A cruz pode nos redimir do reacionarismo, dos preconceitos, das discriminações?

O autoritarismo traz consigo o embrião da intolerância e é nele que se abriga o nascedouro da aversão ao diferente, provocando discriminações ao nordestino, ao haitiano, ao negro, à prostituta, à mulher que luta por seus direitos, ao homossexual, às religiões afro-brasileiras, ao próprio país e à nossa própria gente.

por Jacy Afonso de Melo

O autoritarismo traz consigo o embrião da intolerância e é nele que se abriga o nascedouro da aversão ao diferente, provocando discriminações ao nordestino, ao haitiano, ao negro, à prostituta, à mulher que luta por seus direitos, ao homossexual, às religiões afro-brasileiras, ao próprio país e à nossa própria gente.

O processo explicitado a partir das eleições de 2014 expõe as feridas de um Brasil que, dominado pelo pensamento da direita fascista, se vê envolvido pelas raízes escravocratas de uma elite inculta e, por isso mesmo, preconceituosa e perversa. Grupos reacionários, travestidos de defensores da moral e dos bons costumes – estabelecidos por eles próprios – não admitem avanços sociais, culturais e econômicos da gente que querem ver subjugada.

A classe exploradora brasileira coloca de vez a cara na janela e escancara a porta de seus preconceitos. Quer impor a massificação de ideias produzidas em série para serem consumidas cegamente. E busca instrumentos para matar ou ao menos esconder embaixo do tapete, no armário, no sótão, no quartinho dos fundos e na senzala, a “gentinha” feia, desdentada, preta, homossexual, os usuários de drogas, as pessoas em situação de rua, os “bandidos” menores de idade.

Afinal, o que chamam de “paz social” é quando os de baixo obedecem aqueles que estão em cima, mantendo-se anônimos e invisíveis para servir sem incomodar.

As raízes colonizadoras despertam e nos remetem à destruição das nações indígenas, à escravidão, à exploração predatória da natureza, à disseminação dos agrotóxicos, à ditadura militar, às torturas. Remetem-nos à história genocida quando, de cruz em punho, dominadores causaram genocídios de povos e nações.

E eis que novamente, diante de nossos olhos, parlamentares que deveriam ser os primeiros a cumprir os prescritos constitucionais, adentram o plenário, rezam o Pai-Nosso e bradam por Jesus Cristo, rasgando a Constituição Cidadã que afirma a laicidade do Estado e a igualdade de direitos. Em nome de Deus, atitudes discriminatórias diante de pessoas, crenças, sentimentos e ideias buscam retroceder o processo civilizatório.

As manifestações fundamentalistas que pareciam distantes no tempo e no espaço, explodem em diferentes lugares, de diferentes formas. Essas práticas emergem e encontram eco no medo e no desconhecimento de grande parte da população.

O baixo nível cognitivo e o preconceito reacionário de grande parte dos parlamentares surgem quando, em nome da segurança, defendem a redução da maioridade penal e a alteração do Estatuto do Desarmamento.  Ao mesmo tempo, com a desculpa do crescimento econômico, promovem o avanço sobre as terras indígenas e sobre as áreas de proteção ambiental.

Da mesma forma, com a justificativa de uma concepção anacrônica de núcleo familiar, promovem a homofobia. A crucificação simbólica exibida na 19ª parada LGBT em São Paulo tem sido usada para acender uma nova fogueira da inquisição. Bradando que não há respeito a Deus, apontam que homossexuais e todos os que acreditam em igualdade de direitos, em concretude de diferentes formas de ser feliz, podem destruir a organização social e levar o país ao caos moral e ético.

Dizendo-se chocados com a heresia de colocar uma transexual na cruz, os que têm como parâmetro a discriminação e o ódio usam descaradamente essa imagem ao revés. A crucificação aconteceu exatamente porque Jesus defendia os discriminados, os explorados, os marginalizados. A moça pregada numa cruz na parada gay simboliza travestis, homossexuais, bissexuais, transexuais que são cruelmente espancados, humilhados e assassinados por pessoas que se dizem cristãs, nessa “blasfêmia” que descortinou a hipocrisia.

Nossa tarefa é puxar o fio que traz consigo a crucificação não só da transexual da parada LGBT. Atrás daquela cruz existem muitas outras erguidas por cristãos: a do menino negro nu e amarrado a um poste; a do homem atropelado por um caminhoneiro porque não gostou de vê-lo abraçado a outro homem; a da menina morta após um estupro coletivo; a da adolescente apedrejada ao sair de um culto de candomblé; a do haitiano agredido em um posto de combustível; as tantas dos homossexuais mortos por jovens cristãos homofóbicos, como já vem sendo denunciado por aqueles que se dedicam a construir um mundo fraterno e acolhedor para todos.

Aquela mesma cruz da parada de São Paulo também representa as mulheres espancadas, as crianças exploradas sexualmente e no trabalho, as pessoas que se encontram em situação de rua, humilhadas e escorraçadas das praças públicas, os meninos e meninas “invisíveis” que estendem a mão nos sinais, os adoecidos pela droga, os trabalhadores sem condições dignas de exercer o seu ofício.

A polêmica se instalou com a crucificação da transexual.  Ótimo. Assim o debate sobre a homofobia e suas expressões cruéis ganha visibilidade e, quem sabe, sensibiliza a parcela da população que desconhece esse grave problema. E lembra-nos que a democracia não se configura em rolo compressor.  A democracia se estabelece com respeito às diferenças e à dignidade de todas e de todos.

Até então, mesmo aos trancos e barrancos, conseguimos avançar. Os movimentos sociais e organizações da sociedade civil de caráter progressista conseguiram empurrar o Congresso Nacional para um espaço menos conservador e o Governo para que assumisse pautas importantes para a garantia de direitos.

A reação é urgente, exige força e coragem. A organização de uma frente política de esquerda, que agregue representações sociais dos mais diferentes matizes, é fundamental para barrar o avanço do conservadorismo, da exploração, do fundamentalismo religioso.

Tomar nas mãos o debate, apontar os “falsos profetas”, denunciar as inverdades de seus argumentos e fincar as verdadeiras cruzes do povo brasileiro à beira das estradas, nas ruas, nas praças, nos campos, nas construções, são nossos desafios.

Jacy Afonso de Melo é dirigente Nacional da Central Única dos Trabalhadores – CUT

Do site Xapuri

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