Após um mês de conflito, destino de Gaza é o pior imaginável se não houver freio
Ana Prestes analisa os diferenciais de mais este conflito e seus rumos, assim como o papel moderador do Brasil e da ONU e a crise política interna que avança sobre Netanyahu
por Cezar Xavier
Este primeiro mês da atual insurgência do Hamas, que eclodiu em 7 de outubro em Israel, carrega algumas características peculiares em relação a conflitos anteriores. Para apontar as diferenças que tornam este conflito diferenciado, o Portal Vermelho consultou a cientista política Ana Prestes. Para ela, após mais de 70 anos de ocupação sobre territórios palestinos, há uma previsibilidade sobre como Israel vai conduzir o conflito, se não for freado por forças políticas maiores. Até o momento, manifestações por todo o mundo, debates nos organismos multilaterais e a pressão de governos vizinhos não têm surtido efeito.
Quando questionada sobre a perspectiva do conflito, ela enfatiza a tendência histórica de Israel avançar sobre o território palestino, resultando em uma possível limpeza étnica, a menos que haja uma mudança significativa na dinâmica internacional ou na sociedade israelense. Ela argumenta que, se não houver uma intervenção internacional, Israel continuará massacrando o povo palestino.
O destino de Gaza hoje é o pior imaginável, de acordo om suas palavras, com ainda mais mortes, esvaziamento do território, adensamento do sul pelos refugiados. Israel vai tentar expulsar o máximo de pessoas que conseguir.
“Será uma espécie de nova Nakba. Já está sendo. Infelizmente esta é a perspectiva se não houver um movimento internacional conjugado com um movimento interno na sociedade israelense que possa abrir outra perspectiva”, lamentou, citando a palavra árabe para “catástrofe”, que designa o êxodo palestino de 1948, quando pelo menos 711.000 palestinos foram expulsos de seus lares.
A socióloga ressalta que Israel não tem qualquer preocupação com sua imagem de pária internacional, que se deteriora ainda mais com este conflito. “Eles usam seu isolamento para se vitimar mais e atar com mais força as alianças fundamentais que os sustentam, com foco para os EUA. Eles podem se transformar em um país pária na cena internacional, mas continuarão massacrando e exterminando o povo palestino até que uma força maior que eles seja capaz de fazê-los parar”.
Falha na Inteligência
A analista internacional aponta que a surpreendente natureza do ataque palestino e o número significativo de mortes civis em Israel são diferenciais marcantes nesta insurgência em comparação com eventos passados.
“A grande diferença foi a forma como surpreendeu as autoridades israelenses, ou ao menos parece ter surpreendido, e o número de mortes que provocou em Israel, com grande quantidade de civis vitimados, além da grande quantidade de prisioneiros capturados”, apontou ela.
Uma das principais distinções neste conflito é a resposta do governo de Benjamin Netanyahu, cobrado pela população nacional que foi caracterizado pela tentativa de explicar as falhas, enquanto respondeu com brutalidade sobre a população civil de Gaza.
“O comportamento do governo israelense foi caracterizado por duas vertentes complementares, por um lado na tentativa de dar explicações à sua própria população sobre a falência de seu sistema de inteligência e segurança que não previu e portanto não mitigou os efeitos da ação. Por outro lado, em dar respostas com ataques absolutamente desproporcionais sobre o conjunto da população palestina, com maior força sobre Gaza”, apontou a especialista.
Ana pondera também que a percepção global inicial condenou as ações do grupo armado por causar medo e pânico na população civil israelense, mas à medida que o conflito continuou, houve uma crescente condenação internacional do genocídio perpetrado por Israel contra o povo palestino.
“Hoje, um mês após o 7 de outubro, estamos nesse momento de uma generalizada percepção de que é humanamente inaceitável o que está acontecendo em Gaza. De que é preciso colocar fim aos ataques em Gaza”, disse ela.
O Brasil na arena da paz
O conflito eclodiu justamente no mês em que o Brasil assumiu a Presidência do Conselho de Segurança da ONU. Sobre a atuação do Brasil, Ana destaca os esforços do governo Lula por mediar respostas para pacificação do conflito, procurando garantir uma neutralidade com ênfase no respeito ao direito internacional.
“O governo Lula tem atuado incansavelmente através dos organismos multilaterais e canais diplomáticos, mas mantém uma relação de equilíbrio com os diversos atores envolvidos no conflito”, avaliou. No entanto, o Brasil enfrenta o desafio de repatriar mais de 30 brasileiros retidos em Gaza, enquanto outras nacionalidades já foram liberadas, o que tem sido um constrangimento diplomático na relação com Israel.
Ana também comenta sobre a ineficácia dos organismos multilaterais, indicando que a ONU está desacreditada e pode se tornar cada vez menos relevante para a preservação da paz mundial, se não houver uma reinvenção significativa.
“Restarão as atividades de coordenação em frentes específicas, como saúde, alimentos, infância, refugiados e outros colaterais aos grandes desequilíbrios humanitários, mas sem que consigam atuar no coração das decisões e ações que geram esses desequilíbrios e tragédias, como a que ocorre hoje na Palestina”, resume.
Ela ressalta a necessidade de uma reformulação, especialmente do Conselho de Segurança da ONU, que está preso a um sistema de vetos que privilegia algumas nações em detrimento de outras.
Ana observa que esta paralisia tem sido bastante denunciada pelo presidente Lula ao longo de sua história política e mais recentemente ao vencer as eleições de 2022. “Ao longo dos últimos meses, antes da escalada do genocídio israelense sobre o povo palestino, Lula vinha alertando sobre a falência do Conselho de Segurança da ONU, dadas as mudanças para um mundo que já não é mais aquele do fim da segunda guerra mundial e a manutenção de um sistema de vetos que privilegia algumas nações em detrimento de outras no processo decisório”.
Sobre o resgate dos brasileiros em Gaza, a especialista expressa a possibilidade de retaliação ou, no mínimo, negligência por parte de Israel, dada a rapidez com que outros países conseguiram repatriar seus cidadãos. Aliás, foi justamente a atuação do Brasil na presidência do Conselho de Segurança da ONU que desagradou o governo israelense, já que o Brasil não incluiu o “direito de defesa” de Israel em uma proposta de resolução, embora este seja um princípio óbvio desnecessário de ser reafirmado.
Além disso, o Brasil sempre ressaltou sua amizade com o povo palestino e sua causa. No entanto, ela acredita que o Brasil, seguindo sua tradição diplomática, não irá romper ou impor sanções a Israel.
Netanyahu e a crise política
Quanto à possibilidade de uma mudança significativa no governo de Israel após o conflito, Prestes considera que, embora haja crescentes protestos contra Netanyahu e frustração com sua gestão, mudanças profundas podem ser difíceis no momento.
Netanyahu parecia ter recuperado algum fôlego após a crise da reforma judiciária, feita para beneficiá-lo, mas agora cresce a oposição popular a Netanyahu e os pedidos de renúncia por não estar protegendo a população israelense, os reféns e ter falhado em evitar o ataque.
No entanto, as contradições internas no governo israelense, juntamente com a crescente insatisfação da sociedade, podem eventualmente levar a transformações na composição de forças no parlamento israelense.
O premiê nega que o governo tivesse informações sobre o que estaria para ocorrer em 7 de outubro, mas as próprias autoridades de segurança israelenses admitem que houve falhas, o que deixa o governo com importantes contradições internas.
Os fatos conspiram contra Netanyahu, conforme o líder da oposição, Yair Lapid, fez um discurso em 24 de setembro em alusão ao 50o aniversário (6 de outubro) da guerra do Yom Kippur e alertou para a iminência de um “confronto violento”.
Ana relata que Lapid acusou o governo de Netanyahu de não prevenir uma possível “onda de terror”, segundo ele, prevista pelas forças de segurança de Israel para a época do aniversário. “O governo Netanyahu não estaria, portanto, em coordenação com seus próprios subordinados”.
Ela ainda exemplifica o nível de insatisfação da população com os reservistas abandonando seus serviços para se juntar aos protestos de janeiro a julho contra a reforma judicial. O tema continua em debate, após ter sido aprovado e estar em análise pela própria Suprema Corte.
“Aos poucos essas contradições vão voltar para cima da mesa e pode haver mudanças na composição de forças no Knesset, parlamento israelense, a partir do qual se originam os governos com a formação de maioria parlamentar”, conclui ela.