A luta por uma educação antirracista e libertadora no Ensino Jurídico Brasileiro
Lei nº 10.639/2003 deve ser cumprida tanto no âmbito da educação básica, quanto no âmbito do ensino superior
Há mais de duas décadas, a Lei nº 10.639/2003 objetiva transformar a realidade do racismo no ambiente educacional brasileiro. Embora seja uma medida essencial, a Lei ainda é desconhecida por uma parcela significativa da população e carece de ampla adesão em sua implementação tanto no ensino básico quanto no superior.
A Lei nº 10.639/2003 alterou a Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) para incluir no currículo oficial obrigatório das escolas públicas e privadas da educação básica a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, cujos objetivos são valorizar e ressaltar a presença africana na sociedade, bem como combater a discriminação e o preconceito racial.
Nesse sentido, o que grande parte da sociedade também desconhece é que a Resolução CNE/CP 01/2004 do Ministério da Educação, fundamentada no Parecer CNE/CP 003/2004, determinou o ensino da Educação das Relações Étnico-Raciais para o ensino superior, obrigando-as a ministrarem disciplinas que contemplem a Lei nº 10.639/2003.
Partindo dessa premissa, podemos afirmar sem titubear que a Lei nº 10.639/2003 deve ser cumprida tanto no âmbito da educação básica, quanto no âmbito do ensino superior.
Não bastasse isso, a inclusão de temas e disciplinas relativas à direito e relações raciais tem natureza constitucional. Isso ocorre porque o Brasil incorporou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância,em 2013. Logo, nossa constituição possui todo um capítulo dedicado à discriminação racial.
Nesse contexto, destacam-se dois dispositivos da Convenção acima referida. O primeiro conceitua discriminação indireta: Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Assim, levando em conta o conceito de discriminação indireta apresentado pela Convenção, podemos afirmar que a não incorporação da Lei nº 10.639/2003 até o presente momento configura um caso extremo de discriminação indireta. Isso ocorre porque a falta de implementação de uma educação voltada para as relações raciais perpetua a desvantagem histórica enfrentada pela população negra brasileira.
É importante ressaltar que a não observação da Lei n° 10.639/2003 também está relacionada ao descumprimento da Lei n° 12.990/2014, que estabelece o sistema de cotas raciais nos concursos públicos. Ao não incluirmos professores e professoras negras no ensino superior, limitamos a diversificação do ensino e comprometemos a construção de um ambiente acadêmico mais plural, onde experiências e perspectivas diversas possam ser compartilhadas. Isso, por sua vez, favorece um aprendizado mais abrangente e representativo da sociedade.
Ademais, conforme o artigo 6º da referida Convenção, os Estados Partes se comprometem a adotar políticas públicas que promovam o tratamento equitativo e igualitário para todas as pessoas. Portanto, ao não cumprir a Lei nº 10.639/2003, o Estado Brasileiro, mais uma vez, viola os princípios da Convenção.
A implementação da Lei nº 10.639/2003 se trata de direito fundamental à educação, elevado à status constitucional, e explicitamente negligenciado pelas Faculdades de Direito.
A Lei nº 10.639/2003 representa um passo fundamental na desconstrução de um sistema educacional que historicamente negligenciou a contribuição e a presença dos afrodescendentes na formação da sociedade brasileira; e menosprezou a produção intelectual do povo negro. De outra perspectiva, a Lei, ao ser aplicada no âmbito do ensino superior, também objetiva trazer a reflexão racial à formação técnica profissional, de modo a corrigir atitudes racistas, que perpetuam estereótipos e preconceitos, o que muito se verifica no sistema de justiça brasileiro
É no sistema de justiça que visualizamos, escancaradamente, a perpetuação do racismo, seja ele normatizado por meio das leis, como também na inércia judicial diante das violações sistemáticas de direitos fundamentais da população negra.
Nesse sentido, infelizmente há uma baixa adesão dos cursos jurídicos no que tange à educação para as relações étnico-raciais, como demonstrou a pesquisa “Educação das relações étnico-raciais e enfrentamento do racismo no Judiciário: para além da ação punitiva?”, efetuada por Sales Augusto dos Santos.
Todavia, a Resolução nº 5 de 2018 (alterada pela nº 2, de 19 de abril de 2021), formulada pela Câmara de Educação Superior do CNE, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Direito e, em seu artigo 5º, enfatiza a prioridade da abordagem interdisciplinar e a integração de conhecimentos nos Projetos Pedagógicos dos Cursos – PPCs.
Os artigos 2º e 3º da referida resolução estabelecem que os Projetos Pedagógicos dos Cursos de Direito devem abordar conteúdos exigidos por diretrizes nacionais específicas, incluindo políticas de educação ambiental, direitos humanos, educação para a terceira idade, políticas de gênero, e a educação sobre relações étnico-raciais, além das histórias e culturas afro-brasileiras, africanas e indígenas. Assim, um curso que não institucionalize e integre a educação das relações étnico-raciais em seu currículo é considerado ilegal e contrário às resoluções do Ministério da Educação.
Verifica-se que há silenciamento dos referidos currículos em suas disciplinas obrigatórias quanto à pauta racial e que o ensino jurídico brasileiro não tem conseguido integrar efetivamente uma abordagem das relações étnico-raciais na organização de sua grade curricular, com o propósito de promover uma igualdade racial eficaz. Portanto, há que se propor uma reestruturação curricular ou inserção de pelo menos um componente curricular obrigatório que verse sobre a educação das relações raciais, de modo a implementar efetivamente a Lei n° 10.639/2003 no ensino superior jurídico.
Ademais, a não observação da Lei n° 10.639/2003 deve ser considerado tema para controle de constitucionalidade e controle de convencionalidade, diante da incorporação da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância com status de norma constitucional.
Dessa forma, é inadiável consolidar a igualdade de acesso e permanência de todas as pessoas no âmbito escolar e em todos os níveis de ensino – etapas fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
*Evandro Piza Duarte, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
**Lyellen Fernandes, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania
***Maíra de Deus Brito, doutora em Direitos Humanos e Cidadania
****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.
Edição: Flávia Quirino