A crise da forma

Discussões contemporâneas a respeito da didática esbarram em temas como a produção acadêmica ante a realidade nas escolas, a formação dos novos docentes e a falta de investimentos na educação

professor
Os objetos   da Matemateca, na USP, são projetados pelos próprios professores: o objetivo   é ajudar no ensino da disciplina

Um dos ramos mais antigos dos estudos pedagógicos, citado pelo professor tcheco Comênio, considerado o precursor do modo de ensinar moderno, já no século 17, a didática tem uma trajetória intensa e se mantém ainda hoje – apesar de alguns embates – como um dos principais pontos de amparo da pedagogia, além de importante ferramenta de trabalho para a docência. No Brasil atual, a disciplina enfrenta um momento de discussão a respeito de sua prática e da forma como deve ser conduzida para garantir um ensino de qualidade voltado a todas as crianças e adolescentes – debate sempre atrelado a temas como o problema da desvalorização da carreira do professor, a necessidade de investimentos públicos em uma política pedagógica nacional, a precariedade da estrutura das escolas públicas atuais e os cursos de formação de docentes. Entre as muitas questões relacionadas à didática estão pontos relevantes à discussão hoje, como a proposta de dar “protagonismo” à matéria e a importância social e política da disciplina ante um momento de “crise”: muita produção acadêmica e de pesquisa sobre o tema versus uma “desvalorização” da disciplina nos cursos de licenciatura.

Protagonismo

Para Selma Garrido Pimenta, professora titular de didática da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e também coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Formação do Educador (Gepefe), na USP, a grande questão referente ao tema hoje é a necessidade de fazer valer o protagonismo da didática. “Isso implica uma reconstrução da teoria em um contexto de formação de docentes voltados a estudar o ensino como fenômeno complexo e prática social, dispostos a questionar problemas para buscar soluções efetivas, não aceitando fórmulas prontas”, diz Selma. De acordo com a professora, essa retomada de força se faz necessária ainda em virtude de uma “crise” enfrentada pela disciplina no momento atual: um paradoxo entre uma grande produção de conhecimento da área, com realização de pesquisas nas universidades direcionadas ao estudo da didática, em face de um “desinteresse” pela matéria presente em alguns cursos de licenciatura (como casos de exclusão do currículo ou redução drástica de horas/aula) e mesmo em alguns concursos públicos para a contratação de professores, onde não é cobrada com a devida atenção. “É muito preocupante que o ensino, atividade educativa do professor, deixe de ser considerado em sua formação. Isso contribui para a desqualificação dos resultados da escolaridade, em especial da escola pública”, avalia Selma, que no recente Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino (XVI Endipe), realizado no ano passado, em Campinas (SP), apresentou um trabalho enfatizando justamente essas questões.

“A educação é práxis da sociedade, é parte do processo de humanização. A escola, além de ser o lugar em que a criança deve ter acesso ao ensino, é espaço de socialização e constatação da própria identidade dessa criança, desse sujeito. E quem faz essa mediação é o professor: aí entra a importância da didática”, sustenta a professora. Selma destaca também a força política da disciplina. “Nosso país vivenciou décadas de desqualificação do ensino público, de desvalorização da atividade docente. O fortalecimento da didática é importante enquanto ferramenta de mobilização para a construção de professores dispostos a encarar a educação de outra forma, a ter o ensino como prática social.” A professora diz ainda acreditar em um momento favorável para uma mudança nesse sentido, ainda que tímida. “Se pegarmos o último Endipe, por exemplo, como termômetro, percebemos um grande interesse da categoria em discutir a questão”, afirma Selma, que esteve na organização do evento. O encontro teve uma grande procura – começou com 2.500 vagas, que se esgotaram em poucos dias, e acabou fechando com quase quatro mil inscritos. “É um movimento que vem crescendo”, avalia a professora. O próximo encontro – o XVII Endipe – será realizado em novembro de 2014, em Fortaleza (CE). O tema dos trabalhos está em definição.

Necessidade social

A questão política da didática também é enfatizada pela professora Maria Amélia Santoro Franco, vice-coordenadora dos Programas de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Santos e pesquisadora na USP, CNPq e UniSantos. “Fala-se muito que o ensino foi universalizado. Na prática, penso que não foi – não basta colocar as crianças na escola, é necessário dar condições a essas pessoas de aprender”, diz. “Talvez esta seja a grande revolução pedagógica: fazer com que esse grande número de crianças que está na escola de fato aprenda”, sustenta. “A Didática tem uma dimensão pedagógica e uma política. Para bem atuar na prática do ensino, as duas precisam estar articuladas, ou seja, da perspectiva política (para que educar/ensinar?) é preciso esse pacto social, um projeto social para a educação, um projeto que sustente as metas e perspectivas educativas de uma sociedade em dado tempo histórico. A Didática pode e deve dar as referências para este pacto”, afirma a professora. “Do ponto de vista pedagógico, atuaria oferecendo subsídios e referências, nos espaços/tempos de ensinar/aprender: o que e como ensinar?”, sustenta.

De acordo com Maria Amélia, do ponto de vista da docência, há a necessidade de trabalhar de forma integrada os aspectos individuais, sociais e pedagógicos inerentes à disciplina. “O professor precisa formar-se como pessoa; como articulador de interações sociais; como gestor de dilemas e tensões da sala de aula e pedagogicamente precisa saber aplicar, criar, construir modos e meios de ensinar, aliando a técnica e a reflexão”, diz. Para tanto, ela destaca a importância de condições externas básicas para o desenvolvimento do trabalho didático, como a presença de uma coordenação pedagógica efetiva nas escolas. “É fundamental a equipe pedagógica, que na escola fará a mediação entre os professores e o projeto político-pedagógico. O professor sozinho não pode (nem deve) dar conta das contradições e tensões sociais que reverberam na sala de aula”, avalia. “É preciso que haja condições e processos multidimensionais: o espaço de ensino precisa cercar-se para dialogar com o professor que a cada dia precisa se recriar como docente, precisa utilizar a vigilância crítica, a reflexão contínua”, diz a pesquisadora. “A Didática é hoje uma necessidade social que pode redirecionar o rumo da formação abreviada de docentes; buscando alternativas para a prática do tecnicismo exagerado que impõe modos e meios de fazer; sob forma de um aplicacionismo estéril. Não se transfere formação. Ela se faz nas interações da equipe pedagógica com os espaços/tempos de ensinar e aprender, num processo contínuo e lento”, afirma.

A professora cita o que denomina de “três regras de ouro” no quesito didática para quem está na atividade de docência: “Primeiro: é preciso planejamento de aula; o ensino é uma atividade intencional, complexa e deve assim ser visto e revisto, antes, durante e depois do processo. Leia, informe-se, aprofunde o conteúdo cultural do que vai trabalhar; estude formas e meios de despertar o interesse do aluno; converse com seus pares; discuta hipóteses de aulas; socialize as aulas que elaborou. Segundo: valorize o olhar sobre o aluno, suas circunstâncias, dificuldades e talentos, como falava, sabiamente, Paulo Freire; convide-o a aprender e a se envolver na aventura do conhecimento; desenvolva a escuta sensível que alarga os horizontes do diálogo e humaniza a relação. Por fim, mantenha a atitude da compreensão/reflexão: tente sempre estar atento à sua prática; a um jeito novo de ser e estar em sala de aula; aceite mudar e renovar sua prática; exerça a vigilância crítica, não pare de questionar e de experimentar. Isso é fundamental”, conclui Maria Amélia, que no ano passado, por ocasião do XVI Endipe, lançou o livro “Pedagogia e prática docente”, em que aborda essas e outras questões ligadas ao universo da Didática.

Abertura a novos temas

A professora Eliane Cleonice Alves Precoma, titular de Didática na Universidade Federal do Paraná e pesquisadora no grupo Educação, Ambiente e Sociedade da UFPR, destaca a importância de se ter um olhar diferenciado para a disciplina. “Acredito que o papel da didática é discutir e investigar o processo de ensino/aprendizagem e as suas múltiplas relações. A matéria não pode ficar circunscrita aos aspectos técnicos. Eles são importantes, mas, para uma inserção social e de transformação do espaço social, é preciso uma abordagem mais ampla”, diz Eliane. Nessa linha, a professora trabalha muito com a ideia de que a didática não pode ser debatida de forma restrita ao ambiente “sala de aula”, destacando outras possibilidades de atuação para o professor na atualidade. “Isso implica considerar novas formas de organização do trabalho pedagógico, tais como trabalhos educativos em ONGs, hospitais, penitenciárias, empresas. Estudamos a relação clássica entre educador e educando, no espaço escola, mas também essas múltiplas alternativas de trabalho que existem hoje e que demandam uma didática diferenciada e mais abrangente”, afirma.

Além da questão desses novos espaços, Eliane defende a necessidade de se trabalhar na disciplina pontos como fatores de risco e proteção na docência. “Por que a didática técnica não dá conta das questões contemporâneas da sala de aula? Porque, na lida diária, o professor está se deparando com conflitos que não enfrentava, como drogas e violência”, avalia a professora. Ela sustenta a inclusão na matéria de temas como a resolução de conflitos pela via do diálogo e a educação para a paz, abordagem já presente no relatório “Educação: Tesouro a Descobrir”, apresentado em 2010 para a Unesco pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. “Tomamos ainda a referência de Paulo Freire, da pedagogia da possibilidade, de dar voz e vez a todos os envolvidos no processo pedagógico”, explica. “Penso que a didática precisa investigar, estudar, propor alternativas para o processo ensino-aprendizagem, o professor precisa se aproximar do outro, da realidade do outro, em um exercício de respeito ético, de didática amorosa”, defende a pesquisadora. “A relação professor-aluno precisa dialogar com a diversidade cultural, com questões de gênero, com as novas tecnologias. Assim, a didática não pode ficar afastada de outros saberes e deve trabalhar com várias e múltiplas abordagens. E ainda defendo a necessidade de um fator essencial, não apenas à didática, mas de proteção à docência: apesar de tudo, o bom humor”, conclui.

Eixo de formação

O professor José Carlos Libâneo, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, à frente do grupo de pesquisa Teorias da Educação e Processos Pedagógicos, na PUC-GO, e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Didática Desenvolvimental e Profissionalização Docente (Gepedi), reforça a necessidade de colocar a didática no centro da formação dos docentes. “Cabe à disciplina formular teórica e praticamente os saberes profissionais a serem mobilizados para a ação profissional do professor, por isso pode ser chamada de ciência profissional do professor”, avalia. Ele destaca que a didática tem como especificidade epistemológica o processo instrucional. “É o que orienta e assegura a unidade entre o aprender e o ensinar na relação com um saber, em situações contextualizadas, nas quais o aluno é orientado em sua atividade autônoma pelos adultos ou colegas, para apropriar-se dos produtos da experiência humana na cultura e na ciência, visando o desenvolvimento humano”, afirma Libâneo. “Este processo é designado mediação didática, isto é, mediação das relações do aluno com os objetos de conhecimento (processo de ensino-aprendizagem), em contextos sociais e culturais concretos, em que se articulam o ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento.”

O pesquisador aponta dois tópicos nessa definição: a unidade e a relação complementar entre o ensino e aprendizagem, que os teóricos russos chamam de “instrução” (diferentemente do significado convencional no Brasil de mera transmissão de conhecimento, de conotação pejorativa) e a aprendizagem (o que o aluno faz), ou seja, o ensinar por meio da atuação da outra pessoa no processo de aprendizagem.  “Trata-se essencialmente de um processo de mudança, de reorganização e enriquecimento do próprio aluno, implicando sua participação ativa e, ao mesmo tempo, a intencionalidade educativa daquele que ensina”, diz. E cita, entre outros, o pedagogo russo Vasili Davídov, que atribuiu ao ensino o papel de promover e ampliar o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos alunos, por meio dos conhecimentos científicos. “Duas ideias importantes de Davídov precisam ser mencionadas. A primeira é que a atividade de ensino-aprendizagem implica considerar e atuar nos motivos dos alunos. O conhecimento dos motivos que os alunos trazem para a situação didática favorece a análise e seleção dos conteúdos a ensinar e a escolha de tarefas de aprendizagem com suficiente atrativo para canalizar os motivos deles para o conteúdo”, diz Libâneo. “A outra ideia refere-se ao fato de que o processo de apropriação ocorre em contextos de práticas sociais, culturais e institucionais, dada a natureza social das funções sociais superiores. Desse modo, as práticas socioculturais vivenciadas pelos alunos são integrantes das práticas pedagógicas. Essas são questões sumamente relevantes quando discutimos a didática hoje”, resume o professor.

Veja as discussões atuais referentes à didática do ensino em quatro áreas específicas do conhecimento: Línguas, Matemática, História e Ciências.

“Ninguém nasce professor, torna-se”

Débora   Cristina Leal, 22 anos, foi estagiária por três anos e há dois anos atua como   professora de matemática no Ensino Fundamental II do Colégio Marista Santa   Maria, em Curitiba (PR)

Didática é o método de   ensinar as técnicas, os procedimentos e todas as formas que ajudam o aluno a   aprender. No dia a dia, vou tentando formar o meu estilo de ensinar, juntando   o que tenho aprendido ao longo dos anos, na teoria, na prática e também com   os professores mais experientes. Por ser uma professora nova, que acabou de   sair do lugar de estudante, sei quais são os métodos que funcionam e quais   não. Para trabalhar a didática, tento inserir o que aprendi na faculdade,   aplicar modos diferentes de explicar, trazer curiosidades “fresquinhas”   e fazer com que os alunos também busquem conhecimento. O professor é cada vez   mais um mediador do conhecimento, pois hoje há diversas maneiras de buscar   informação. Aprendi a prática de dar aulas na faculdade, mas só soube de   verdade o que é ser professora quando tive minha primeira turma. Na faculdade   você aprende a ensinar multiplicação e divisão, entre outros assuntos, mas   não tem a vivência de situações adversas do cotidiano de um professor. Cada   turma é diferente, cada aluno é diferente, e essa mistura torna cada conjunto   de alunos incomparável. Ninguém nasce professor, torna-se. Isso assusta no   começo, mas logo é possível perceber que gostamos e que não trocamos esse   trabalho por nada.

“O maior desafio é lidar com a falta de atenção dos   alunos”

Wanda Del   Vechio, 56 anos, 27 de magistério. É professora de estudos sociais do Ensino   Fundamental II do Colégio Nossa Senhora do Morumbi, em São Paulo (SP)

Trabalho a didática em sala   de aula aprimorando a comunicação com meu público-alvo, com linguagem   adequada, nível de conhecimento apreensível e com exemplos do cotidiano do   aluno, o que torna a comunicação possível e satisfatória. Didática para mim é   um recurso de comunicação adequado ao público que preciso sensibilizar.   Procuro, no dia a dia, mesclar a prática com situações teóricas, instigando   sempre a reflexão.  Atualmente, temos um grande desafio para ensinar:   lidar com a falta de atenção dos alunos. Precisamos motivar o estudante, dar   significado e não apenas permanecer na formalidade do saber. O principal   desafio é  educar para um futuro melhor, com pessoas mais conscientes de   si mesmas e de suas funções sociais. O professor tem sempre em seu horizonte   o futuro, e esse deve ser o foco das mudanças substanciais que devem ser   operadas na educação brasileira.

“Aprendi a minha melhor entonação de voz, a ter firmeza,   jogo de cintura e domínio de classe”

Fátima   Ribeiro, 59 anos, 25 de profissão. Professora de português da rede municipal   de Recife (PE). Leciona na Escola Municipal Pedro Augusto

Procuro levar sempre   assuntos atuais aos alunos e misturá-los às temáticas tradicionais. É   importante trabalhar a didática com várias técnicas que ajudem a envolver os   estudantes, como atividades no computador, aulas expositivas, apresentações   animadas e rodas de leitura. Trabalho também diferentes gêneros textuais,   desde poesias a artigos científicos, crônicas literárias, resenhas críticas e   reportagens. Os livros didáticos, claro, ajudam muito, mas não devemos ficar   só neles. É fundamental encontrar uma maneira de estimular as crianças,   fazê-las pensar – e não apenas dar respostas prontas. E saber trabalhar a   didática é imprescindível, pois ela é a metodologia que utilizamos para   ensinar. Na faculdade sempre aprendemos mais na teo­ria do que na prática, o   que é muito falho. No entanto, não houve um choque de realidade quando   comecei a lecionar. Com o tempo, adaptei o conhecimento teórico ao dia a dia   de uma sala de aula. Uma boa dica é investir em cursos de extensão, que   ajudaram muito a aprimorar a minha didática. No decorrer de minha caminhada   como professora aprendi qual é a melhor entonação de voz, a ter firmeza, jogo   de cintura e domínio de classe. Essas características são fundamentais para   prender a atenção dos alunos, que estão muito dispersos atualmente. Considero   este o principal desafio do professor: motivá-los.

“Dou aulas de ciências, mas uso textos de artistas e   poetas”

Edward   Zvingila, 47 anos, 20 de profissão. Professor de ciências e biologia na   Escola Santi, em São Paulo (SP)

A didática parte sempre do   levantamento do conhecimento prévio dos alunos. É importante saber o que eles   estão pensando para então ter consciência de onde estamos partindo. Isso   acontece a partir de um questionamento, que pode vir por meio de um texto, uma   reportagem ou um vídeo, entre outros tantos instrumentos. O professor deve   escolher as melhores ferramentas para fazer com que seus alunos se interessem   e alcancem o objetivo principal, que é aprender. Dou aulas de ciências, mas   uso textos de artistas e poetas, por exemplo. Consigo explicar o ciclo da   água por meio de um texto do Paulo Vanzolini. O aluno consegue enxergar o   conceito e transportá-lo para a área da ciência. A didática em sala de aula é   muito completa atualmente, pois temos mais instrumentos para trabalhar. Além   dos livros didáticos, posso usar aplicativos do celular ou até mesmo buscar e   trocar informações na internet e nas redes sociais. É importante estimular o   aluno, instigá-lo a fazer as perguntas corretas, e não apenas a dar as   respostas certas.

Por Patrícia Ribas, da Revista Educação

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