A diplomacia patética
Aldo Rebelo*
“UM DIPLOMATA NÃO SERVE A UM REGIME E SIM AO SEU PAÍS”.
(Barão do Rio Branco)
O teólogo e pensador norte-americano Reinhold Niebuhr (1892-1971), ao analisar os fatos históricos e como eles são organizados, classificou-os em três categorias: os trágicos, os irônicos e os patéticos.
Por trágicos, definiu aqueles associados ao sofrimento e à dor dos homens na eterna busca da liberdade; os irônicos, como consequência do conflito entre o mal produzido mesmo quando o esforço humano busca o bem; e os patéticos, criados pela incapacidade do homem de controlar e explicar seus próprios atos e seus resultados. Niebuhr foi redescoberto quando o ex-presidente Barack Obama revelou que ele era uma de suas mais importantes influências e leitura habitual.
Ao analisarmos os fatos recentes produzidos pela diplomacia brasileira não há como, à luz da classificação de Niebuhr, deixar de enquadrá-los na categoria dos fenômenos patéticos.
Celebrada por sua tradição de competência e eficácia, a diplomacia brasileira herdou de sua matriz portuguesa a excelência em administrar grandes conflitos. O Tratado de Madrid (1750), também conhecido como Tratado dos Limites, é um exemplo da sofisticação da diplomacia que já podíamos qualificar de luso-brasileira, por ser brasileiro Alexandre de Gusmão, o negociador em nome de Portugal, e por ser brasileiro também o interesse envolvido na demarcação das fronteiras da ainda colônia portuguesa que viria a se tornar o Brasil.
José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838); Paulino José de Sousa, visconde do Uruguai (1807-1866); José Maria da Silva Paranhos, visconde do Rio Branco (1819-1880); Ruy Barbosa (1849-1923); José Maria da Silva Paranhos Júnior, Barão do Rio Branco (1845-1912), e Ramiro Saraiva Guerreiro (1918-2011), diplomatas-estadistas, construíram a reputação de uma diplomacia respeitável e vitoriosa aos olhos do mundo.
José Bonifácio, o Patriarca, teceu o reconhecimento de nossa Independência e fincou as fundações de uma diplomacia prudente e altruísta. O visconde do Uruguai e o visconde do Rio Branco protegeram os interesses pátrios no convulsionado estuário do rio Prata. Ruy Barbosa fez do Brasil protagonista consagrado na célebre Conferência de Haia, em 1907. O barão do Rio Branco solucionou pacificamente todas as reivindicações de fronteiras envolvendo nossos vizinhos. Saraiva Guerreiro orientou o discurso do primeiro presidente brasileiro, João Figueiredo, na Assembleia Geral da ONU, em 1982, de equidistância no mundo bipolar dividido em áreas de influência dos Estados Unidos e da União Soviética.
Houve momentos em que o destino do Brasil dependeu da capacidade de nossa diplomacia, quando ela resolvia conflitos, em vez de produzi-los, como hoje.
Assumimos a missão de proteger o Ocidente pretensamente ameaçado pelo “choque de civilizações”, sem que os formuladores de tal posição se deem conta de que civilização ocidental não é um conceito geográfico, nem mesmo histórico no sentido da herança greco-romana, mas uma geometria geopolítica na qual cabem apenas a Europa Ocidental, os Estados Unidos, o Canadá e, olhe lá, a Austrália, excluída a América Latina.
Assim, não deixa de ser patético que toda a pressão contra o governo brasileiro no caso das queimadas da Amazônia tenha origem na Europa Ocidental, e que a única manifestação em defesa do Brasil tenha vindo de um diplomata chinês acreditado em Brasília. E foi no parlamento da Áustria, nação alma mater do Ocidente que o acordo Mercosul-União Europeia colheu sua primeira derrota.
A hostilidade contra o mundo árabe se opõe a tudo o que fez o Brasil para construir uma relação de amizade e cooperação com árabes e israelenses, desde Dom Pedro II, Osvaldo Aranha, Jânio Quadros, Geisel e Lula.
O presidente escolheu a tribuna da ONU para uma grave defesa da soberania do Brasil na Amazônia e de denúncia da manipulação das causas legítimas dos indígenas e do meio ambiente por interesses nem sempre legítimos ou generosos. Mas tornou este momento menor ao renegar o que Gilberto Freyre denominou de vocação de nossa diplomacia para a mediação e ao apelar para a retórica do confronto com vizinhos e nações amigas e para anacronismos dignos dos piores momentos da Guerra Fria.
O ciclo de fracassos e vexames tem se ampliado com o veto da Índia a um nome brasileiro para presidir a negociação sobre subsídio para o setor da pesca na OMC, em retaliação a uma aliança do Brasil com os Estados Unidos que contrariou interesses da Índia no âmbito da Organização; com a declaração da ministra do meio ambiente da França, Elisabeth Borne, anunciando que seu país não assinará o acordo Mercosul-União Europeia em razão da posição brasileira sobre a Amazônia e o clima; e com a divulgação da carta norte-americana apoiando a entrada de Romênia e Argentina na OCDE em prejuízo momentâneo da pretensão brasileira.
Nada mais faltasse, o escritor moçambicano Mia Couto anuncia que vai contatar vencedores do prêmio Camões, a maior honraria conferida a um escritor da língua portuguesa e instituída pelos governos do Brasil e de Portugal, para tomarem uma posição conjunta contra o presidente do Brasil por sua intenção de não assinar o diploma do prêmio concedido este ano ao compositor e escritor brasileiro Chico Buarque de Holanda.
Certas personalidades nacionais elevam-se, por sua contribuição a determinado domínio das artes ou das ciências, acima dos crivos ideológicos que dividem a sociedade. Chico Buarque está entre elas. Certa vez perguntaram ao ainda candidato general João Figueiredo, sua opinião sobre o ilustre compositor. O general deu uma resposta cuidadosa e simpática: preferia a fase romântica de Chico Buarque, ao que Chico respondeu que preferia a fase romântica do general Figueiredo.
É chocante que em plena democracia governantes e burocratas destrambelhados contribuam com gestos ou palavras para degradar figuras de destaque das letras e das artes do país por meras razões ideológicas.
A noção de que os objetivos nacionais permanentes devem orientar a ação diplomática é substituída pela conveniência e devaneios sectários que constroem ameaças socialistas ao Brasil e ao mundo, existentes apenas na cartilha das extravagâncias ideológicas de parte de formuladores da Política Externa.
O processo de degradação do precioso ativo formado por nossa tradição diplomática construída ao longo de séculos compromete a imagem do Brasil, restando a esperança da reconstrução futura a partir da memória do que fomos.
Por fim, patéticos não são os homens guiados, quem sabe, pelas belas e boas intenções de seus enganos. Pior, patéticos são os fatos por eles gerados em prejuízo do interesse e do bem comum.