Como militares ganharam protagonismo inédito no Brasil desde a redemocratização
Era uma sexta-feira, o quinto dia da greve dos caminhoneiros. A crise de abastecimento se agravava. Nos postos de gasolina, as filas cresciam. Nos supermercados, prateleiras de produtos não perecíveis estavam vazias. Os caminhoneiros haviam ignorado o acordo anunciado pelo governo. Foi nesse clima que o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, anunciou, naquela noite, que o presidente Temer entregaria a tarefa de liberar as rodovias bloqueadas às Forças Armadas.
Através de um decreto, lançando uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o governo determinava uma missão militar com atuação em todo o território nacional, coordenada pelo general Sergio Etchegoyen, ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional).
A partir daí, coube a um almirante, Ademir Sobrinho, chefe do Estado Maior Conjunto, informar diariamente a população brasileira sobre a situação do abastecimento de aeroportos e serviços públicos essenciais, como saúde, segurança pública e energia.
A presença de um general do Exército no comando de uma ação nacional antigreve e de um oficial da Marinha no papel de porta-voz da operação ilustram como militares se tornaram cada vez mais presentes na vida política do país no governo Michel Temer (MDB).
Essa tendência, que já se mostrava em nomeações para cargos estratégicos, no recurso frequente a operações de GLO e na intervenção federal na segurança pública do Rio, ficou escancarada durante a paralisação dos caminhoneiros.
Desde a redemocratização, o governo Temer é o primeiro a colocar um militar, o general Joaquim Silva e Luna, no comando do Ministério da Defesa, criado em 1999. É também o primeiro a colocar um Estado sob intervenção federal, o Rio de Janeiro.
Também é um militar o Secretário Nacional de Segurança Pública, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, e a Funai (Fundação Nacional do Índio) chegou a ser comandada por outro, general Franklimberg Ribeiro Freitas.
Especialistas ouvidos pela BBC avaliam que isso aconteceu devido a características do governo Temer e ao momento por que passa o país. Eles dizem que esse protagonismo militar aumenta à medida que a crise do sistema político se agrava e que o governo com a pior avaliação das últimas décadas se apoia no prestígio de que gozam as Forças Armadas.
Pesquisa Datafolha feita em julho de 2017 mostrou que as Forças Armadas são a instituição em que brasileiros depositam mais confiança no país hoje, enquanto o Congresso, a Presidência e os partidos políticos caíram em descrédito. O governo do presidente Temer, por sua vez, é considerado ruim ou péssimo por 70% dos brasileiros, também segundo o Datafolha.
Ainda antes da conclusão do processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT), apareceram indícios de que nos bastidores do poder se buscava envolver os militares nos rumos políticos do país.
Numa gravação obtida por investigadores e divulgada em maio de 2016, o então senador licenciado Romero Jucá (MDB), atual líder do governo no Senado, defendia que a solução para “estancar a sangria” provocada pela operação Lava Jato seria “pôr o Michel (Temer)”. Mais adiante, Jucá, em conversa com Sérgio Machado, então diretor da Transpetro, afirmava que já estava “conversando com os generais, comandantes militares”.
Segundo Jucá, estava “tudo tranquilo” e os militares iriam “garantir”.
Temer, ainda presidente interino, recriou o GSI , um órgão de assessoramento da Presidência da República para assuntos de segurança nacional que controla a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) – e que havia sido extinto pelo governo Dilma Rousseff em 2015. Para o comando da pasta, ele nomeou Etchegoyen, que ocupava o cargo de Chefe do Estado-Maior do Exército quando foi convocado.
Etchegoyen passou a ser uma das vozes mais influentes do círculo do presidente, segundo pessoas próximas a Temer. Teve papel importante no decreto de intervenção no Rio e atuou em crises como a dos refugiados venezuelanos em Roraima e a greve dos caminhoneiros.
Etchegoyen é crítico notório da Comissão da Verdade, criada em 2011, no governo Dilma Rousseff (PT), para investigar crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985). Seu pai, o general Leo Guedes Etchegoyen, está entre os 377 agentes públicos que a Comissão considerou responsáveis pela repressão política. Quando o relatório da comissão foi concluído, a família fez uma nota repudiando o documento, que chamou de “leviano” e “patético”.
Mas foi a nomeação, em fevereiro de 2018, do general Joaquim Silva e Luna para o Ministério da Defesa que provocou mais reações negativas daqueles que veem como excessivo o papel concedido a militares no governo Temer.
“No GSI, é normal que haja um militar porque é uma posição que exige conhecimento técnico. Na Defesa, não. O ministério foi criado justamente para subordinar os militares aos civis”, diz o cientista político da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Claudio Couto.
Couto lembra que o governo de José Sarney (1985-1990) também foi marcado pela influência das Forças Armadas: “Era um governo com tutela militar”, diz o pesquisador. Primeiro presidente após a ditadura, Sarney era vice de Tancredo Neves, que morreu antes de tomar posse, e era do PDS (Partido Democrático Social), herdeiro do Arena, partido que apoiava o regime ditatorial antes do seu fim.
“Não faz nenhum sentido, depois de tantos anos de tentativa de controlar os militares com a democracia civil, colocar um general no comando da Defesa. Provoca um desconforto entre a Marinha e a Força Aérea, que estão sendo comandadas agora pelo Exército”, diz o pesquisador João Roberto Martins Filho, professor da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), que se dedica há décadas a estudar os militares.
Exército no comando da segurança do Rio
No círculo de ministro mais próximos a Temer, as Forças Armadas têm o entusiasmo de Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa e hoje chefe do Ministério Extraordinário de Segurança Pública. Na cerimônia de posse do seu sucessor na pasta da Defesa, general Silva e Luna, Jungmann disse: “Eu pude me reaproximar da grandeza, da significação, do compromisso, da qualidade do que fazem as Forças Armadas. Tenho a certeza que, com elas, por elas e, também pelo seu povo, o Brasil pode sonhar com um futuro melhor.”
Como ministro da Defesa, assinou, junto com Temer e os ministros Etchegoyen, Carlos Marun (Secretaria de Governo) e Torquato Jardim (Justiça), o decreto de intervenção federal na segurança pública do Rio. Foi nomeado para o cargo de interventor o general Walter Souza Braga Netto. A medida também colocou um militar, o general Richard Fernandez Nunes, no cargo de secretário de Segurança do Estado.
O Exército, que antes dava apoio às operações conjuntas, passou então a comandar a segurança do Rio.
Operações da ‘Garantia da Lei e da Ordem’
Jungmann é defensor da transferência de recursos federais para operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), que vêm sendo usadas com frequência para apagar incêndios na segurança pública. As missões de GLOs estão previstas na Constituição, mas só são realizadas com ordem expressa da Presidência da República e devem ser usadas em casos nos quais as forças tradicionais de segurança pública não têm condições de lidar com graves situações de perturbação da ordem.
A cada vez que uma GLO é decretada, o governo federal pode, ainda que não seja regra, transferir recursos para a Defesa. O valor de recursos para a Operação São Cristóvão, nome dado à ação das tropas federais na greve dos caminhoneiros, foi de R$ 80 milhões.
Em número de GLOs, no entanto, Temer não é tão diferente de sua antecessora na Presidência. Dados do Ministério da Defesa mostram que, em dois anos de governo, ele decretou 14 GLOs, média de sete por ano, contra 27 de Dilma, em cinco anos de governo, média de cinco por ano.
Na era Temer, houve varreduras em presídios, militares nas ruas do Distrito Federal, Pernambuco, Espírito Santo, Rio Grande do Norte e, finalmente, no Rio de Janeiro, onde o governo foi além, decretando a intervenção federal.
“No que diz respeito ao emprego de GLOs, o governo Temer apenas dá continuidade ao que outros fizeram, que é empregar as Forças Armadas a cada soluço na segurança pública. A diferença é que eles foram se tornando cada vez mais frequentes”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A Constituição prevê que as Forças Armadas poderiam ser usadas, a pedido da Presidência da República, para a garantia da lei e da ordem. As normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das forças foram definidas numa lei complementar de 1999, na época do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), mas a regulamentação e o manual que descreve os procedimentos a serem seguidos pelas Forças Armadas na eventualidade de decretação de GLO só vieram em 2013, no governo Dilma.
Dentro das Forças Armadas, essa exposição toda está longe de ser unanimidade. Em dezembro de 2017, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, criticou o emprego excessivo de suas forças. “Preocupa-me o constante emprego do Exército em ‘intervenções’ (GLO) nos Estados. Só no Rio Grande do Norte, as Forças Armadas já foram usadas 3 vezes, em 18 meses”, disse ele no Twitter, ressaltando ainda que a segurança pública deveria ser tratada pelos Estados como prioridade máxima.
“E se, no caso da intervenção do Rio de Janeiro, houver uma morte, uma repressão mais violenta? Há muitos militares preocupados com a imagem da instituição”, diz o professor da Ufscar. Para ele, o mesmo vale para a greve dos caminhoneiros. “Eles sabem que estão seguindo, como a lei manda, um governo altamente impopular, e eles têm medo de serem queimados na fogueira da crise geral. Infelizmente, eles estão sendo usados com uma frequência assustadora.”
Para o professor do programa de pós-graduação da Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército) e pesquisador do Observatório Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, Carlos Frederico Coelho, há quem avalie que é uma situação perde-perde.
“Se der errado, a culpa é dos militares. Se der certo, vão pedir mais, afinal, elas (as Forças Armadas) já vêm sendo empregadas para diversos fins. Nesse sentido, cumpre proteger o ofício militar, que não pode ser banalizado. Além de aumentar a pressão sobre as Forças Armadas, o emprego constante gera incertezas sobre as proteções jurídicas necessárias.”
Atendendo a essa preocupação, o governo Temer aprovou, em 2017, lei que transfere para a Justiça Militar o julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados contra civis por militares quando em atividade operacional, como nas missões do tipo GLO.
Governo ‘pega carona’ em aprovação de militares
Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acha que há na população brasileira um sentimento difuso de reivindicação de ordem, “que se exacerba num momento de crises diversas”, um ambiente que explica os índices de confiança depositados nos militares.
“Num ambiente político extremamente contaminado, a sociedade se volta para a instituição cujo símbolo é a estabilidade e o profissionalismo”, agrega o professor da Eceme Carlos Frederico Coelho.
E foi o governo Temer que, para o pesquisador João Roberto Martins Filho, da UFSCar, deu o empurrão necessário para recolocar os militares em papel de destaque nos acontecimentos do país.
“Os militares do Exército saíram da posição discreta em que estavam durante a crise que levou ao impeachment da presidente Dilma. Saíram dessa posição porque o governo Temer, com a fraqueza que o caracteriza desde o começo, se apresentou desde o início como uma espécie de governo da ordem. E, conscientemente, envolveu as Forças Armadas nessa perspectiva como única forma de se manter”, diz ele.
Generais rechaçam a ideia de intervenção militar
Desde os atos a favor do impeachment de Dilma Rousseff em 2015 que vinham aparecendo, em manifestações de rua, pedidos por intervenção militar – e estes ganharam força nos protestos de caminhoneiros.
Militares ligados ao governo reiteram que este não encontra eco nas Forças Armadas. O general Etchegoyen disse, na última terça-feira (29), que intervenção militar “é um assunto do século passado” e que nenhum militar das Forças Armadas está “pensando nisso”.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o general Silva e Luna, da Defesa, disse que os pedidos de intervenção o incomodam porque dão a impressão de que as Forças Armadas estão por trás desse movimento, o que, segundo ele, não é verdade.
Quando foi decretada GLO em todo o território nacional, o comandante do Exército, general Villas Bôas, disse, no Twitter: “Mais uma vez, o Exército será empregado em uma operação de garantia da lei e da ordem, a fim de atender às necessidades da população afetada pela ‘greve dos caminhoneiros’. Como sempre, agiremos com base na CF [Constituição Federal], em apoio às instituições e pela democracia”.
O atual comandante do Exército, que é visto por quem acompanha as Forças Armadas como moderado, revelou, em 2017, que lutava contra uma doença degenerativa que o levou à cadeira de rodas. Ainda assim, permaneceu no comando da instituição.
No entanto, especialistas como João Roberto Martins Filho, da UFSCar, sugerem que Villas Bôas pode estar sob pressão de setores mais conservadores do Exército.
“Há uma identificação do oficialato (oficiais) com o que a classe média expressa dentro dessa crise. Houve uma guinada mais conservadora [nessa classe]”, diz Martins Filho, que vê com preocupação os rumos da relação entre as Forças Armadas e a sociedade neste momento.
“Estávamos caminhando lentamente para o controle democrático das Forças Armadas, mas não havia ainda uma mentalidade democrática dentro delas. Há um respeito aos limites legais, mas isso é diferente de haver uma consciência e uma cultura democrática. Essa, eu acho, infelizmente não chegou”, avalia.