A quem interessa a morte da escola?
O Brasil demorou 500 anos para realizar sua tarefa de ter todas as crianças nas escolas. Tarefa republicana por excelência, ela foi procrastinada pelo Império e pelas primeiras Repúblicas até o limite do século 20 Em números gerais, a partir do início deste século 21, tem 98% das crianças nas escolas de educação fundamental. O ensino, podemos dizer, se universalizou.
É interessante notar que a crítica à escola e ao seu aparato cresceu muito a partir do início do século 21, com a universalização iniciante da escola. Qual pode ser um dos motivos reclamação desta generalizada?
Todos sabemos que os números significativos da universalização foram atingidos. Embora o analfabetismo funcional ainda grama por todo o país, já há um índice de 98% de matrículas nas escolas públicas de educação fundamental e o acesso às creches significativamente em todo o país.
Ou seja, mais do que nunca, nossas escolas desviam ser antes, estimuladas, aparelhadas e financiadas pelo Estado. Afinal nossa escola republicana é a mais atrasada do continente sul-americano, para não comparar com a Ásia ou Europa.
Morte da escola quando “deixa” de ser boa
“Antigamente a escola era boa”, alguns. “Enquanto a escola era para poucos, ela era boa”, dizem outros. Nesse sentido, a escola era um privilégio de poucos. Qualidade para poucos não é qualidade, é privilégio. Qualidade tem que ser para todos.
Como soluções trazidas para a escola a partir dessa lógica perversa – chamada agora, sobretudo, de incompetente e desnecessária – se dão de múltiplas formas: acabar com a escola pública, privatizando tudo; substituir os professores por aulas online dadas por animadores de auditório; criar um sistema de aulas todas disponíveis na web; instaurar regime de homeschooling, ou matricular seus filhos em escolas americanas ou canadenses – para morarem para a depois de formados.
Sendo assim, o rumo dessa lógica é que se estabeleça uma nova modalidade de aprender que prescinda da escola, para construir um país gelatinoso e sem sonhos no qual apenas busque o sucesso individual acoplando cada aluno à sua máquina digital, com a internet das coisas e das pessoas.
A escola estando morta, quem ganha?
No início de 2020, temos aproximadamente 52 milhões de jovens em escolas, públicas ou particulares. Para onde vai esse espólio de seres humanos sem rumo a não ser as próprias iniciativas e de suas famílias (nem sempre elas mesmas formadas na escola básica)?
A renda média dos brasileiros que se utilizam da escola pública não é a mesma da Finlândia, tão decantada como produtora de resultados para a comparação de nossos alunos com os alunos que compõem os países da OCDE, com uns poucos com a distribuição perversa que tem o Brasil. Para onde vamos tais estudantes? Assim, com que recursos básicos terão livros, acessos a laboratórios, orientadores de pesquisas, organizadores de estudos do território ou grupos de trabalho colaborativos da comunidade?
Não vale responder que na internet tem tudo. Nem se diga que a web oferece redes de aprendizado colaborativo para os que estão carentes de cultura de alianças ou de bandas largas para levar adiante dados e filmes e gráficos e experimentos e simulações e bibliotecas e bibliotecas mundiais.
Afinal, retornando à questão do título: a quem interessa que a escola desapareça?
Como causas complexas são, mas algumas saltam à vista. Portanto, vou destacar uma que parece fundamental. A escola pública e democrática é, por exemplo, uma invenção republicana. Dados da criação da república. A saber, vem da ideia de que o conhecimento é uma coisa pública. Todos têm direito de aprender porque todo ser humano consegue aprender. Nem precisamos ir a Amós Comenius, nem a John Dewey, nem a Anísio Teixeira, mas vamos à nossa Constituição de 1988, ao seu capítulo III, art. 205, que diz:
“A educação, direito de todos e um dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
E em seu artigo 206 acrescenta que a educação se dá dentro dos seguintes princípios:
“igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
“liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber…”
“gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais…”
A lei continua: “com garantia do padrão de qualidade”,mas aqui paramos voltando ao raciocínio. A quem interessa, pois? A quem não quer a República, ou seja, que a coisa pública e o interesse de todos não são pauta da organização da sociedade.
Todavia, não acontece um programa sólido e operacional de educação sem a profunda clareza do que é o projeto de nação que se tem em mente. Sermos uma nação para quê? Como será seu coesão social, como se dar sua distribuição de bens e riquezas, como será sua cultura respeitada e livre? Como serão nossas relações com as demais nações? Como serão seus valores de vida social? A escola é o espaço da constituição dessa identidade e de sua crítica.
*Fernando José de Almeida é professor de pós-graduação em educação: currículo na PUC-SP e foi secretário municipal de Educação da cidade de São Paulo (2001-2002).