDE.
Para se filiar ao Movimento Educação Democrática, basta acessar a página no Facebook e baixar o formulário de inscrição. Por ser uma associação, a filiação se restringe a pessoas físicas. As entidades e instituições que quiserem apoiar o movimento podem entrar em contato também pela página do MDE na rede social.