A terceirização, o STF e a chancela do comércio do humano pelo humano
Muito se diz sobre a terceirização de serviços já há algumas décadas no contexto do mercado de trabalho no Brasil, embora haja uma certa confusão na delimitação de seu conceito
Por Diego Petacci*
A terceirização parte da lógica produtiva ohnista/toyotista, que compartimentaliza a produção das empresas e busca sua descentralização, reduzindo estoques, custos e etapas produtivas. Como decorrência lógica desse conceito, as empresas tendem a destacar etapas menos relevantes de seu processo produtivo, transferindo-as para outras empresas, que passam a executá-las com seus próprios empregados. Assim, por exemplo, ao invés da fábrica automobilística produzir desde componentes eletrônicos até partes mecânicas, metálicas e de plástico, transfere para outras empresas a produção de componentes eletrônicos e plásticos dos painéis dos automóveis.
A doutrina há certo tempo vem realizando a distinção entre terceirização externa e terceirização interna. Embora os conceitos clássicos sejam de que a terceirização interna se desenvolve com empregados da empresa prestadora de serviços trabalhando na planta do tomador, e a externa com o serviço prestado fora de seus domínios, o conceito evoluiu para abarcar alterações decorrentes do estado da técnica. Hoje, mais adequado seria conceber a terceirização interna como aquela em que há certo controle do tomador sobre todas as etapas do processo produtivo, ao passo que na terceirização externa, teríamos apenas a apropriação pelo tomador de serviços do produto ou serviço finalizado. Ainda merece destaque a conclusão óbvia, mas nem sempre tão bem assimilada pelo operador do Direito, de que a empresa que produz e vende para múltiplos compradores não mantém com eles o liame estreito da terceirização, nem interna, nem externa, havendo apenas uma simples relação de compra e venda entre uma e outras. A terceirização pressupõe inexoravelmente a vinculação daquele trabalhador à produção de um único tomador de serviços, conquanto não seja seu empregador, e não a múltiplos clientes em um contexto normal de relações comerciais.
O caminho do tratamento legislativo e, principalmente, jurisprudencial sobre a terceirização, em solo brasileiro, é extremamente tortuoso, e passa necessariamente pela definição do que sejam “atividade-meio” e “atividade-fim”.
A atividade-fim nada mais seria do que o objeto social da empresa, a destinação a ela emprestada por seus atos constitutivos, o que ela “foi criada para fazer”. Por outro lado, atividade-meio seria toda atividade necessária para manutenção da empresa ou de suas atividades, que não necessariamente represente o núcleo de suas atribuições.
E qual a razão da importância dessa distinção, que vem sendo rechaçada pela jurisprudência moderna do STF? Um exemplo pode trazer luzes.
Imaginemos o banco Y. Como todo banco, ocupa-se preponderantemente do trato com numerário próprio ou de terceiros. Alguma dúvida, portanto, de que o caixa de tal banco trabalhe na atividade-fim deste? Parece-me que não. Mas e a limpeza do banco? Nenhuma dúvida de que seria desempenhada para manter o banco funcionando, mas não se confunde com o núcleo de suas atividades. Perfeito.
Agora, vamos supor que o banco terceirize ambas as atividades, caixa bancário e agente de limpeza.
No caso do agente de limpeza, do que ele precisa para trabalhar? Balde, pano, rodo, vassoura, esfregão, água sanitária, luvas, botas etc. Quem fornece esses apetrechos? A empresa que seja sua empregadora e tenha contrato com o banco para limpar a agência. Vamos chamar essa empresa prestadora de serviço de empresa ABC.
E no caso do caixa bancário, do que ele precisa para trabalhar? Terminal de computador, estação do caixa, senha e acesso aos sistemas que englobam as contas dos clientes, basicamente. Quem fornece esses elementos? O próprio banco Y, e não o empregador do caixa terceirizado, empresa essa que vamos chamar de XPTO.
Muito bem. Então podemos concluir que a empresa ABC fornece a mão-de-obra e os meios de produção necessários para o serviço. E a empresa XPTO, o que fornece? Apenas a mão-de-obra, apenas o caixa terceirizado.
Ora, então a empresa XPTO comercializa o trabalho humano? Exato. Dizer o contrário seria tentar dourar a pílula com uma desonestidade intelectual que não cabe neste espaço. E nesse ponto é de bom alvitre recordar que a Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT) declara que o trabalho não é uma mercadoria. Demais disso, não parece que esse “comércio do humano pelo humano” seja consentâneo com o princípio da dignidade da pessoa humana, positivado no artigo 1º, III, da CF. Guarde esse ponto, voltaremos a ele mais adiante.
No Brasil, a terceirização começou a ser disciplinada no âmbito da Administração Pública pelo Decreto-Lei 200/67, que determinava a descentralização da administração pública federal, abrindo espaço para o fenômeno da terceirização, que já se irradiava pela iniciativa privada entre os anos 50 e 60, embora de forma ainda incipiente. Posteriormente, destacam-se a Lei 6019/74, que trazia a figura do trabalhador temporário, e a Lei 7102/83 que admitiu a terceirização dos serviços de vigilância pessoal e patrimonial.
A jurisprudência finalmente esboçou sua primeira consolidação jurisprudencial sobre o tema na redação original da Súmula 256 do TST, de 1986, que admitia a terceirização apenas para vigilantes e temporários (leis mencionadas acima), declarando a ilegalidade de outros regimes de terceirização.
Sem procurar tecer um escorço jurisprudencial exaustivo, convém destacar que a profusão do fenômeno da terceirização e a ausência de uma regulamentação legal generalista levaram a jurisprudência a flexibilizar seu entendimento. Nesse sentido, a primeira redação da Súmula 331 do TST, de 1993, que já admitia outras formas de terceirização, desde que se tratasse de atividade-meio, sem pessoalidade e sem subordinação direta entre o trabalhador terceirizado e o tomador de serviços.
Essa súmula foi revista em outras oportunidades ao longo do tempo, acomodando a jurisprudência do STF sobre a responsabilidade do poder público terceirizante, questão, contudo, que refoge ao escopo deste artigo.
Eis que sobreveio a Lei 13.429, de 31/3/2017, trazendo a possibilidade de terceirização de “serviços específicos”, sem delimitação se seriam ligados à atividade-meio ou à atividade-fim (redação alterada do artigo 4º-A da Lei 6019/74). A doutrina, contudo, logo se apressou em dizer que essa referência a “serviços específicos” apenas exigia uma delimitação do objeto do contrato, sem autorizar a terceirização da atividade-fim.
Porém, o caminho para o “comércio do humano pelo humano” foi finalmente aberto com “o pé na porta” pela Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, que entrou em vigor em 11 de novembro daquele ano, alterando novamente a redação do artigo 4º-A da Lei 6019/74 para admitir a terceirização inclusive da “atividade principal”.
Em 30 de agosto de 2018, o STF finalmente se manifestou sobre o tema, fixando o Tema 725 da tabela de teses fixadas em repercussão geral, no RE 958252, nos seguintes termos: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante“. No referido acórdão, o STF assentou:
“14 — A terceirização apresenta os seguintes benefícios: 1) aprimoramento de tarefas pelo aprendizado especializado; 2) economias de escala e de escopo; 3) redução da complexidade organizacional; 4) redução de problemas de cálculo e atribuição, facilitando a provisão de incentivos mais fortes a empregados; 5) precificação mais precisa de custos e maior transparência; 6) estímulo à competição de fornecedores externos; 7) maior facilidade de adaptação a necessidades de modificações estruturais; 8) eliminação de problemas de possíveis excessos de produção; 9) maior eficiência pelo fim de subsídios cruzados entre departamentos com desempenhos diferentes; 10) redução dos custos iniciais de entrada no mercado, facilitando o surgimento de novos concorrentes; 11) superação de eventuais limitações de acesso a tecnologias ou matérias-primas; 12) menor alavancagem operacional, diminuindo a exposição da companhia a riscos e oscilações de balanço, pela redução de seus custos fixos; 13) maior flexibilidade para adaptação ao mercado; 14) não comprometimento de recursos que poderiam ser utilizados em setores estratégicos; 15) diminuição da possibilidade de falhas de um setor se comunicarem a outros; e 16) melhor adaptação a diferentes requerimentos de administração, know-how e estrutura, para setores e atividades distintas”.
Sem pretender debater cada um desses argumentos, proponho apenas os seguintes questionamentos: a) maior transparência no quê, se são incontáveis os exemplos de empresas terceirizadas sonegadoras de contribuições previdenciárias e depósitos de FGTS?; b) como a terceirização de atividade-fim facilita acesso a tecnologias e matérias-primas se neste caso a empresa terceirizada fornece exclusivamente a mão-de-obra?; e c) há outro custo reduzido que não o de mão-de-obra?
As duas primeiras perguntas são retóricas, já sabemos a resposta, o texto em itálico é dissociado da realidade, com o devido respeito. A última pergunta traz um questionamento desvelado recentemente pelo próprio STF.
No mês passado, no julgamento do RE 635546, foi fixada a seguinte tese, com repercussão geral: “A equiparação de remuneração de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratarem de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas”.
A decisão em testilha afastou a possibilidade de equiparação remuneratória entre empregado efetivo e terceirizado que desempenhem as mesmas atribuições, com amparo no artigo 12, “a”, da Lei 6019/74 (dispositivo idealizado apenas para os temporários).
Importante destacar o seguinte trecho do voto do ministro Luís Roberto Barroso: “Exigir que os valores de remuneração sejam os mesmos entre empregados da tomadora de serviço e empregados da contratada significa, por via transversa, retirar do agente econômico a opção pela terceirização para fins de redução de custos”.
Pronto, chegamos à resposta daquela minha última pergunta: sim, a terceirização serve para baratear custos de mão-de-obra.
Então, em resumo, consolidando a jurisprudência fixada pelo STF de 2018 a 2021 sobre o tema, e trazendo ainda a previsão legal vigente desde a lei da reforma trabalhista, podemos concluir: não só chancelamos, enquanto sistema, o comércio do humano pelo humano, mas também o comércio mais barato.
Fica a questão: para que, nesse cenário, serve o Direito do Trabalho? Como compatibilizar um ramo do Direito destinado a reequilibrar juridicamente o desequilíbrio material entre capital e trabalho se o nosso sistema jurídico hoje se volta para a coisificação e precificação barateada do trabalho humano?
Este articulista não tem respostas. Este texto não tem respostas. Apenas traduz a perplexidade do ponto em que nos encontramos enquanto sistema jurídico, completamente divorciados de um regime de dignificação do trabalho humano.
Para que possamos acordar enquanto é tempo, antes que não sejamos melhores do que os mercadores de escravos na era do imperialismo europeu.
Diego Petacci é juiz do Trabalho Substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, mestre em Direito do Trabalho, professor universitário e escritor.