Estaremos juntas nessa guerra
Uma carta para a mãe de Kathlen Romeu, morta durante disparos da polícia no Rio
*Elza Soares
Olá, Jacklline,
Do fundo da minha alma, eu não gostaria de lhe escrever neste momento para falar sobre a sua dor. Por todas as minhas preces, eu me sentiria completa se escrevesse para celebrar uma conquista sua ou comemorar o sucesso da sua menina. Eu não conhecia a Kathlen e pode ser que ela também não me conhecesse nem tivesse ouvido falar de mim, mas você a conhecia bem.
Kathlen era a sua estrela, sua personalidade favorita e, olhando as fotos dela, vendo você, seu carinho e amor quando fala da sua menina, tudo isso me traz a certeza de que também foi tirada de mim e de tanta gente a oportunidade de conhecer os encantos dela.
Eu fico aqui pensando que essa chuva de fotos da Kathlen na internet, nas redes sociais, só serve para amenizar a dor que cada um carrega no peito pela morte de uma menina tão jovem, uma mulher negra que trazia no ventre uma nova vida. Uma lutadora como eu, como você, como outras de nós, pessoas que precisam provar sua força mais do que as outras, dia após dia. Nós, mulheres pretas, que década após década vemos nosso futuro desenhado pelas mãos de quem vence, de quem conta a história, mesmo que façamos todo esforço do mundo para mudar essa realidade com nosso sangue, suor, com nossa própria existência. Mesmo que essa luta custe nossas vidas.
Eu fico aqui imaginando as razões por que esse reconhecimento, esse clamor público, só chega depois da morte. É uma compensação, uma maneira de lavar as mãos, de aliviar a consciência por não terem feito algo realmente relevante para que outras Jackllines não sofram a perda de suas Kathlens?
O que faltou? Linda, comunicativa, amorosa, jovem, corajosa, mulher, mãe, negra, de origem simples, batalhadora, Kathlen usava suas redes sociais para protestar contra as mazelas do país. O que faltou para ela ter o merecido reconhecimento em vida e experimentar o acolhimento que as redes sociais fingem dar? Faltou pararmos de acreditar que alguma coisa está realmente mudando em nosso país, que aqui preto, mulher, favelado tem algum direito de fato. Às vezes me dá a sensação de que nós somente “ganhamos” esse direito, o reconhecimento do nosso lugar ao Sol, quando morremos ou somos surrados, maltratados, humilhados.
Nosso país é especialista em celebrar o póstumo. Para quem? Para enganar quem? É uma emoção triste, quase compensatória, assistir à missa de sétimo dia da morte da Kathlen ali, aos pés do Cristo Redentor, nosso maior cartão-postal, mas seria uma emoção feliz, muito feliz, se estivéssemos assistindo à missa de aniversário de 15 anos, à missa de formatura da Kathlen, da Maria, da Gabriela, da Elza, da Joana, da Stefani. De tantas outras Kathlens que perdem suas vidas para alguma coisa que se torna maior que nós e mais difícil de combater a cada novo dia, a crueldade com a nossa gente.
O genocídio contra o nosso povo, contra quem nasce sem qualquer privilégio, como nós, é uma realidade cruel que machuca, maltrata, mata – e também revolta. Eu queria que toda a gente se lembrasse da foto que postou da Kathlen quando estiver apertando o botão da urna eletrônica para dar seu voto nas próximas eleições. Eu queria que nosso povo se lembrasse da Kathlen quando visse outra menina promissora e talentosa como ela, passando ali na rede social, bem ao alcance do apoio que poderia ser dado, mas não foi, deixando para quando era hora de celebrar a dor.
Jacklline, eu nem posso imaginar a sua dor. Eu não consigo mensurar o que você está sentindo com a perda da sua filha. Não imagino, porque nunca ninguém nesse mundo poderá imaginar a dor que eu senti a cada filho que perdi. É difícil compreender que um filho, uma filha, morrerá antes da mãe. É quase inaceitável para mim, mas muito jovem eu tive que aprender a conviver com essa realidade. Perdi quatro crianças e duas delas foram pelas mesmas mãos invisíveis que levaram a sua filha. A mão da falta de amor ao próximo, a mão do flagelo do racismo estrutural, a mão da ausência do poder público, a mão da falta de esperança que insiste em nos levar.
O primeiro filho que eu perdi foi o Raimundinho, o segundo que tive, quando eu ainda era muito menina. Ele morreu desnutrido, morreu de fome, morreu tuberculoso, sem que eu tivesse 1 conto de réis para comprar os remédios que o salvariam ou aliviariam sua dor. Aliviariam a dor de uma mãe ao ver a vida da sua criança se esvaindo em meio à fome. Morreu porque era preto, pobre, de favela, morava num barraco de madeira de um cômodo, sem saneamento básico, sem água encanada, sem um colchão para dormir, sem nada para comer, sem um fio de luz sequer, sem direito à saúde e à dignidade. Sem direito de se alimentar ou de beber água filtrada. Sem direito à segurança, como também não teve Kathlen, mesmo vivendo ela em outros tempos, em outra época, mesmo que sua morte e a do meu Raimundinho estejam separadas por nada menos que setenta anos.
O que mudou realmente? Não temos direito ao respeito por nossas vidas, como tem quem vence, quem se aproveita do poder para nos fazer acreditar que é essa miséria que resta para nós, que é só o que podemos ter. E não pense que a coisa muda quando a fama chega. Nossa batalha permanece árdua, desleal e cada nova conquista é criticada ou desdenhada. A diferença entre a fome e a fama é a vogal. Eu tenho fome de justiça pela morte da Kathlen Romeu, do Anderson Gomes, do Carlos Eduardo, da Cláudia Silva, do João Alberto, do Cleiton Correa, do Douglas Rodrigues, do Evaldo Rosa, do menino João Pedro, do menino Miguel Otávio, da Marielle Franco e dos milhares e milhares de pretos que perderam e continuam perdendo suas vidas para o sistema.
A coisa é mais profunda do que querem nos fazer acreditar. Começa ali na falta de esgoto nas favelas e comunidades, na falta de escolas, de hospitais, de cultura e lazer para nossas crianças. Na criminalização dos ritmos musicais e das manifestações culturais que surgem no morro, como o samba, a capoeira, o funk e tudo que a gente produz. Começa na omissão do poder público na base, na educação dos nossos jovens. Se a morte não é causada pela falta de oportunidades, provavelmente é pelas consequências dessa falta de oportunidades. E quem de nós não for morto por uma ou outra dessas razões morrerá um pouco a cada dia ao ver nossa gente massacrada dessa forma.
Minha querida Jacklline de Oliveira Lopes, perdão por lhe escrever. Eu queria mesmo era abraçar você. Queria te dizer que essa dor nunca vai passar. Que você se lembrará da sua Kathlen dia após dia. A cada novo amanhecer e a cada novo anoitecer. E vai doer. Vai doer muito e continuará doendo todos os dias até o seu último dia aqui. Com o tempo você aprenderá a suportar essa dor, a conviver com ela e com a revolta que ela causa em você e nos seus. Isso fará você cada vez mais forte e mais sedenta por justiça, e essa luta para que a justiça seja feita te dará um novo sentido para viver.
Foi assim comigo. Eu comecei a cantar para salvar meu filho da fome, para dar a ele o que comer, mas aquela batalha eu perdi. A partir dali começou a minha guerra, minha luta por cada uma de nós, por cada um de nós, da nossa gente, por todas as vítimas que não tiveram chance de lutar. A partir dali eu empunhei a minha voz, a minha melhor arma para lutar pelos nossos direitos e principalmente pelo direito de cada um de nós à vida. Eu prometi a mim mesma que cada pessoa que sofresse injustiça, fosse quem fosse, teria na minha voz um abraço.
Hoje todas e todos nós perdemos mais uma batalha com a morte da Kathlen, e esta carta é para segurar nas suas mãos, Jacklline, e dizer que estaremos juntas nessa guerra para que nenhuma outra mãe sofra a dor que nós sofremos. Esta carta é para você.
Elza da Conceição Soares, cantora e compositora.