O princípio democrático da isonomia que o STF rejeitou

O que não foi dito sobre a ADPF 276, julgada pelo STF, em julgamento virtual, de 8 a 14 de maio corrente

Por José Geraldo de Santana Oliveira*

Portais jurídicos, no dia 15 de maio corrente, deram destaque à decisão do STF, proferida por meio de julgamento virtual, de 8 a 14 deste mês, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), tendo como autora a Contee, declarando constitucionais o Art. 522 da CLT e a Súmula 369 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que limita a sete efetivos e a sete suplentes o total de dirigentes sindicais que gozam de estabilidade provisória, assegurada pelo Art. 8º, inciso VIII, da Constituição Federal (CF).

Como a referida notícia cinge-se à divulgação do resultado do julgamento, que é o seu único objetivo, traz-se, aqui, breve histórico dessa ADPF, para que não remanesçam dúvidas sobre o seu porquê e o que se postulou nela.

O Art. 522 da CLT — com redação dada pelo Decreto-lei N. 9502, de 23 de julho de de 1946 —, dispõe:

“Art. 522. A administração do sindicato será exercida por uma diretoria constituída no máximo de sete e no mínimo de três membros e de um Conselho Fiscal composto de três membros, eleitos esses órgãos pela Assembléia Geral”.

A Súmula 369 do TST — atualizada em 2012 pela Resolução N.185, daquele ano —, que trata da estabilidade provisória dos dirigentes sindicais, assevera:

“Súmula nº 369 do TST

DIRIGENTE SINDICAL. ESTABILIDADE PROVISÓRIA

I – É assegurada a estabilidade provisória ao empregado dirigente sindical, ainda que a comunicação do registro da candidatura ou da eleição e da posse seja realizada fora do prazo previsto no art. 543, § 5º, da CLT, desde que a ciência ao empregador, por qualquer meio, ocorra na vigência do contrato de trabalho.

II – O art. 522 da CLT foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Fica limitada, assim, a estabilidade a que alude o art. 543, § 3.º, da CLT a sete dirigentes sindicais e igual número de suplentes.

III – O empregado de categoria diferenciada eleito dirigente sindical só goza de estabilidade se exercer na empresa atividade pertinente à categoria profissional do sindicato para o qual foi eleito dirigente.

IV – Havendo extinção da atividade empresarial no âmbito da base territorial do sindicato, não há razão para subsistir a estabilidade.

V – O registro da candidatura do empregado a cargo de dirigente sindical durante o período de aviso prévio, ainda que indenizado, não lhe assegura a estabilidade, visto que inaplicável a regra do § 3º do art. 543 da Consolidação das Leis do Trabalho”.

Por entender que o Art. e a Súmula em questão não guardam sintonia com a liberdade de organização sindical assegurada pelo Art. 8º da CF, além de tratar de forma igual os desiguais, a Contee, aos 10 de junho de 2013, ajuizou a comentada ADPF, visando obter a declaração de inconstitucionalidade desses dispositivos.

Aos 12 de junho de 2013, o ministro Dias Toffoli, a quem a ADPF foi distribuída, proferiu o seguinte despacho:

“DESPACHO: Vistos. Trata-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental, com pedido de liminar, ajuizada pela CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES EM ESTABELECIMENTOS DE ENSINO — CONTEE, questionando o art. 522 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e da Súmula nº 369, item II, do Tribunal Superior do Trabalho, por violação ao disposto no preâmbulo, no art. 1º, IV, 5º, caput e inciso LIV, e 8º, inciso VIII, todos da Constituição Federal. Eis o teor dos dispositivos questionados: CLT “Art. 522. A administração do sindicato será exercida por uma diretoria constituída no máximo de sete e no mínimo de três membros e de um Conselho Fiscal composto de três membros, eleitos esses órgãos pela Assembléia Geral.”] Súmula nº 369 do TST ‘DIRIGENTE SINDICAL. ESTABILIDADE PROVISÓRIA. (…) II – O art. 522 da CLT foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Fica limitada, assim, a estabilidade a que alude o art. 543, § 3.º, da CLT a sete dirigentes sindicais e igual número de suplentes.’

A relevância da questão debatida na presente arguição ensejam a aplicação analógica do rito abreviado do art. 12 da Lei nº 9.868/99, a fim de que a decisão seja tomada em caráter definitivo. Ante o exposto, solicitem-se informações aos requeridos e, na sequência, abra-se vista, sucessivamente, no prazo de cinco dias, ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República (art. 12 da Lei nº 9.868/99). Publique-se. Brasília, 12 de junho de 2013. Ministro DIAS TOFFOLI”.

Esse despacho remeteu a ADPF ao julgamento de seu mérito, de forma direta, ou seja, sem apreciação do pedido de cautelar (liminar). Isso porque, como se colhe dele, a questão por ela abordada é de grande relevância.

Todavia, essa relevância não passou de mera declaração, esvaziada pelo decurso de tempo, posto que somente aos 8 de maio de 2020, após decorridos seis anos, dez meses e 26 dias, a matéria foi a julgamento, o que se constitui em prova inconteste da indisfarçada aversão do STF às entidades sindicais de trabalhadores.

O voto da ministra relatora, Carmen Lúcia — a quem a ADPF foi redistribuída em 2018 —, acolhido, à unanimidade, pelos demais ministros, prima por sofismas e evasivas, sem considerar os argumentos e fundamentos da autora (Contee).

Para comprovar essa afirmação, reproduzem-se, aqui, excertos do realçado voto e da petição inicial.

O voto, sofisticamente, registra:

“[…]

8. A repercussão prática conferida pelos tribunais na aplicação do art. 522 da Consolidação das Leis do Trabalho limita a estabilidade do dirigente sindical, sem tocar ou restringir a autonomia das entidades sindicais para definir a composição de sua diretoria conforme regras estatutárias.

O art. 522 da CLT não exclui ou restringe a liberdade das entidades sindicais de definir o número de integrantes de sua diretoria, considerando suas necessidades. À luz do atual entendimento afirmado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e também do Tribunal Superior do Trabalho, o dispositivo legal cumpre a finalidade de limitar o número de dirigentes sindicais detentores da garantia provisória no emprego estabelecida no inc. VIII do art. 8º da Constituição da República, no qual se tem: ?Art. 8º – (?) VIII – é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partido registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei?. A definição do número de diretores de uma entidade sindical é matéria abrangida pela liberdade sindical e regulada em estatuto.

Entretanto, a definição do número de dirigentes sindicais com garantia provisória no emprego não é matéria sujeita ao arbítrio de cada entidade sindical nem importa na autonomia maior ou menor do sindicato. A garantia provisória no emprego é matéria disciplinada legalmente, cabendo ao Estado definir os termos e limites dessa condição, sobretudo pela comprovação de que o direito do trabalho, no sistema positivado no Brasil, admite o rompimento do contrato de trabalho sem justa causa pelo empregador.

O sistema constitucional não determina o número de dirigentes sindicais a serem beneficiados pela garantia provisória no emprego. Assim, não há vício a contaminar por inconstitucionalidade dispositivo legal que limita o número de dirigentes sindicais com garantia provisória no emprego.

O art. 522 da Consolidação das Leis do Trabalho, ao invés de afrontar o dispositivo constitucional, dota de efetividade e razoabilidade o inc. VIII do art. 8º da Constituição da República, porque assegura a estabilidade no emprego a número determinado de dirigentes sindicais. Note-se que uma das finalidades da garantia provisória de emprego do dirigente sindical é proteger o empregado que atua diretamente na negociação com o empregador para defender os interesses da categoria.

O entendimento de que essa garantia é conferida a todos os dirigentes sindicais, sem limitação numérica, subverteria a finalidade do instituto, convertendo-o em instrumento impeditivo do exercício do direito do empregador de romper o contrato de trabalho sem justa causa com os consectários e deveres constitucionais e legais que lhe são impostos pela adoção desta providência.

A permissão para que cada entidade sindical, com a composição de sua diretoria, definisse o número de dirigentes estáveis geraria inegável insegurança jurídica e conduziria ao esvaziamento do direito do empregador de promover a extinção do contrato sem justa causa”.

Como se pode constatar pelos excertos da petição inicial, abaixo-transcritos, nenhum dos sofismas acima, que marcam o voto em questão, faz-se nela presente; senão, veja-se:

“[…]

Para que não se suscitem dúvidas e questões impertinentes, a autora apressa-se em afirmar que não esposa a tese de que todos os membros de uma categoria, profissional e/ou econômica, devam, ou possam, gozar da estabilidade provisória, erigida à condição de direito fundamental social, pelo Art. 8º, da CR, na hipótese de serem eleitos para cargo de direção e/ou representação sindical. O que se configuraria como abuso de direito.

[…]

Ao contrário, manifesta a sua concordância com a regulamentação do preceito constitucional sob realce; desde, é claro, que esta não se preste a frustrar o seu alcance e o seu objetivo, como fazem o Art. 522, da CLT, e a Súmula N. 369, do TST, que, além de excessivamente restritivos, tratam os desiguais de forma igual, quebrando a espinha dorsal do princípio constitucional da isonomia e do devido processo legal substantivo, metaforicamente falando.

É imperioso que se traga a lume os irreparáveis prejuízos, à livre organização sindical, provocados pela Súmula 369, em seu Item II, que se tornou a absoluta referência jurisprudencial, sobre a garantia provisória de emprego, concedida aos dirigentes e representantes sindicais; porquanto a restrição, por ela imposta, estimula a demissão deles; bem assim, impede as entidades sindicais, por maiores que sejam, de contar com mais de 7 (sete) efetivos e 7 (sete) suplentes, em suas diretorias. Inquestionavelmente, um atentado contra a livre organização sindical.

Destaca-se, também, que se mostra totalmente impertinente e desprovido de razoabilidade o surrado argumento, segundo o qual, cada entidade sindical, de qualquer grau, pode adotar o número de dirigentes e/ou representantes sindicais que lhe aprouver; bastando, apenas, que nomine os efetivos e os suplentes que gozam de estabilidade.

Ora, no contexto social brasileiro, aliás, o único no mundo, de poder potestativo absoluto, do empregador, caracteriza-se como suicida tal procedimento, na eventual hipótese de ele vir a ser adotado por alguma entidade sindical.

Isto porque, os dirigentes e/ou representantes sindicais, que não integrarem a lista de estáveis, ficarão totalmente vulneráveis e, portanto, sujeitos à demissão, a qualquer hora. Bastando, para tanto, que levantem a voz em defesa dos direitos e interesses da categoria, que tem o dever de bem representar”.

A ementa da decisão do STF acha-se assim exarada:

“Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou improcedente o pedido formulado na arguição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do voto da Relatora. Plenário, Sessão Virtual de 8.5.2020 a 14.5.2020”.

Como o pedido de declaração de inconstitucionalidade do Art. 522 da CLT e do Item II da Súmula 369 foi julgado improcedente, fica tudo como já estava assentado, por ocasião do ajuizamento da ADPF sob comentários; nada mudou.

Essa decisão, dando manto de constitucionalidade ao Item II da Súmula 369 do TST, rasga, impiedosamente, o princípio da isonomia no quesito organização sindical. Por ela, em todos os sindicatos, não importando a sua base territorial e o total de integrantes de sua categoria, somente sete dirigentes efetivos e igual número de suplentes gozam de estabilidade.

Note-se que não incluem dentre os estáveis os integrantes do conselho fiscal.

Essa decisão considera acordes com a garantia de liberdade de organização sindical, no tocante à estabilidade de seus dirigentes, sem a qual não há sindicato forte, as seguintes anomalias:

segundo o último Censo Escolar, na pequenino e aprazível município de Serra da Saudade, em Minas Gerais, com 815 habitantes, há 13 professores, sendo dois de educação infantil e 11 de ensino fundamental, nenhum empregado em escola particular.

A teor do Item II da Súmula 369 do TST, ungida pelo STF, se se criar um sindicato de professores em Serra da Saudade, o que é constitucionalmente permitido, todos os integrantes da categoria gozarão de estabilidade provisória.

No entanto, em Juiz de Fora, igualmente em Minas Gerais, com mais de 550 mil habitantes e cerca de 2.264 professores particulares nos níveis básico e superior, onde existe o Sindicato de Professores há mais de oito décadas, o número de dirigentes sindicais com estabilidade provisória acha-se limitado a quatorze, apesar de o número de professores ser 174 vezes superior ao de Serra da Saudade.

O mesmo número de dirigentes sindicais com estabilidade provisória é válido para o Sindicato dos Professores de Minas Gerais, com mais de 50 mil integrantes na categoria e representação em 852 municípios; bem assim, para as todas as categorias profissionais.

Era essa distorção, que nega e renega o universal princípio democrático da isonomia, que a Contee buscava corrigir com a ADPF 276, que o STF, à unanimidade, rejeitou.

*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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