A alta politização ‘partidária’ da comunicação no Brasil

Por César Locatelli

Pouco dias antes da eleição que elegeria o atual presidente brasileiro, um editorial do Estadão (8/10/2018) referiu-se ao “esquerdista Fernando Haddad (PT)” como “o preposto de um presidiário”. Este tratamento, dispensado pelo jornal ao ex-presidente da República, pode ser classificado como favorável a ele? Como neutro? Como ambivalente? Como contrário a ele?

O trabalho realizado pela equipe do Manchetômetro, iniciado em junho de 2014, é exatamente esse: executar a “análise de valência” dos textos de primeira página e de páginas de opinião dos jornais O Globo, O Estado de São Paulo e Folha de S.Paulo., bem como da matérias veiculadas pelo Jornal Nacional. “Atribuímos à valência quatro valores: positiva, negativa, neutra e ambivalente”, afirma João Feres Júnior em seu recente estudo “Cerco Midiático: o lugar da esquerda na esfera ‘publicada’”.

Em março de 2015, bem no início do segundo mandato da presidenta Dilma, período em que os chefes do executivo, via de regra, gozam de certo alívio nas críticas, os três jornais impressos publicaram 300 artigos contrários a ela, ou, 100 artigos contrários a ela por jornal, ou, mais de três artigos por dia contrários a ela, como mostra a linha vermelha do gráfico abaixo.

“Esse massacre midiático só se arrefeceu em meados de 2016, mais especificamente, em maio daquele ano, quando a presidente é afastada pela Câmara dos Deputados. Os jornais voltariam a lhe devotar uma carga forte de cobertura negativa no mês de agosto, não coincidentemente quando o Senado aprovou seu impeachment. Desde então, a intensidade de sua cobertura caiu bastante, mas sempre preservando perfil marcadamente negativo, como que para sedimentar o enquadramento de herança maldita de seu governo. É notável o pequeno pico de aproximadamente 100 contrárias no mês de outubro de 2018, subproduto da cobertura negativa recebida por Haddad e pelo PT no segundo turno da eleição”, diz Feres.

Além da estratégia de dar grande visibilidade com viés negativo, existe o apagamento: a simples exclusão, pela mídia empresarial de uma voz representativa de parte importante da sociedade. Durante os meses da campanha eleitoral de 2018, os artigos contrários a Fernando Haddad estiveram praticamente empatados com os artigos neutros. No entanto, houve um sumiço quase completo de menções a ele nos meses seguintes, como se vê no gráfico abaixo.

Como afirma João Feres em seu estudo: “o candidato do PT recebeu 47 milhões de votos no segundo turno da eleição, ocupou os cargos de Ministro da Educação e Prefeito de São Paulo, mas foi praticamente banido da esfera pública midiática – a não ser por aparições esporádicas e por sua coluna na Folha de S.Paulo”.

Especialmente na Folha, nos deparamos algumas vezes com um ou outro colunista ou autor convidado do campo progressista. Isso faz parte de um subterfúgio denominado “token leftist”, ou, esquerdista símbolo. Como explica Feres, “token leftist” é “aquele colunista de esquerda que é colocado na edição só para não parecer que o jornal publica exclusivamente artigos de direita. Esse papel, na Folha, foi desempenhado por Guilherme Boulos, Laura Carvalho, André Singer. Atualmente, Fernando Haddad é o titular da função”.

O “Índice de Viés” também ajuda a evidenciar se a cobertura de dado veículo favorece, desfavorece, é neutra ou ambivalente em relação a determinado ator ou instituição. É possível também compararmos a atuação da imprensa em relação a dois presidentes, como traz o estudo na sequência.

Entre janeiro de 2019 e fevereiro de 2020, foram publicados 1.736 editoriais, nos três jornais, sobre o Governo Federal sob Bolsonaro. Destes, 990 foram contrários e 117 foram favoráveis. Para construirmos o Índice de Viés, subtraímos dos favoráveis (117) os contrários (990), o que resulta em menos 873. Em seguida, dividimos pela soma total do editoriais (1736). O resultado (-0,50) é o Índice de Viés do governo Bolsonaro. Fazendo o mesmo cômputo para os primeiros meses do segundo governo Dilma chegamos ao Índice de Viés de -0,76.

Como explica Feres: “A diferença aqui é a mais pronunciada das quatro comparações que fizemos e ela é francamente a favor do Governo Bolsonaro, que recebe tratamento negativo, mas bastante mais benigno que aquele recebido pelo Governo Federal no segundo mandato de Dilma. A boa performance midiática relativa do Governo Federal sob Bolsonaro se dá a despeito de ele contar entre seus integrantes com Abraham Weinbtraub, Ricardo Salles, Paulo Guedes, Augusto Heleno, Damares Alves, Ernesto Araújo e tantas outras figuras de comportamento grosseiro, abertamente agressivo e, por vezes, bastante aberrante”.

Feres explica as duas estratégias usadas contra as vozes progressistas, pela inclusão intensiva de artigos contrários e pelo silenciamento:

“Por meio da metáfora do cerco mostramos como a grande mídia utiliza de estratégias diferentes de representação para quase invariavelmente apresentar a esquerda, seus adeptos e suas ideias de maneira desfavorável. Entre tais estratégias está a inclusão intensiva no noticiário, mas somente como objeto de detração, não como voz, e a exclusão como objeto e voz. Quando governo, o PT era noticiado segundo a primeira estratégia. Depois de apeado do poder, a estratégia de dupla exclusão passa a vigorar.”

Millôr Fernandes ao dizer que “imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”, certamente não avalizava “esse estado de alta politização ‘partidária’ da comunicação no Brasil”, nas palavras de Feres.

Carta Maior

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