A cidadania social no Brasil e no mundo: o que ficou e o que virá
Por Guilherme Guimarães Feliciano*
Em 2013, a Constituição Federal completa, no mês de outubro, um quarto de século. A Consolidação das Leis do Trabalho, por sua vez, completa 70 anos de existência. Duas datas tão significativas para a ordem social brasileira podem suscitar, contraditoriamente, certa melancolia pelas tantas promessas (ainda) não consumadas.
Afinal, onde se entroncam os ideários de proteção social açambarcados por um e outro diploma? E para onde caminham? Divaguemos.
Inovando em relação à Carta de 1967/1969, a Constituição da República Federativa do Brasil, tal como promulgada em 05 de outubro de 1988, reuniu os direitos sociais “stricto sensu” ¾ i.e, os ditos “direitos trabalhistas” ¾ em um capítulo próprio (“Dos Direitos Sociais”), juntamente com os direitos sociais “lato sensu”, como os direitos à educação, à habitação e à alimentação. E, para além de ampliar significativamente, no plano vertical (= mais direitos) e no plano horizontal (= mais sujeitos), o rol de direitos trabalhistas do texto constitucional anterior (v. artigo 165 da Constituição de 1967, na redação da EC n. 01/1969), a Constituição-cidadã tratou também de deslocá-los para o seu título II (“Dos Direitos e Garantias Fundamentais”), retirando-os do seu sítio anterior (“Da Ordem Econêmica e Social”) e conferindo-lhes, na nova ordem constitucional, inexorável jusfundamentalidade, semântica e topologicamente. Não há dúvidas, portanto, que a Constituição de 1988 representou um importante passo qualitativo nos degraus que conduzem à plena cidadania social.
Talvez por isso ¾ e pelo quanto se houve de lutar para contrapor, na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, as tendências conservadoras que se reuniram para resistir aos avanços sociais (o leitor haverá de se lembrar do indefectível “Centro Democrático”, ou “Centrão”, formado por PMDB, PFL, PTB, PDS e alguns partidos menores) ¾, é comum se ouvir dizer, nas esguelhas forenses e em certos nichos acadêmicos, que a ordem constitucional brasileira padece de um incurável “paternalismo histórico”, especialmente no que diz respeito à regulação das relações entre capital e trabalho. Dever-se-ia a essa ordem constitucional, à qual se associaria uma legislação igualmente antiquada, a infelicidade econômica do patronato brasileiro que, às voltas com os altos custos dos direitos trabalhistas e da tributação nacional para o sistema de seguridade — aos quais se aliaria a imprevisibilidade das decisões da Justiça do Trabalho —, perderia competitividade nos mercados internacionais.
Esse, porém, é um argumento falacioso, como poderá constatar o estudioso descomprometido, já à primeira análise do texto constitucional em vigor, ainda que breve e perfunctória. Assim é que, entre os dispositivos constitucionais que ainda carecem de regulamentação, encontram-se, p.ex., o do artigo 7º, I, que cuida da garantia social contra a despedida arbitrária ou sem justa causa; o do artigo 7º, X, in fine, do qual dimana um mandado constitucional de tipificação para o crime de retenção dolosa de salários; o do artigo 7º, I, relativo à cogestão de empresa; o do artigo 7º, XX, que dispõe sobre incentivos legais específicos para a proteção do mercado de trabalho da mulher; o do artigo 7º, XXIII, quanto ao adicional de remuneração para atividades penosas; o do artigo 7º, XXVII, sobre a proteção do emprego em face da automação; e o do artigo 37, VI, relativo ao direito de greve para servidores públicos, entre outros. Noutras palavras, se houvéssemos de identificar setorialmente um nicho constitucional onde a inércia legislativa é recorrente, identificá-lo-íamos primeira e precisamente no campo dos direitos sociais “stricto sensu”, ao lado de alguns direitos previdenciários (e.g., o do artigo 40, §4º). Aliás, vou além. Desafio o leitor a encontrar algum outro campo temático da Constituição de 1988 em que se veja igual ou maior número de explícitas omissões legislativas. E não estamos falando de normas-princípios, abertas e vagas por natureza; boa parte desses dispositivos indiscutivelmente veiculam normas-regras (v., e.g., o voto do Min. Gilmar Mendes no MI n. 943/DF).
Se é assim, duas perguntas têm bom cabimento.
A primeira delas, a rigor, é mais retórica que científica. Terá mesmo perfil “paternalista”, em sede laboral, a ordem constitucional brasileira?
A segunda, no campo do diagnóstico e da futurologia: se lá já se vão 25 anos da Constituição ¾ ou, mais, 70 anos de um Direito do Trabalho consolidado ¾ e o Direito do Trabalho ainda não alcançou, no Brasil, todas as potencialidades predispostas pelo poder constituinte originário, terão prevalecido, na tensão histórico-dialética das forças sociais, aquelas tendências conservadoras, ciosas da perene preservação do “status quo”? E, neste caso, o que esperar dos próximos setenta e cinco anos? O Direito do Trabalho desabará sobre si mesmo? Em que medida, ademais, o retrocesso ou mesmo a estagnação social são fenômenos sociais legítimos? Ou, na dimensão jurídica, em que medida o não-agir legislativo insere-se na discricionariedade política do legislador histórico ou ao revés configura, em algum nível, a chamada proteção insuficiente, por desatender o princípio da máxima concretização da norma (“Gebot optimaler Verwirklichung der Norm”)?
A resposta à primeira questão há de ser, para o analista sereno, de uma incrível simplicidade. Atualmente, somos menos “paternalistas” ¾ se se quiser optar por esta adjetivação desqualificadora (que diz muito acerca do interlocutor) ¾ do que comandou o constituinte originário. Logo, a serem as constituições realmente dirigentes, estamos muito aquém do nosso compromisso político universal.
Já a resposta à segunda questão exigiria, de nossa parte, elucubrações tantas ¾ da sociologia jurídica à dogmática constitucional ¾ que se fariam inadequadas neste restrito espaço. Mas, lendo em uma perspectiva maior (porque a resposta não poderá ser, para o Brasil, diferente da que se dará às demais nações do mundo), poderemos talvez excitar o leitor com algumas nótulas. Daremos, pois, indícios. Pistas. E o leitor, afinal, no seu íntimo responderá à questão. Para tanto, valer-nos-emos de considerações que outrora fizemos em outros escritos.
“Cidadania social” ¾ porque cidadania é conceito precipuamente político e, portanto, afeto às constituições ¾ não se explica bem, senão pela compreensão do fenômeno histórico designado como “constitucionalismo social”. E o constitucionalismo social está diretamente imbricado com a função de imperativo de tutela dos direitos fundamentais, no marco da questão social que toma vulto no século XIX (FELICIANO, 2013: 87 e ss.). Com efeito, as condições desumanas de trabalho que assolaram o proletariado entre as duas primeiras revoluções industriais determinaram historicamente a necessidade de intervenção estatal para a regulação da relação de emprego, como modo de minimizar as possibilidades concretas de afetação de direitos fundamentais ao ensejo da combinação entre necessidade, subordinação e autonomia privada, adequando-as a patamares aceitáveis para a ordem social. Essa intervenção deu-se inicialmente pela lei; depois, em linhas mais gerais, ganhou sede nas próprias constituições, originando o constitucionalismo social (e, a com ele, o Estado Social).
A rigor, Estado Social (Sozialstaat) e Estado do bem-estar social (Welfare state) — ou Estado-providência, o que é o mesmo — não se confundem. O Estado Social coincide, semântica e cronologicamente, com a onda do constitucionalismo social, emprenhando a tessitura constitucional com nítido viés de esquerda. Há mesmo quem impropriamente fale em um “Estado quase-socialista” (MARTINEZ, V. C., 2005) ou em um “Estado socialista parlamentar” (FERREIRA, L. P., 1979: 31-32); outros, em um “Estado evolucionista”, “intervindo na ordem econômica, colocando-se como árbitro nos conflitos entre o capital e o trabalho, superintendendo a produção, a distribuição e o consumo” (MALUF, 1988: 148-149). Já o Estado do bem-estar social, em acepção mais própria, radica nas políticas do segundo pós-guerra, com o projeto de reconstrução da Europa (plano Marshall) e a adoção de modelos econômicos de tipo keynesiano em vários pontos do mundo. A ideia de Estado Social teve, como veremos, diversas matrizes ideológicas e legislativas (e.g., a mexicana, a russa e sobretudo a alemã: BERCOVICI, 2003), enquanto o Estado-providência detém um “padrão cultural único”, estritamente capitalista — qual resposta ocidental aos modelos socializantes que vinham do leste — e estadunidense (cfr. MARTINEZ, V. C., 2005). Não por outra razão, Mészáros identificou o Estado do bem-estar social como a última manifestação da lógica do “entrincheiramento defensivo” dos movimentos sociais (e particularmente do movimento operário articulado), por operar “no interior das premissas estruturais do sistema do capital”, o que restringiu drasticamente as suas possibilidades: o alcance útil do Estado-providência
foi limitado tanto pelas condições favoráveis de expansão capitalista nos países envolvidos, como pela escala de tempo, marcada ao final pela pressão da «direita radical» em torno da completa liquidação desse Estado, nas três últimas décadas [do século XX], em razão da crise estrutural generalizada do capital” (MÉSZÁROS, 2003: 90-91).
Nada obstante, ao menos em seus alvitres, as duas concepções de Estado aproximaram-se sobremodo. Com efeito, no Estado-providência buscou-se estender a todo o indivíduo, desde o seu nascimento até a sua morte, um conjunto de bens e serviços de fornecimento garantido pelo Estado, senão diretamente, ao menos indiretamente, por meio de seu poder de regulamentação sobre a sociedade civil (vindo dessa “mediação” a cultura das agências — que nos EUA dos anos trinta mereceram o epíteto de “alphabet agencies”, pela grande variedade de siglas utilizadas —, absorvida pelo Brasil, sobretudo a partir da segunda metade dos anos noventa). Dentre esses direitos estariam a educação em todos os níveis, a assistência médica gratuita, o seguro-desemprego, a garantia de renda mínima, recursos adicionais para o sustento da prole etc. Vários desses objetivos foram igualmente consagrados nos textos plasmados pelo constitucionalismo social. Vejamos.
Convencionalmente, atribui-se à Constituição mexicana promulgada em 05.02.1917 (dita “Constitución Politica de los Estados Unidos Mexicanos que reforma la del 5 de febrero de 1857”) a gênese formal do constitucionalismo social no século XX. Tal constituição, produto último da Revolução Mexicana de 1910-1917 (que pôs fim aos trinta e quatro anos da ditadura de Porfírio Diaz), foi marcadamente anticlerical, agrarista, nacionalista e social, com forte inspiração anarcossindicalista. Pela primeira vez, positivaram-se na Lex legum normas destinadas a proteger o trabalho humano e a prover as necessidades sociais dos mais desfavorecidos ou vulneráveis. Entre outras coisas, a carta consagrou direitos trabalhistas como o salário mínimo, a limitação da jornada de trabalho (oito horas), as restrições ao trabalho da mulher e da criança, a livre associação em sindicatos e o direito à greve. Consagrou também direitos sociais “lato sensu”, como o direito à educação. Em seu art. 5º, dispõe:
Nadie podrá ser obligado a prestar trabajos personales sin la justa retribución y sin su pleno consentimiento, salvo el trabajo impuesto como pena por la autoridad judicial, […] En cuanto a los servicios públicos, sólo podrán ser obligatorios, en los términos que establezcan las leyes respectivas, el de las armas y los jurados, así como el desempeño de los cargos concejiles y los de elección popular, directa o indirecta. […] El Estado no puede permitir que se lleve a efecto ningún contrato, pacto o convenio que tenga por objeto el menoscabo, la pérdida o el irrevocable sacrificio de la libertad de la persona por cualquier causa.
Estabeleceu, ademais, que a falta de cumprimento do contrato pelo trabalhador só o obrigaria à competente responsabilidade civil, sem que em nenhum caso se pudesse exercer coação sobre a sua pessoa. Com tais preceitos, formalizou-se a proibição às formas contemporâneas de opressão, como a escravidão contemporânea, o tráfico de trabalhadores “livres” e, numa visão mais larga, até mesmo o assédio moral. A Constituição de 1917 é o texto ainda hoje em vigor no México, após inúmeras alterações (a última reforma é de 13.10.2011).
Pouco mais de dois anos depois, entrou em vigor na Alemanha a Constituição de Weimar (1919), ainda hoje o mais memorável símbolo do constitucionalismo social emergente no início do século XX. Após uma fragorosa derrota na Primeira Guerra Mundial, de que decorreram humilhantes obrigações internacionais por reparações de guerra (Tratado de Versailles, artigos 231 a 247), a Alemanha tornou-se uma república (09.11.1918), a que os historiadores legaram o nome de República de Weimar (1919-1933), nascida internamente frágil e externamente inexpressiva. Estando o povo alemão padecendo sob forte depressão econômica e elevados índices de inflação, o social-democrata Friedrich Ebert formou o primeiro governo republicano e, com a expressiva maioria parlamentar obtida após as eleições de 1919, instalou assembleia nacional constituinte na cidade de Weimar. Em 11.08.1919, assinou a “Weimarer Verfassung” (ou “Verfassung des Deutschen Reichs”, i.e., “Constituição do Império Alemão”), acentuando a unidade da Alemanha federal (com a recusa de soberania aos seus Estados-membros) e sinalizando a passagem do modelo liberal para o modelo social de Estado (o Sozialstaat), com a consagração tedesca do constitucionalismo social, que já conhecia o precedente mexicano. O texto alemão baseou-se em projeto de Hugo Preuss, com traço weberiano e tendências de esquerda (BERCOVICI, 2003: 14).
Malgrado as fragilidades da república, a Constituição de Weimar foi deveras ambiciosa no campo dos direitos fundamentais. A sua parte II tratou dos direitos e deveres fundamentais dos alemães, trazendo os seculares direitos e garantias individuais na seção I, os direitos relacionados à vida social na seção II, os direitos relacionados à religião e às igrejas na seção III, os direitos relacionados à educação e ao ensino na seção IV e os direitos relacionados à vida econômica na seção V.
Na seção II, a carta de 1919 consagrava a igualdade de direito entre os gêneros, a proteção da maternidade e da família e a igualdade entre filhos legítimos e ilegítimos. Para se ter um parâmetro do pendor progressista, o Código Civil brasileiro de 1916, em vigor nessa mesma época, ainda proibia o reconhecimento jurídico de filhos espúrios, fossem incestuosos ou adulterinos, e quanto aos filhos naturais não-espúrios dispunha que, “havendo filho legítimo ou legitimado, só à metade do que a este couber em herança terá direito o filho natural reconhecido na constância do casamento” — arts. 358 e 1605, §1º). Na seção IV (artigo 150), a Constituição de Weimar colocou sob proteção do Estado o patrimônio natural, histórico e artístico nacional (i.e., o meio ambiente humano em seus aspectos natural e cultural), positivando de modo pioneiro direitos de terceira geração (ou dimensão). Por fim, na esfera dos direitos sociais (seção V) — onde mais avançou —, o texto constitucional positivou a especial proteção ao trabalho (artigo 157), a liberdade de associação para a defesa e a melhoria das condições de trabalho (artigo 159), a obrigatoriedade de se conceder tempo livre aos empregados para o exercício de direitos cívicos e funções públicas gratuitas (artigo 160) e o direito à seguridade social (artigo 161). Ademais, a Alemanha eriçou, perante o mundo, a bandeira da “regulamentação internacional da situação jurídica dos trabalhadores, que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade um mínimo de direitos sociais” (cfr. MORAES, A., 1998: 31), o que efetivamente se concretizou com o advento da OIT, no mesmo ano, e toda a sua atividade normativa ulterior.
Merece menção, ainda, a Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 17.01.1918, e a Lei Fundamental Soviética, de 10.07.1918. Já não concebiam o projeto de um mero Estado social, mas o de um Estado socialista em sentido próprio — o “Estado socialista-proletário”, a que se seguiram inúmeras “democracias populares” pelo mundo (FERREIRA, L. P., 1979: 29-31) —, o que é essencialmente diverso. Deflagraram-se medidas políticas radicais, como a abolição da propriedade privada, animadas por um princípio geral de igualdade material; mas também se instituíram genuínos direitos sociais, como a assistência econômica aos operários e camponeses mais pobres. Mais que direitos, porém, esses textos proclamaram cantilenas ideológicas, que vaticinavam a supressão da exploração do homem pelo homem e da divisão social de classes, instaurando-se uma organização socialista dos meios de produção como ponto de partida para o triunfo do socialismo em todos os países do globo. A História é testemunha do legado questionável desse “socialismo real” para a Rússia e as demais repúblicas que compunham a URSS.
Subsequentemente, diversas outras constituições passaram a contemplar preceitos ou mesmo capítulos inteiros dedicados à positivação de direitos sociais em sentido lato e estrito. A partir dessa onda de reformas, e sobretudo a partir do modelo alemão do Sozialstaat (1919), densificou-se a noção de Estado Social — ou Estado Social Democrático —, que pode ser enunciada como
esta nova forma de organização política, […] que […] [p]retende alcançar a justiça social, diminuindo os profundos sulcos entre os ricos e os pobres, entre os empresários e os trabalhadores, ocasionados pelo liberalismo. Não deseja destruir a propriedade privada, nem impedir a livre iniciativa, mas condicioná-las aos interesses sociais. Nelas irá intervir, sempre que se faça mister, a fim de impedir o abuso do poder econômico. […] Para tanto, declara o Estado os direitos sociais, verdadeiro complexos das prerrogativas reconhecidas como fundamentais e necessárias aos trabalhadores para garantir-lhes situação econômica compatível com a dignidade humana. […] Além disso, preconiza a função social da propriedade, condicionando seu exercício ao bem-estar social; estabelece o primado da solidariedade entre os fatores de produção — capital e trabalho — para que se elimine o antigo conflito entre eles; valoriza o trabalho como condição da dignidade humana, e reprime os abusos do poder econômico. (NETTO, 1982: 324)
E assim se caminhou, inclusive por tentativa e erro, em quase um século de constitucionalismo social. Hodiernamente, com a herança acumulada de tantos anos, pode-se reconhecer o Estado Social na consagração positivo-constitucional de pelo menos quatro ordens de “concretização constitucional do princípio da democracia econômica e social” (CANOTILHO, 1999: 332-338):
(a) a constituição econômica, pela qual se procede à conformação da ordem fundamental da economia (que consagra, no Brasil, ao lado da livre iniciativa, da propriedade privada e da livre concorrência, a “valorização do trabalho humano”);
(b) a constituição do trabalho, autonomizando os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores (no Brasil, arts. 7º a 11 da CRFB) e, nas cartas mais progressistas, ampliando a perspectiva constitucional do trabalho, que deixa de ser entendido apenas sob o ângulo da tutela jurídica do trabalho subordinado e passa a ser percebido como “poder socialmente emancipatório” (vejam-se em Portugal, e.g., os arts. 54º, 1 e 5, 55º, 2, “d”, e 56º, 2, “b” e “c”, todos da Constituição de 1976; e no Brasil, ainda que timidamente, vejam-se o art. 7º, XI, in fine, o art. 11 e o art. 194, par. único, VII, da CRFB, além do relevante artigo 193, que textualmente erige, como base da ordem social brasileira, o primado do trabalho);
(c) a constituição social, consolidando “o conjunto de direitos e princípios de natureza social formalmente plasmados na Constituição”, o que alcança todo um catálogo constitucional de direitos sociais (no Brasil, veja-se o art. 6º da CRFB), um tratamento preferencial para pessoas que, em virtude de condições econômicas, físicas ou sociais, não podem desfrutar plenamente daqueles direitos (no Brasil, vejam-se, e.g., os arts. 201, §1º, 203, IV e V, 207, III, e 230 da CRFB) e um sistema de segurança social unificado (no Brasil, veja-se o capítulo II do título VIII da CRFB);
(d) a constituição cultural, que contempla o direito à educação e à cultura, o acesso à fruição e à criação cultural e artística, o direito ao ensino e o direito ao desporto (no Brasil, veja-se o capítulo III do título VIII da Constituição).
Assim ancorado, o princípio da igualdade torna-se capaz de transcender a tensão maniqueísta que por anos opôs uma leitura estritamente estática (= igualdade formal, meramente), indiferente à eliminação das desigualdades, a outra estritamente dinâmica (= igualdade material, impositivamente), indiferente às diferenças entre as pessoas. O Estado Social — que não é um Estado “socialista” ou “comunista” — deve assegurar simplesmente uma igualdade de oportunidades (= igualdade real: “Gleichheit der Lebenschancen”), que não é uma reles “justiça de oportunidades”, mas também não predetermina uma igualdade de resultados. Esse é, afinal, o escopo sinóptico de todo o constitucionalismo social. O que significa, com Canotilho (1999: 338), garantir simultaneamente às pessoas a igualdade de Estado de Direito (= “rechtstaatliche Chancengleichheit”) e a igualdade de democracia econômico-social (= “sozialstaaliche Chancengleichheit”).
O sistema constitucional em vigor, ao que vimos até aqui, não dá azo a hesitações: o Brasil é um Estado Social, mesmo à míngua de uma declaração textual no art. 1º da CRFB (que se limita às categorias de Estado democrático e de Estado de Direito, à diferença, p.ex., da Alemanha, declarada “demokratischer und sozialer Bundesstaat” pelo art. 20, 1, da GG). Contempla todas as quatro ordens de concretização constitucional do princípio da democracia econômica e social. Erige, ademais, a justiça social como fundamento da ordem econômica e financeira (art. 170) e como objetivo da ordem social (art. 193). É, sem dúvida, uma opção ideológica, que deve repercutir na interpretação de todo o direito infraconstitucional, no passo de uma “verfassungskonforme Auslegung” (= interpretação conforme a Constituição) permanente. Mas essa opção não foi feita por juristas ou juízes. Foi feita em 1988, pela Assembleia Nacional Constituinte, no lídimo exercício de seu poder constituinte originário.
É certo, ademais, que o constitucionalismo social não é um fenômeno restrito ao século XX. Ao revés, ultrapassou a barreira do milênio para seguir vingando no século XXI, o que já se pode testificar por algumas das constituições promulgadas nos últimos dez anos. Veja-se, por exemplo, a Constitución Política del Estado de Bolívia, de 07.02.2009, cujo capítulo quinto do título II discrimina, com imensa riqueza, os direitos sociais e econômicos de “todo ser humano”: direito ao meio ambiente, à saúde, à seguridade social, direito de pleno acesso aos bens e serviços públicos, direito ao trabalho e ao emprego — com o dever de o Estado proteger, fomentar e fortalecer as “formas comunitárias de produção” —, direito à negociação coletiva, direito de sindicalização/associação para trabalhadores e empresários, direito de greve e, para mais, diversos direitos humanos de tipo “ut singuli”: da infância, da adolescência, da juventude, da família, dos deficientes, dos presos, dos consumidores etc. Avança, ademais, na positivação de muito do que a Ciência do Direito do Trabalho e as próprias doutrinas sociais construíram no último século, sendo mesmo um paradigma continental (ao menos no aspecto declaratório). Disso são emblemáticos, a propósito, três preceitos:
Los derechos reconocidos por esta Constitución son inviolables, universales, interdependientes, indivisibles y progresivos. (art. 13, I)
Las normas laborales se interpretarán y aplicarán bajo los principios de protección de las trabajadoras y de los trabajadores como principal fuerza productiva de la sociedad; de primacía de la relación laboral; de continuidad y estabilidad laboral; de no discriminación y de inversión de la prueba a favor de la trabajadora y del trabajador. (art. 48, II).
Los derechos y beneficios reconocidos en favor de las trabajadoras y los trabajadores no pueden renunciarse, y son nulas las convenciones contrarias o que tiendan a burlar sus efectos. (art. 48, III)
Dir-se-ia que essa é uma carta constitucional “ideológica” (como se alguma acaso não fosse), de ultraesquerda, elaborada sob medida para um governo de viés socializante (do presidente Juan Evo Morales Ayma, ex-cocaleiro, sindicalista e fundador do Movimiento al Socialismo boliviano). Em termos objetivos, convém precaver que a referida constituição foi aprovada em referendo popular de 25.01.2009 por 61,43% do total de votantes (foram às urnas 90,24% dos eleitores). Mas a despeito disso, evitando-se polemizar com a objeção, pode-se bem resgatar outros exemplos, de mesmo pendor, muito além da “América bolivariana”. Vejamos dois, em dois continentes diferentes, pouco antes e pouco depois da viragem milenar.
Em 01.09.1992, entrou em vigor a atual Constituição da República Eslovaca (Ústavy Slovenskej Republiky), sob regime democrático e capitalista (arts. 1º e 20), uma vez entabulados os termos do “Divórcio de Veludo” com a República Tcheca. Na seção V do seu capítulo II (“Direitos e Liberdades Fundamentais”), a partir do art. 35, foram consagrados os direitos econômicos, sociais e culturais, entre os quais a liberdade de trabalho e profissão, o direito ao trabalho e à proteção social contra o desemprego, o direito a condições justas e satisfatórias de trabalho (assegurando-se, entre outros, limites para a duração do trabalho, salário equânime e suficiente para um digno padrão de vida, proteção contra a dispensa arbitrária e a discriminação no trabalho, saúde e segurança no trabalho, período mínimo de férias remuneradas, negociação coletiva etc.), direito à sindicalização, direito de greve, especial proteção no trabalho para mulheres, menores, gestantes e deficientes, direito à educação, direito de acesso à herança cultural etc.
Dez anos depois, na África, por referendo do povo congolês em 20.01.2002, foi promulgada a Constituição da República do Congo (Constitution de la Republique du Congo — já não “popular”, pois o marxismo-leninismo foi oficialmente abandonado em 1990), igualmente democrática, capitalista e pluripartidária (arts. 1º, 17 e 51-55), cujos arts. 22 a 36, previram direitos sociais, econômicos e culturais como o direito à cultura e à identidade cultural, o direito à educação, o direito ao trabalho (cabendo ao Estado “créer les conditions qui rendent effective la jouissance de ce droit” — i.e., direitos de prestação), o direito ao repouso e ao lazer, o direito às férias periódicas remuneradas, o direito à limitação da duração do trabalho, a liberdade sindical, o direito de greve, o direito à saúde pública, os direitos das crianças e dos adolescentes contra a exploração econômica ou social (proibindo-se o trabalho de crianças menores de dezesseis anos), o direito ao meio ambiente sadio, bastante e durável etc.
Obviamente, não será a mera inserção constitucional de dispositivos que conferem direitos sociais, econômicos e culturais o que torna o país um “Estado Social”. Há que produzir políticas públicas e garantir positivamente o acesso àqueles direitos, desincumbindo-se de seus deveres de prestação. Exatamente por isso, aliás, o Estado do bem-estar social de fato se configurou somente com as políticas públicas iniciadas a partir dos anos trinta (notadamente com o New Deal de Franklin D. Roosevelt), após a Grande Depressão; a aurora do constitucionalismo social representou apenas o “período de experimentação” do Estado-providência, ao qual se seguiu um período de consolidação (sob o New Deal e a consequente regulação keynesiana do binômio capital/trabalho) e um período de expansão (já no segundo pós-guerra, com o Plano Marshall de 1947, o “modelo escandinavo” de K. Gunnar Myrdal, prêmio nobel em 1974, e outros similares — cfr. MYRDAL, 1960), depois retraído com a adoção, em diversos países, das políticas neoliberais dos anos setenta e oitenta, a partir de Margaret Tatcher (Reino Unido) e depois Ronald W. Reagan (EUA) e Helmut Kohl (Alemanha). Como dissemos, há mesmo quem enfaticamente situe a origem do Estado Social nas preditas duas primeiras fases de formação do Welfare state (“experimentação” e “consolidação”), reconhecendo o genuíno Estado-providência somente naquela terceira fase, com “padrão cultural único” (de inspiração estadunidense).
Nessa perspectiva, a ideia de Estado-providência praticamente se apartaria daquela de constitucionalismo social, o que não nos parece inteiramente adequado. Há, sem dúvida, alguma linha de desdobramento causal entre um fenômeno e outro, o que se revela pelas próprias políticas sociais adotadas pelo New Deal (salário mínimo, previdência social, redução da jornada de trabalho, garantias sociais para idosos, desempregados e inválidos etc.), já na antessala do Estado-providência (embora se tenha dispensado, para tanto, modificações textuais na Constituição dos EUA). E de qualquer modo, abstraída a questão das políticas econômicas concretas e os correspondentes signos ou rótulos, é manifesto que, ao consagrar direitos sociais e econômicos, os textos constitucionais sinalizam claramente um certo propósito e uma certa concepção de mundo, ambos marcados por um imperativo de tutela da pessoa na dimensão social de sua existência — ou, na dicção de Canotilho (1999: 336), a tutela da sua “dignidade social”, pressuposto para colimar a igualdade real entre as pessoas (que não é necessariamente uma igualdade material). A rigor, essa vereda histórica, iniciada em 1917, jamais se interrompeu.
Parece certo, pois, que o constitucionalismo social está bem longe de ser um sarcófago de idealismo romântico enterrado nas primícias do século XX. Bem ao contrário, é um eixo constitucional permanente que não deixou de render frutos sequer durante os governos autoritários que infestaram os novecentos, inclusive no Brasil. E que, a par de resistências e acomodações conjunturais, segue cumprindo o seu papel civilizatório no século XXI.
Pois bem. Se as constituições têm ou não dimensão dirigente, e se seus princípios fundantes têm ou não genuína tessitura normativa (como sustentamos, ali com CANOTILHO ¾ sobretudo em seus primeiros escritos ¾ e aqui com R. ALEXY), é questão que demandaria outro artigo. Mas, a esta altura, o que interessa redarguir a você, caro leitor, é isto: quando já soprados os fortes ventos da desregulamentação e da flexibilização que infestaram o último quarto do século XX, a partir dos esquemas econômicos do Consenso de Washington e das interferências político-econômicas do eixo Reagan/Tatcher, é verdadeiro afirmar que o Direito do Trabalho caminha para o seu fim? A descrição acima apresentada aponta para um Direito Social que soçobra sobre si mesmo?
“…[B]em-aventurados os vossos olhos, porque veem, e os vossos ouvidos, porque ouvem” (Mateus, 13, 16)…
*Guilherme Guimarães Feliciano
Diretor de Prerrogativas e Assuntos Jurídicos da Anamatra
Crédito da foto: Anamatra
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. 3. Aufl. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.
BERCOVICI, Gilberto. Entre o Estado Total e o Estado Social: Atualidade do debate sobre direito, Estado e economia na República de Weimar. Tese de Livre-Docência apresentada ao Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da USP. São Paulo, USP, 2003.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet, Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003.
CANOTILHO, J. J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1999.
FELICIANO, Guilherme Guimarães. Curso Crítico de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2013.
FERREIRA, Luiz Pinto. Estado socialista (verbete). In: Enciclopédia Saraiva do Direito. Rubens Limongi França (coord.). São Paulo: Saraiva, 1979. v. 34. pp.28-32.
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