Sinpro/RS: Acordo UE/Mercosul — receita para o desastre

O acordo entre a União Europeia e o Mercosul, assinado depois de muitos anos de negociações, vem provocando debates e controvérsias. De um lado, para os que são favoráveis, o acordo vai permitir o acesso ao mercado europeu para nossos produtos primários, integrando o Brasil na economia global, ampliando nossos fluxos comerciais. O governo e grande parte da mídia apresentam a assinatura do acordo como uma vitória diplomática dos governos de Macri e Bolsonaro. Os analistas do “mercado” e os representantes do agronegócio comemoram as novas perspectivas econômicas que se abrem.

No entanto, um olhar mais rigoroso sobre os impactos do acordo mostra que sua implementação pode levar também a perdas significativas. Setores como os do leite e do vinho, importantes aqui no Rio Grande do Sul, já sabem que serão afetados. E a indústria brasileira, já combalida por uma sucessão de fatores conjunturais e estruturais, também conhece os riscos de uma abertura para a competição com as indústrias da União Europeia. Um conjunto grande de economistas como Paulo Nogueira Batista Jr, Bresser Pereira, Laura Carvalho e muitos outros já refletiram com mais propriedade sobre o impacto de um acordo no qual basicamente beneficiamos nosso setor do agronegócio em detrimento da indústria e dos serviços. Estaremos, portanto, frente a um modelo clássico de relação neocolonial. Venderemos produtos primários, de baixo valor agregado, abrindo em troca nosso mercado nas áreas industriais e de serviços, justamente as mais dinâmicas e intensivas em tecnologia.

O argumento de que a presença das empresas europeias vai levar a um aumento da competitividade da indústria e do setor de serviços no Mercosul não resiste a um exame dos fatos. Os impactos da abertura comercial que vivemos nos anos 90, durante os governos de Collor e os dois mandatos de FHC não levaram ao esperado aumento da competitividade de nossas indústrias. A Argentina, que vinha vivendo este processo desde os tempos da ditadura militar, tampouco avançou muito depois de décadas de abertura econômica. O resultado real em ambos os casos foi um processo crescente de desindustrialização precoce de nossas economias. O caso recente do México, que desde os anos 90 abriu sua economia através de tratados de livre-comércio com os EUA e com a Europa, é outro que demonstra o quanto as políticas de abertura em geral produziram mais problemas do que avanços.

No entanto, para além das consequências mais evidentes do ponto de vista de uma dinâmica de trocas desiguais, há também outras consequências que têm sido pouco debatidas. E estas podem vir a ser ainda mais graves. Uma primeira diz respeito aos temas do setor de serviços e, particularmente, dos direitos de propriedade intelectual. Enquanto nos preocupamos em vender soja, açúcar, café e carne, os europeus estabelecem regras relativas a assuntos que podem bloquear avanços tecnológicos e sociais por aqui. Patentes, direitos de propriedade intelectual, compras estatais, mecanismos políticos de defesa e domínio tecnológico são cuidadosamente normatizados no acordo de forma a garantir o controle europeu sobre o conhecimento. Portanto, na prática, estamos beneficiando um dos setores mais arcaicos de nossa economia (o agronegócio) em troca de comprometer nossas possibilidades justamente naqueles setores que têm uma perspectiva de futuro (a economia do conhecimento). Receita para o desastre.

Área atingida por incêndio florestal no Pará: “O tratamento irresponsável do governo brasileiro em relação à gestão do Fundo Amazônico, as mudanças legais e políticas em relação às áreas indígenas e à ocupação predatória do território amazônico já são muito visíveis em todo o mundo”

Por fim, é importante considerar também que entre o texto frio das cláusulas dos acordos e a realidade da dinâmica política quase sempre há uma distância significativa. Os eventuais resultados positivos para o agronegócio brasileiro, que são o único argumento para justificar que o acordo pode ser benéfico para nossa economia, podem vir a ser anulados pela resistência dos próprios consumidores e dos mercados europeus. Neste caso são as próprias contradições do projeto bolsonarista que vão anular os poucos impactos favoráveis que os acordos poderiam vir a ocasionar.

Isto porque o sistema de produção do agronegócio brasileiro se caracteriza justamente por ter boa parte de sua competitividade decorrente de práticas predatórias em relação ao meio ambiente e às relações de trabalho. O desmatamento da Amazônia, o uso intensivo de agrotóxicos proibidos na União Europeia, as normas sanitárias e trabalhistas mais “flexíveis” no setor agroalimentar nacional seguramente vão provocar reações dos consumidores, assim como dos agricultores europeus. O tratamento irresponsável do governo brasileiro em relação à gestão do Fundo Amazônico, as mudanças legais e políticas em relação às áreas indígenas e à ocupação predatória do território amazônico já são muito visíveis em todo o mundo.

É muito provável que em pouco tempo estejamos frente a movimentos (justos) de boicote a produtos brasileiros, motivados por critérios ambientais, políticos e sociais. E ainda que o tratado formalmente garanta nosso acesso ao mercado europeu, este mesmo mercado pode vir a rejeitar nossos produtos. Neste caso teremos aberto as portas de nossa economia, sacrificado nossa indústria e entregado o setor de serviços em troca de praticamente nada.

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*Tarson Nuñez é doutor em Ciência Política pela Ufrgs. Pós-doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS, consultor do Banco Mundial para temas de participação cidadã, coordenador de relações internacionais do governo do estado 2011/2014.

Do jornal Extra Classe, do Sinpro/RS

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