A guerra civil psicótica de volta à Casa Branca
Entender Trump exige política e psicanálise. Ele sintetiza a desintegração do capitalismo em meio à miséria, violência e depressão. E mobiliza a psicose coletiva que aliena multidões em nome de um ideal: “vencer a qualquer preço”
Por Franco ‘Bifo’ Berardi, em Diario Red| Tradução: Rôney Rodrigues
Tal como as algas mutantes e monstruosas que invadem a lagoa de Veneza, as nossas telas de televisão estão povoadas, saturadas, de imagens e opiniões “degeneradas”. Outra espécie de algas que vale a pena ter em conta, desta vez relacionada com a ecologia social, consiste nesta liberdade de proliferação concedida a homens como Donald Trump, que se apoderam de bairros inteiros de Nova Iorque, Atlantic City, etc., para os “renová-los” no processo em que os alugueis sobem e expulsam milhares de famílias pobres, a grande maioria das quais estão condenadas a perder a sua casa, sendo este caso o equivalente, para os nossos propósitos, a peixes mortos na ecologia ambiental. (Félix Guattari: Les trois écologies, Paris, Éditions Galilée, 1989, p. 34.)
Nestas linhas, escritas quando Trump começava a ocupar a cena pública, Guattari prevê o que agora é mais claro que a luz do dia: a desregulação neoliberal permite que algas monstruosas contaminem as águas. Tudo se desenrolou pontualmente e agora o mar superaquecido desencadeia tempestades terríveis, que matam centenas de pessoas na costa espanhola. Além disso, a desregulação permite a proliferação de fontes de declarações destinadas a contaminar a mediosfera e, consequentemente, a psicosfera. Aconteceu pontualmente: turbas de psicoadictos votam num sem-vergonha, que promete a maior deportação de migrantes da história. Estas poucas linhas de Guattari descrevem a gênese de um ambiente venenoso, que gera violência e opressão, ao mesmo tempo que desencadeia a guerra de todos contra todos, gerando as condições para uma tirania cínica, barroca e destrutiva.
Reconsideremos as premissas distantes daquilo que chamamos de desregulação. No início está a criação tecnológica do paradigma rizomático. Graças à comercialização de tecnologias electrônicas durante as décadas de 1960 e 1970, tornou-se possível a difusão democrática de fontes autonomas de informação. Na Itália e na França criamos centenas de estações de rádio livres depois de travarmos uma batalha cultural contra o monopólio estatal da informação. Então, a criação da world wide web possibilitou a proliferação de inúmeros centros de netcultura ao redor do mundo. Mas pela fenda aberta pela criatividade difusa entraram grandes grupos econômicos e mafiosos (Berlusconi em Itália, Trump nos Estados Unidos e indivíduos semelhantes em todos e cada um dos países do mundo), cujo objetivo não era certamente a criação, a cultura ou a informação, mas a acumulação de capital e a aquisição de poder político ilimitado sobre as mentes de uma sociedade psiquicamente subjugada.
Zed is dead, baby
Vi The Apprentice (2024), filme de Ali Abbasi, que aborda o período de aprendizagem do candidato republicano das atuais eleições estadunidenses. O título é habilmente retirado do programa televisivo em que, há algumas décadas, Donald Trump submetia os candidatos a diversas humilhações, que apareciam diante dele para serem insultados, ridicularizados, questionados e, por fim, despedidos (“You’re fired”). Havia filas para serem ridicularizadas publicamente por aquele indivíduo loiro. Porque? O enigma de Trump demonstra que os instrumentos de análise política já não são úteis. Na verdade, para compreender tal monstruosidade ética, psíquica e política, é necessário falar em humilhação, tristeza epidêmica, autodepreciação, é necessário falar em liberdade ilimitada para escravocratas, tiranos psicóticos e fabricantes de armas. O filme de Abbasi consegue isso até certo ponto: pode ser não seja um grande filme, mas é útil para compreender alguns dos antecedentes psíquicos, existenciais e mafiosos em que Trump cresceu. É útil compreender as ferramentas de seu domínio sobre a psique de um povo miserável e imensamente ignorante.
O filme não é sobre o programa The Apprentice, do qual apropriadamente tira o título, mas na verdade sobre o aprendizado do próprio Trump. Como se tornou o que é? Para responder a esta questão, a psicanálise pode ser mais útil do que a teoria política. A sobrinha do homem laranja, Mary L. Trump, psicóloga de formação, escreveu um livro intitulado Too Much and Never Enough: How My Family Designed the World’s Most Dangerous Man (2020), no qual ela tenta entender seu tio de um ponto de vista psicanalítico. A primeira impressão que tive ao ler o livro é que a vida desse indivíduo foi (e é) imensamente triste. O pai de Trump era, na opinião de Mary, uma pessoa sociopata, mas eficiente. O filme de Abbasi também consegue mostrar como a relação com o pai foi decisiva. Donald viveu sua infância e adolescência com medo da humilhação a que seu pai o submeteu sistematicamente, o que lhe causou profundas feridas psicológicas. “A crença fundamental de Fred (o pai sociopata) é esta: na vida há sempre apenas um vencedor e todos os outros são perdedores; a amabilidade, por outro lado, significa apenas fraqueza”. “Ou você é um perdedor ou é uma pessoa que aposta tudo”, diz o pai ao pequeno Donald. Partindo de tais premissas, é impossível desfrutar das relações com os outros, pois essas relações só podem ser de competição, agressão ou submissão. Mas, infelizmente, não será este um traço decisivo da personalidade coleiva dos habitantes deste país, que não teria existido sem o genocídio dos nativos americanos e sem a deportação e a escravidão?
As três regras que Donald aprende com um advogado racista da máfia (Roy Cohn) são as seguintes:
1. Ataque, ataque, ataque.
2. Sempre minta.
3. Sempre declare vitória e nunca admita a derrota.
Como observa um personagem do filme, que é jornalista do The New York Times, esses três princípios descrevem muito bem a política externa estadunidense dos últimos 30 anos. Eu diria que eles definem o espírito público dos Estados Unidos da América, do princípio ao fim. O inconsciente coletivo dos estadunidenses brancos é um porão fétido de onde emergem monstros como aquele que Tarantino retratou em Pulp Fiction (1994). Você se lembra de quando Bruce Willis liberta Marcellus daquele porão, onde Zed, o torturador, o mantém amarrado para abusar dele? Não há melhor maneira de explicar os anos Trump, embora, infelizmente, me pareça que Zed está vivo e bem, preparando-se para pisotear um bando de pobres.
Nomen est omen
No início de 2021, logo após o ataque ridículo ao Capitólio pelas tropas do general Trump, publiquei um ensaio intitulado “The American Abyss” no e-flux. Quatro anos mais tarde, esse abismo está se tornando mais profundo e um perigo torna-se cada vez mais evidente: a desintegração da mente estadunidense pode desencadear uma reação em cadeia que acabará por aniquilar a vida humana na Terra. Às vezes penso no nome desse indivíduo: trump significa vencer, superar, subjugar, mas o substantivo trump também significa peido, peido fedorento. Se alguma vez a frase “nomen est omen” [o nome é tudo] foi verdade, é esse o caso. O homem laranja é um peido fedorento, que se propõe (e consegue) a empestear a atmosfera psíquica, humilhando e ameaçando. Se eu tivesse a infelicidade de ser cidadão estadunidense, não votaria em nenhum dos candidatos: a senhora Harris, que prometeu que os militares dos EUA estarão sempre equipados com a letalidade máxima, é mais perigosa do que o senhor Trump do ponto de vista europeu, porque com a senhora Harris como presidente, a guerra na Ucrânia se estenderia até o limiar atômico. Trump, que representa consciente e explicitamente os interesses da raça branca, seria uma catástrofe para os palestinos e, de forma mais geral, para os migrantes, a quem Trump e Vance prometeram “a maior deportação da história”. Mas é difícil imaginar como Trump poderia ser mais implacável do que Biden e Obama, que deportaram mais migrantes durante as suas presidências do que o homem peido. E é difícil imaginar como é que ele poderia ser mais implacável com os palestinos do que Biden, que nunca deixou de apoiar financeiramente ou de enviar armas aos exterminadores israelenses. Talvez eu fosse menos hipócrita.
Psicose memética
Em 6 de janeiro de 2021, enquanto o novo presidente democrata se preparava para assumir o seu lugar na Casa Branca e o Congresso se reunia para realizar os seus rituais institucionais, uma multidão heterogênea respondeu ao apelo de Trump para salvar a América e alguns milhares de perturbados marcharam em direção ao Capitólio. Sem encontrar qualquer resistência séria por parte da polícia, estes lunáticos entraram nas salas do Capitólio, quebraram os vidros das janelas, vociferando enquanto agitavam bandeiras confederadas e bandeiras com suásticas. Donald Trump incitou os alvorotados a recuperar o poder pela força. “Você nunca recuperará seu país com fraqueza. Devem mostrar força e ser forte. […]. Lutem, lutem como homens condenados. E se vocês não lutarem como condenados, não haverá país para vocês”. No final do dia a multidão voltou para casa, como faz depois de um belo passeio de domingo. Algumas pessoas ficaram feridas e uma foi morta após tiros de um policial. Os comentaristas democratas ficaram realmente indignados, como não compreendê-los, mas a indignação dos Democratas perante as falsidades contadas por Trump e nas quais os seus seguidores acreditam é pueril. Depois de 2008, os estadunidenses brancos, atolados em duas guerras insanas, humilhados pelo empobrecimento provocado pela crise financeira e aterrorizados pelo colapso demográfico, agarraram-se desesperadamente às suas armas, aos seus SUVs, ao seu direito de comer carne e ao seu direito de matar.
O que aconteceu em Washington no dia 6 de janeiro de 2021 não foi uma insurreição ou um golpe de Estado, mas sim um episódio ridículo e criminoso da guerra civil americana, que é o entrelaçamento de vários conflitos, ou seja, um conflito entre o nacionalismo branco e o globalismo liberal, um conflito entre a população branca e a população negra, latina e asiática, um conflito entre as metrópoles e as áreas rurais empobrecidas e um conflito cultural entre secularistas e fanáticos de algum Jeová sintético, mas esta guerra está diante de uma guerra civil psicótica guerra de lunáticos armados, que decidem matar a primeira pessoa que se coloque no caminho. Este é o abismo estadunidense, não a propagação de fake news. Em 2016 aconteceu o impensável: um nazista loiro tingido venceu as eleições. A partir desse momento ficou claro que a maior potência do mundo is running amok [está fora de controle], que perdeu a cabeça, enquanto tem 120 armas de fogo para cada cem habitantes. Os Democratas queixam-se de que as redes sociais produzem uma avalanche de falsidades, mas só uma pessoa ingênua não perceberia que as falsidades não podem ser erradicadas, porque os Estados Unidos são o reino da falsidade.
Entre 1º de janeiro e 31 de agosto de 2023, ocorreram 28.293 mortes por armas de fogo nos Estados Unidos. As mortes em ações de mass-shooting (como traduzir uma palavra tão ligada à língua dos pistoleiros?) foram 474. Os homicídios não intencionados por arma de fogo, ou seja, os mortos por acidente no manuseio de arma, foram 1.070.
Um pai estadunidense
Apesar de consumirem quatro vezes mais eletricidade e muito mais carne do que qualquer outra pessoa no planeta (ou talvez por causa disso), os cidadãos dos Estados Unidos levam vidas miseráveis. A expectativa média de vida na Espanha é de 83,3 anos, na Suécia 83,1, na Itália 82,7, na China 77,1. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida nos últimos anos é de 76,1 anos. 65% dos habitantes não têm poupanças e, se adoecerem, têm boas chances de acabar nas ruas. Em 2022, se produziram 100 mil mortes por overdose de opiáceos. A maior potência militar do planeta está se desintegrando. A palavra “impensável” é recorrente no discurso público estadunidense nos últimos anos. “Precisamos pensar o impensável sobre o nosso país” é o título de um editorial do TheNew York Times publicado em 13 de janeiro de 2022, escrito por Jonathan Stevenson e Steven Simon:
As próximas eleições nacionais serão inevitavelmente disputadas sanha e talvez violência. É correto afirmar que a ameaça que a direita representa aos Estados Unidos – e o seu objetivo evidente de lançar as bases para tomar o poder ilegitimamente, se necessário, em 2024 – é politicamente existencial. […] O pior cenário é este: os Estados Unidos como conhecemos poderão desintegrar-se.
The Unthinkable: Trauma, Truth, and the Trials of American Democracy, por outro lado, é o título de um livro de Jamie Raskin, publicado em 6 de janeiro de 2022, no primeiro aniversário da insurreição psicótica. O autor não é apenas um escritor, mas um importante membro do Congresso, eleito em Maryland para as fileiras do Partido Democrata. Além disso, Jamie Raskin é professor de Direito Constitucional, autodenomina-se liberal e pai de três filhos na faixa dos vinte e trinta anos. Um deles, Tommy, de 25 anos, ativista político, apoiador de causas progressistas e defensor dos animais, morreu na noite do último dia do ano de 2020. Tommy escolheu morrer, suicidou-se como dizem. Fez isso depois de uma longa depressão, mas também como consequência da longa humilhação moral que o trumpismo infligiu aos seus sentimentos humanitários. Para Jaimie Raskin, a decisão final de Tommy não é apenas uma catástrofe emocional, mas o início de uma reconsideração radical das suas convicções. Ao ler este livro, partilhei a dor de um pai e o tormento de um intelectual, mas ao mesmo tempo foi revelada a profundidade da crise que está dilacerando o Ocidente e, em particular, obscurecendo o horizonte cultural da democracia liberal. O pai não tem mais nenhum mundo de valores para transmitir ao filho. No livro, três histórias diferentes se desenrolam simultaneamente e se alimentam reciprocamente: a primeira é a história do fascismo estadunidense emergente. A segunda é a vida de Tommy, a sua educação, os seus ideais e a constante humilhação da sua sensibilidade ética. A terceira é o efeito da covid-19 nas mentes da geração mais jovem, aquela que mais sofreu com as regras de distanciamento. Tommy sofria de depressão e, em sua última mensagem, fala sobre isso: “Perdoe-me, minha doença venceu”.
Jamie Raskin escreve:
Tal como muitos jovens da sua geração, Tommy foi arrastado pela covid-19 para uma espiral maligna. Com os centros educativos fechados, a sua vida social foi reduzida a um pontofrágil acompanhado da máscara, as viagens tornaram-se um pesadelo. As relações tornaram-se difíceis, forçadas a uma intimidade prematura e torpeou de fato condenadas ao esquecimento virtual. Muitos jovens sofreram com o desemprego, a falta de oportunidades econômicas e uma profunda incerteza. Muitos, como Tommy, foram obrigados a voltar para a casa dos pais e ficar em uma sala cheia de livros de bacharelado[…]. Tommy declarou-se antinatalista porque não podia aceitar a perspectiva de comprometer outro ser humano com uma vida destinada a ser dominada pela dor da tristeza e do sofrimento.
Por mais que Sarah e eu tentássemos descrever para ele a alegria de ter filhos, Tommy não renunciava a sua determinação, porque ninguém tem o direito de impor a outra pessoa a inevitável experiência de dor. Não me dá muito conforto saber que uma parcela enorme e crescente da sua geração sente o mesmo em relação à opção de não ter filhos.
O antinatalismo é provavelmente um efeito da depressão – como não seria? – mas mostra que a depressão pode ser uma condição de sabedoria e não apenas uma doença. Torna-se uma doença quando não compreendemos a sua mensagem e tentamos desesperadamente conformar-nos com as normas dominantes de produtividade, eficácia e dinamismo. Rechaçar a mensagem da depressão, reafirmar a força de vontade contra a mensagem que ela nos envia, é uma forma de cair numa tendência suicida. Se formos capazes de compreender o significado e a sabedoria da depressão, é possível uma evolução consciente e partilhada da mesma. No caso de Tommy isto é evidente: o seu denatalismo é talvez mais sábio do que a decisão irresponsável de dar à luz a inocentes destinados a uma vida quase certamente infeliz.
Após a morte do filho, a percepção de Raskin muda: seu otimismo constitucionalista vacila diante da explosão da força bruta, que tende a anular a força da razão, enquanto suas certezas democráticas vacilam diante da proliferação da depressão.
De repente, meu otimismo constitucional me deixa numa situação difícil, como se fosse uma vergonha. Temo que o meu resplandecenteoptimismo político, que muitos dos meus amigos apreciaram em mim, se tenha se tornado uma armadilha de auto-engano massivo, uma fraqueza que pode ser explorada pelos nossos inimigos.
O otimismo político deste generoso professor de Direito Constitucional é abalado pela súbita constatação de que a democracia liberal está sentada em alicerces frágeis. De fato, ele escreve:
Sete dos nossos primeiros dez presidentes eram proprietários de escravos. Estes fatos não são acidentais, mas nascem da própria arquitetura das nossas instituições políticas.
A escravidão faz parte da bagagem psíquica da nação estadunidense. Como pode esta nação esperar servir de exemplo para as outras? Como podemos não pensar que esta nação é um perigo para a sobrevivência da humanidade?
A lei do pai não tem mais poder sobre o caos
Trump poderá voltar a ser presidente dos Estados Unidos da América [este texto foi escrito antes da vitória do ex-presidente estadunidense], enquanto o mundo entrou, por meio das instâncias estadunidenses, num ciclo de guerra civil psicótica, cujos resultados são imprevisíveis e, na verdade, verdadeiramente impensáveis. O pai não tem mais um mundo de significado para legar ao filho. A lei do pai não tem mais poder sobre o caos. Quem quer que ganhe estas eleições dopadas de bilhões de dólares, o caos está garantido.