A inconstitucional alienação da autonomia reprodutiva das mulheres
A conformação social brasileira, marcada pelo machismo e patriarcado, comprometeu e ainda compromete a autonomia de mulheres em diversos campos, inclusive no da sexualidade e da reprodução.
Com efeito, as condições de vida e certas imposições sociais acabam por determinar as escolhas e condutas de muitas mulheres, que vivenciam o próprio planejamento reprodutivo de maneira imperativa.
Conforme preceitua Daniel Sarmento (2007, p. 43-44), o fundamento da autonomia reprodutiva pode ser extraído da própria ideia de dignidade humana da mulher (artigo 1º, III, Constituição da República de 1988 — CR/88), bem como dos direitos fundamentais à liberdade e à privacidade (artigo 5º, caput e inciso X, CR/88), sendo dotada, portanto, “de inequívoco fundamento constitucional”.
Além disso, a Constituição estabeleceu expressamente — em seu artigo 226, parágrafo 7º — a liberdade em relação ao planejamento familiar, impondo ao Estado o dever de propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, bem como a vedação de coerção tanto por parte de entidades públicas quanto privadas.
Flávia Piovesan (2003, p. 242) sustenta que o conceito de direitos reprodutivos “tem sido assim ampliado, no sentido de abarcar todo o campo relacionado com a reprodução e sexualidade humanas, passando a compreender direitos reprodutivos e sexuais, concebidos no âmbito dos direitos humanos”.
Válido pontuar, contudo, que, apesar de os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres restarem consolidados no plano jurídico constitucional brasileiro, sendo, inclusive, incorporados em tratados internacionais, com frequência as mulheres permanecem submetidas à dominação masculina e a diversas outras formas de violência de gênero, sendo-lhes retirado, inclusive, o direito de decidir sobre a maternidade e sobre a sua própria saúde.
Nesse sentido, cabe mencionar, a título ilustrativo, que restou noticiado pelo jornal Folha de S.Paulo (Damasceno, 2021) que planos de saúde têm exigido de mulheres casadas o consentimento de seus maridos para autorizarem o procedimento de inserção do método contraceptivo DIU (dispositivo intrauterino).
Ora, é inegável que tal exigência limita e viola diretamente os direitos constitucionais reprodutivos das mulheres, caracterizando flagrante prática de controle e repressão masculina. Trata-se, com efeito, de exemplo emblemático de violação à autonomia da mulher sobre seu próprio corpo, revelando uma odiosa desigualdade de gênero, que também pode ser observada em outros âmbitos.
Seguindo a mesma trilha, expõe Lopes (2008, p. 23) que, apesar das conquistas femininas, como o direito ao voto, da evolução dos costumes, das reivindicações do movimento feminista e de acontecimentos como as grandes guerras — que fizeram com que as mulheres assumissem tarefas tradicionalmente reservadas aos homens —, ainda não se vislumbra uma paridade entre sexos.
Deveras, além do controle da sexualidade e da capacidade reprodutiva da mulher, a dominação masculina ainda se mostra evidente quando se constata a sub-representação das mulheres na política, a intensa discriminação salarial entre homens e mulheres, dentre outros.
Nessa perspectiva, não resta dúvida de que a exigência de consentimento conjugal por parte dos planos de saúde para autorizar mulheres casadas a realizarem o procedimento de inserção de DIU, assim como a imposição de práticas como o consentimento de ambos os cônjuges para a esterilização voluntária durante a vigência da sociedade conjugal, configura ato manifestamente ilegal e representação perversa de poder/violência de gênero contra as mulheres; podendo, por isso, gerar, por parte das pacientes reclamações junto ao Procon e também perante a Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Além disso, à luz dos argumentos acima listados, reconhecida a falta de efetividade na garantia da igualdade e não discriminação de gênero no Brasil, imperioso faz-se o desenvolvimento, por parte do Estado, de políticas públicas voltadas para a conscientização e educação de gênero, como forma, entre outros, de efetivar a autonomia existencial da mulher, assegurando-lhe, de forma concreta, entre outras, a liberdade para decidir sobre seu próprio corpo, concretizando, dessa feita, em última instância, a promessa constitucional de uma sociedade livre, justa e solidária que condena discriminações preconceituosas de qualquer espécie (artigo 3º, inciso IV, da CR/88).
Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/
DAMASCENO, Victoria. Seguros de saúde exigem consentimento do marido para inserção do DIU em mulheres casadas. Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 3 ago. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.
LOPES, Ana Maria D’Ávila et al. Gênero: fator de discriminação na teoria e prática dos direitos fundamentais das mulheres. In: Revista Nomos Fortaleza, v. 28, p. 15-34, jan./jul., 2008.
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.
SARMENTO, Daniel. Legalização do Aborto e Constituição. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
Renata Martins de Souza é doutora em Direito Público, mestre em Teoria do Direito pela PUC Minas, professora de graduação do curso de Direito e defensora pública do estado/MG.