MP 936 é inconstitucional e mostra perversidade de Bolsonaro contra os trabalhadores

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

“Meu amigo, a imaginação e o espírito têm limites; a não ser a famosa botelha dos saltimbancos e a credulidade dos homens, nada conheço inesgotável debaixo do sol”.

Essa metáfora é de Machado de Assis, extraída do conto “O anel de Polícrates”, publicado em 1881.

Certamente, se Machado de Assis vivesse no Brasil de agora, sobretudo o que emergiu das eleições presidenciais de 2018, seria obrigado a substituir essa belíssima metáfora pela seguinte caricatura: “A não ser a maldade de Bolsonaro e sua equipe econômica, nada conheço de mais maléfico e inesgotável debaixo do sol”.

Comprovando essa assertiva que, felizmente para Machado de Assis, o tempo poupou-lhe da obrigação de escrever, Bolsonaro baixou (tecnicamente seria editou, mas, como se trata de imposição, é mais apropriado dizer baixou), ao 1º de abril — sua data preferida, por ser o dia da mentira e do golpe militar de 1964 —, a Medida Provisória (MP) 936, com a pomposa ementa:

“Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e dá outras providências”.

Essa MP, tal qual a 927, ambas com status de lei ordinária temporária, passa ao largo da Constituição Federal (CF), afastando os seus comandos exarados no Art. 7º, caput e inciso VI, que assim determinam:

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[…]

VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”.

Essa garantia constitucional é de eficácia plena, ou seja, não depende de nenhuma regulamentação infraconstitucional. Por essa razão, a única redução de sua plenitude que comporta é a nele prevista, qual seja a que decorrer de convenção ou acordo coletivo.

Ora, a MP tem como objeto principal a redução salarial, pelo modo de redução da carga horária contratada e dos salários, em igual proporção, que pode ser de 25%, 50% e 70%, por até 90 dias, e pelo modo de suspensão do contrato, pelo período de até 60 dias.

No entanto, em absoluto desprezo ao inafastável comando constitucional inserto no Art. 7º, inciso VI, e, por conseguinte, em total inversão da ordem da hierarquia das normas, diz que os seus dispositivos valem mais do que aquele.

Com essa teratológica (monstruosa) inversão, autoriza as duas realçadas formas de redução salarial por meio de simulacro de acordo individual, em que o empregador dita e o empregado cumpre, para quem recebe até três salários mínimos (R$ 3.135,00) ou mais de R$ 12.102,12 (duas vezes o teto do regime geral de Previdência Social mais um centavo) e tenha diploma de curso superior.

Para os demais trabalhadores, que se enquadram na faixa entre R$ 3.134,99 e R$ 12.102,12, a redução de jornada e salário, se for superior a 25%, e a suspensão do contrato de trabalho somente são autorizadas por meio de negociação coletiva. Nos casos em que a redução da jornada e dos salários ficar na faixa de 25%, o “acordo” será individual, não importando a faixa salarial.

Como se não bastasse a já citada afronta ao comando do Art. 7º, inciso VI, da CF, a MP em questão atenta também contra o universal princípio da isonomia, inserto no Art. 5°, caput, também da CF, por tratar de forma desigual os iguais, posto que submete os trabalhadores de menor poder aquisitivo ao famigerado “acordo individual”, em que só vale a vontade patronal, enquanto os outros, salvo redução salarial na faixa de 25%, são salvaguardados pelo manto de negociação coletiva (o que, neste contexto de devassa de direitos, não representa muito, porém, bem mais do que o arremedo de acordo individual, que traz como única certeza a extorsão de direito).

O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) que, nos últimos anos, tem sido impiedoso com os trabalhadores e os seus sindicatos, no recurso extraordinário 590415, reconheceu expressa e solenemente que as relações individuais de trabalho são assimétricas (desiguais); daí não se emprestar validade jurídica à renúncia individual de direitos, como estabelecem as MPs 927 e 936.

“ […]

3. No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual.

[…]

8. O direito individual do trabalho tem na relação de trabalho estabelecida entre o empregador e a pessoa física do empregado o elemento básico a partir do qual constrói os institutos e regras de interpretação. Justamente porque se reconhece, no âmbito das relações individuais, a desigualdade econômica e de poder entre as partes, as normas que regem tais relações são voltadas à tutela do trabalhador.

Entende-se que a situação de inferioridade do empregado compromete o livre exercício da autonomia individual da vontade e que, nesse contexto, regras de origem heterônoma — produzidas pelo Estado — desempenham um papel primordial de defesa da parte hipossuficiente.

Também por isso a aplicação do direito rege-se pelo princípio da proteção, optando-se pela norma mais favorável ao trabalhador na interpretação e na solução de antinomias”.

A MP 936 afronta, com igual desprezo, os comandos do Art. 8º, incisos III e VI, que dispõem, de forma imperativa:

“Art. 8º:

[…]

III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;

[…]

VI – é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho”.

Frise-se que esses dispositivos, por serem de eficácia plena, ou seja, independem de qualquer regulamentação, não se sujeitam a nenhuma redução por norma infraconstitucional, como é o caso de medidas provisórias.

Não bastasse tudo quanto já se registrou, o gigantesco custo da MP 936 tem como contrapartida poucas e diminutas garantias, se é que assim podem ser chamadas, que são incapazes de proporcionar o mínimo de segurança aos trabalhadores que forem submetidos às medidas — na verdade, medidas de desproteção — por ela ditadas.

O chamado benefício emergencial previsto na MP sob discussão, além de ser por demais modesto, é de natureza temporária e indenizatória, não se incorporando aos salários, para nenhum efeito, nem mesmo para o cálculo do FGTS devido.

Nos termos do Art. 6º da MP 936: “O valor do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda terá como base de cálculo o valor mensal do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, nos termos do art. 5º da Lei nº 7.998, de 1990, observadas as seguintes disposições:

I – na hipótese de redução de jornada de trabalho e de salário, será calculado aplicando-se sobre a base de cálculo o percentual da redução; e

II – na hipótese de suspensão temporária do contrato de trabalho, terá valor mensal:

a) equivalente a cem por cento do valor do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, na hipótese prevista no caput do art. 8º; ou

b) equivalente a setenta por cento do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, na hipótese prevista no § 5º do art. 8º”.

O § 5º do Art. 8º diz respeito às empresas que tiverem auferido, no ano-calendário de 2019, receita bruta superior a R$ 4,8 milhões. Segundo esse dispositivo, tais empresas somente poderão suspender o contrato de trabalho de seus empregados se lhes garantir “ajuda compensatória” mensal, no valor de 30% do valor dos seus respectivos salários.

A isso se soma o fato de determinar que as contribuições previdenciárias no período em que se encontrar recebendo benefício de emergência correm por conta do trabalhador; se não as recolher, o período não será computado para efeito de aquisição de nenhum benefício previdenciário.

Apesar de todas as monstruosas inconstitucionalidades retroapontadas, é de se esperar que a sensatez prevaleça e que nenhum dos legitimados a propor ação de direta de inconstitucionalidade (ADI) persiga esse caminho. Isso porque o STF já deu inúmeras provas de sua vocação de defender cegamente os ataques à CF, de quem é guardião.

Para comprovar essa assertiva, basta que se tome a decisão monocrática do ministro Marco Aurélio, na ADI 6342, ajuizada pelo PDT, de defesa enfática dos dispositivos da MP 927, que são mais nocivos do que os da MP 936.

O campo de atuação institucional, nesse momento, é no Congresso Nacional, visando a rechaçar essas duas medidas, ou, ao menos, restabelecer a ordem constitucional, assegurada nos citados Art.s 7º, inciso VI, e 8º, III e VI, da CF.

Isso, claro, respaldado por mobilização das entidades sindicais e dos trabalhadores que representam.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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