A luta de classes e a solidão do povo brasileiro

O Brasil é um país atolado numa profunda e aguda violência de classe, mas com uma esquerda que prefere nadar no raso a enfrentar os ricos

Por Pedro Alcântara

A vida do povo brasileiro não é boa. Embora dados recentes deem conta de uma melhora em alguns índices econômicos, esse pequeno suspiro está muito longe de representar uma mudança substancial na realidade da grande massa da população brasileira, consumida por um cotidiano precário, convivendo com baixíssimos salários e com o dia-a-dia caótico, insalubre e adoecedor das grandes cidades brasileiras.

A esmagadora maioria dos brasileiros se encontra entre os que escapam da fome através de programas sociais, os que são moídos e humilhados 10h por dia em empregos precários em busca do sonhado salário mínimo e os que ascendem ao “olimpo” dos três salários mínimos mensais. Pessoas submetidas a juros bancários extorsivos, a padrões de trabalho desumanos, a serviços públicos limitados, à violência do Estado, à ausência de pleno acesso à moradia e saneamento, a transportes lotados e caros, a preços abusivos dos planos de saúde e do sistema privado de ensino.

Esse é o verdadeiro calvário a que está submetido nada menos que 90% do povo brasileiro. Sim, segundo o IBGE, esse é o percentual de pessoas que vivem com até três salários mínimos, sendo 60% composto por pessoas que vivem com, no máximo, 1.400 reais. O Brasil é um país atolado numa profunda e aguda violência de classe, onde as elites locais mantêm com mãos de ferro as estruturas políticas e econômicas que as permitem dominar cruelmente a quase totalidade do povo brasileiro.

Essas elites garantem seus extraordinários excedentes de riqueza explorando a população de várias maneiras. De forma direta, como nos abusivos 400% de juros sobre o crediário popular cobrados pelos bancos, com as novas regras trabalhistas que roubam o tempo dos trabalhadores e diminuem seus salários, ou com o saque de terras, as queimadas, a fome e o assassinato no campo pelos latifundiários. Também o fazem indiretamente através do assalto ao orçamento público, obrigando o governo a garantir pagamentos bilionários aos rentistas, ao agronegócio e ao setor privado através de contratos públicos e desonerações.

Somente ano passado o cofre da União pagou 600 bilhões de reais ao rentismo com juros da dívida pública e garantiu 400 bilhões ao agronegócio com o Plano Safra, que assegura lucro líquido e certo aos novos coronéis da terra, com módicos e privilegiados juros de até 11% ao ano. Isso para não falar nos 16 bilhões de isenção fiscal para os grandes industriais. Noutra ponta, o governo sofre enorme pressão dessa elite em favor de cortes nos já modestos gastos que poderiam melhorar a vida de 90% dos brasileiros, deixando sobrar mais espaços para a raspa do tacho pelos mais ricos. Nem mesmo o BPC, pago a pessoas pobres doentes, escapa da sangrenta guerra dos ricos contra os pobres no Brasil.

Trata-se, portanto, de uma guerra de classe declarada e operada pela burguesia contra a população brasileira. Uma guerra cujos sentidos e as ações em curso, porém, não são explicitados pela esquerda, que se nega a dialogar franca e diretamente com o povo sobre os verdadeiros fundamentos de sua exploração. E não o faz porque se recusa a atacar ou, no mínimo, tensionar esses fundamentos, pois se mantém refém de uma estratégia política segundo a qual seria possível promover avanços graduais pactuando ganhos marginais para os trabalhadores no interior do jogo das elites.

O resultado é uma esquerda que, buscando manter as condições de negociação com os ricos, não dialoga assertivamente com a população sobre a superação dos seus problemas, pois não poderá entregar soluções. Na quadra atual da história brasileira isso é grave, pois diferente dos anos áureos do lulismo, quando o país crescia muito e os ganhos marginais realmente mudavam a vida das classes populares, agora o confronto agudo precariza sensivelmente a vida dessas camadas, que esperam respostas urgentes e contundentes para sua escassez, mas apenas recebem da esquerda hegemônica promessas moderadas e discursos evasivos, que de forma alguma apontam para o “x” da questão, que é a exploração de classe.

Ao buscar erroneamente preservar uma estratégia defasada, que impõe limites à ofensiva contra a agenda dos ricos na década mais feroz do neoliberalismo, a esquerda não está conseguindo mais falar com o povo. E não é um problema somente de método de comunicação, é uma crise de concepção, de projeto e estratégia política.

Nesse contexto dramático vemos o governo escolhendo a busca pelo déficit zero e, no melhor dos mundos, por superávit, como o grande objetivo de sua economia política. Escolhe, portanto, o neoliberalismo austero, a manutenção estrutural do modelo de exploração exigido pela elite sem qualquer mudança de rota, ainda que mínima. Aqui, programa e estratégia política se alinham, mas do lado errado, com a preservação da estrutura material (programa) e o rebaixamento da luta de classes (estratégia), evitando o conflito.

Para os defensores desse caminho ele seria o único possível frente a uma super elite com vigor para derrubar o governo a qualquer momento. Cria-se uma falsa dicotomia entre a luta total e a queda iminente. Há outros caminhos, outras possibilidades de ir aumentando a dose do enfrentamento e de inflexão do programa. Tão ou mais arriscado que buscar essas mudanças é seguir encurralado, incapaz de mobilizar a sociedade, andando sempre no fio da navalha da popularidade. Ademais, a estratégia atual, que é a mesmíssima de 20 anos atrás, além de desatualizada e equivocada, é eticamente inaceitável.

Sustentando o labirinto econômico está um sistema político apodrecido, completamente desacreditado pelo povo, absolutamente recheado de negociatas espúrias no interior das instituições políticas e do judiciário, e na relação destes com a elite econômica que fala em “on” na grande mídia e em “off” nos corredores e jantares de Brasília. E aqui novamente a esquerda se coloca como mantenedora do status quo. Ao tratar “democracia” e “instituições liberais” como sinônimos, a esquerda se põe como salvadora dos liberais e defensora de um sistema político odiado pelo povo, sem propor nenhuma modificação.

Enquanto isso, o neoliberalismo aperta o nó e aprofunda a luta de classes. Já não usa máscaras e troca as ilusões capitalistas pela crua aceitação da vida sem perspectiva, canalizando a fúria dos desalentados para uma pretensa queda moral como causa da crise, onde mulheres “incontroláveis”, homossexuais “pervertidos”, negros “petulantes” ou comunistas “invasores” são os responsáveis pela desgraça, mãos dadas com o sistema político corrompido. É exatamente aí que opera a extrema-direita, criando uma conexão forte entre discurso político disruptivo e hipertrofia de valores morais já presentes na cultura popular, oferecendo uma saída em favor do neoliberalismo selvagem.

E onde está a esquerda? Praticando uma estratégia defasada, buscando fórmulas comunicacionais mágicas para vencer a “guerra de narrativas”, mirando os evangélicos, batendo boca com gente insignificante no parlamento. Nadando no raso, enfrentando os sintomas da doença, não as causas. E a causa principal, tanto da pobreza quanto do esboço de fascismo, é a economia política neoliberal que promove um enorme aprofundamento da exploração, em desfavor de todos os grupos oprimidos, que deveriam ter na luta de classe um elo para unificação de suas lutas. Mas há um imenso espaço vazio na sala.

A esquerda brasileira possui um grande ativo, um líder de massas que fala diretamente com o povo e é para boa parte dele sua figura de referência: Lula. Não há, agora, alternativa de massas à sua liderança, pela esquerda, e isso exige que se traga ou que se empurre essa liderança para uma nova estratégia de mais enfrentamento. Sem a contribuição dele e de sua relação com o povo, a missão fica muito mais difícil.

É necessário falar da vida real, material, apontar com todas as letras os algozes do povo brasileiro, propondo saídas reais, organizando um projeto de país e conectando isso com outros valores morais que também ressoam na cultura popular: a solidariedade, o combate às injustiças, o direito à existência e a um horizonte de vida digna, a partir da revolta contra a exploração, e não da ode a um diálogo vazio. Para isso é preciso mudar o programa e a estratégia, trazendo a luta de classes à cena novamente. Fora disso, nesse período histórico e nesse país de gente superexplorada e desamparada da periferia do sistema, seguiremos esvaziados de sentido e de ação.

Até lá segue o povo brasileiro em sua solidão, nesse vale de sofrimento e humilhação que é o Brasil real.

(*) Pedro Alcântara é doutor em ciências sociais pela UFRN e dirigente do PT em Pernambuco.

Do Opera Mundi

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