As 101 Propostas da CNI – Muita Hipocrisia

 CLT e carteiraNo 7° Encontro Nacional da Indústria, em dezembro do ano passado, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) apresentou um documento com 101 propostas para, segundo ela, “modernizar” as relações de trabalho no Brasil. O empresariado, de forma sistemática, tem pautando o governo e, portanto, os trabalhadores precisam ficar atentos. O artigo abaixo, do consultor jurídico da Contee, José Geraldo de Santana Oliveira, mostra como as propostas da CNI representam, na verdade, um ataque à Constituição, à CLT e aos direitos trabalhistas.

O francês Françoise La Rochefocouald, do século XVII, dizia que a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.

A vida moderna cuidou de confirmar essa velha máxima, sobretudo nas relações de trabalho capitalistas. Os capitalistas, na exploração dos trabalhadores, quando é possível, usam da violência, privada e estatal, para defendê-la. A história das sociedades é rica em fatos dessa natureza.

O Brasil não foge à regra. Basta que se diga que o presidente Washington Luís dizia que a questão social é uma questão de polícia. Assim, à base da aplicação da força, foram tratadas as relações de trabalho, com brevíssimos intervalos, até a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil (CR), em 1988.

Quando se esgota a capacidade de uso do argumento da força, entra a hipocrisia, que seria a força do argumento marcado pela falácia e por objetivos diametralmente opostos aos que são divulgados.

Desde o advento da CR, não se tem notícia de um só projeto de lei, de iniciativa dos empresários ou por eles apoiados, que não vise à supressão de direitos fundamentais, tendo como fim último a crescente e, ao que parece, infinita precarização das relações de trabalho.

A última pérola dos empresários são as 101 propostas de mudanças na legislação trabalhista, apresentadas pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), em dezembro de 2012, à presidente Dilma e ao Congresso Nacional.

Segundo a CNI, esta legislação contém, pelo menos, 101 irracionalidades que devam ser corrigidas, por meio das mudanças por ela apontadas nas referidas 101 propostas, que, afirma, modernizarão as relações de trabalho no Brasil.

No entanto, quem se der ao trabalho de analisar tais propostas e, principalmente, compará-las com os direitos sociais, assegurados pela CR, com os tratados internacionais, dos quais o Brasil é parte, e com mais recente jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), a não ser por má fé, forçosamente concluirá que primam pela hipocrisia, pois, para a CNI, modernização das relações de trabalho é sinônimo de supressão de direitos.

Os argumentos expendidos no comentado documento são todos falaciosos, desprovidos de razoabilidade e eivados de más intenções.

No afã de induzir os trabalhadores e as suas entidades a erros, inverte a ordem do Estado democrático de direito, de modo a transformar as cláusulas pétreas da CR, de cunho social, em mero apêndice das relações de trabalho.

A primeira proposta, segundo a sua autora, tem por finalidade a valorização e o fortalecimento da negociação coletiva, com prevalência do que for negociado sobre o legislado.

Essa proposta, que é o carro chefe das demais, de aparência singela, parafraseando o poeta alemão Bertolt Brecht, pretende rasgar o capítulo dos direitos fundamentais sociais da CR, que vai do Art. 6º ao 11.

Não restam dúvidas de que toda entidade sindical tem na valorização e no fortalecimento da negociação coletiva uma de suas metas a ser alcançada. Porém, com a ressalva de que esta negociação represente mais do que o mínimo constitucionalmente assegurado, e não a sua redução, como quer a CNI.

A negociação coletiva já é reconhecida pela CR, em seu Art. 7º, inciso XXVI, mas para acrescer direitos aos mínimos protetivos, e jamais para reduzi-los e suprimi-los, como almeja a CNI. Para a CR, os direitos nela preconizados representam o piso, ficando o teto a ser negociado. Para a CNI, a ordem deve ser invertida, ou seja, esses direitos devem passar a representar o teto, passível de desabamento, por meio de negociação coletiva.

Em uma palavra, pode-se dizer que, para a CNI, negociação coletiva somente se reveste de uma finalidade: flexibilizar direito. Haja hipocrisia.

A negociação coletiva e a proteção dos direitos negociados, por meio de acordos e convenções coletivas, ganharam substancial força com a mudança na jurisprudência do TST, que culminou com a nova redação de sua Súmula 277, para garantir a ultratividade das normas, que se constitui no segundo alvo da CNI, que defende, com ênfase, a sua revogação.

Há de se ressaltar que a CNI não se contenta com a indecorosa proposta de espezinhamento da legislação protetiva do trabalho, hipocritamente chamado de fortalecimento da negociação coletiva.  Ela pretende também a anulação de todas as súmulas do TST que tenham esse caráter, bem como o aniquilamento de sua jurisprudência, que ficaria impedida de se firmar em benefício da valorização e do primado do trabalho, sendo-lhe permitido, apenas, assentar as bases para o lucro fácil e máximo: sem limite e sem amarras.

Importa dizer: essa deve ser a “função social” das empresas, cabendo à legislação e ao Poder Judiciário criar os meios e o modo de garanti-la. Ou, em outras palavras, a sociedade tem de servir às empresas e não o contrário, como determinam os Arts. 1º, inciso IV, 170, caput e inciso III, e 193, da CR.

Um passeio pelas 101 propostas da CNI permite ao passeante atento constatar que todo o Art. 7º da CR, todos os Arts. da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que lhe dão suporte, e as principais súmulas do TST, que, nitidamente, possuem relevância social, são alvos de ataque cerrado da CNI: para ela, a guerra contra eles e elas tem de ser sem fronteiras e sem tréguas.

Por isso, um possível êxito da CNI, na sua cruzada para a supressão de direitos, deixaria a ditadura militar envergonhada, pois nem mesmo ela ousou tanto em matéria de supressão de direitos e de construção de relações de trabalho baseada na lei do mais forte.

O sociólogo português Boaventura Souza Santos, em artigo publicado pelo jornal “Folha de S.Paulo”, edição de 30 de janeiro último, com o título “A democracia ante o abismo”, afirma que Portugal caminha a passos largos para ser politicamente democrático e socialmente fascista.

Essas sábias palavras poderão ser emprestadas ao Brasil, caso as propostas da CNI venham a prosperar

Além do Art. 7º, da CR, são mirados pela CNI, com a pretensão de vê-los abatidos: o Art. 4º, da CLT, Parágrafo único, que garante o FGTS ao trabalhador afastado, para cumprimento de serviço militar; o 58, da CLT, que diz respeito à duração do trabalho, ao excesso de jornada permitido, sem remuneração (dez minutos diários) e às horas in itinere; o 59, § 2º, da CLT, que versa sobre a compensação de horas; o 67, da CLT, que regulamenta o repouso semanal remunerado; o 68, da CLT, que condiciona o trabalho aos domingos à autorização legal; o 70, da CLT, que veda o trabalho em feriados; o 71,§ 3º, da CLT, que trata do intervalo intrajornada; o 73, da CLT, que regulamenta o trabalho noturno, inclusive a duração da hora, que é de 52 minutos e 30 segundos; o 193, da CLT, que trata de periculosidade; o 244, da CLT, que regula o regime de sobreaviso; o 253, da CLT, que regulamenta o trabalho em câmara fria; o 384, da CLT, que impõe o descanso de 15 minutos, em caso de prorrogação de jornada; o 443, da CLT, que proíbe o contrato de trabalho, por prazo determinado, para a atividade fim; o 444, da CLT, que declara nulos os atos que fraudarem a lei; o 445, da CLT, que limita o contrato por prazo determinado, legal, a dois anos; o 484, da CLT, que versa sobre rescisão por culpa recíproca; o 627, da CLT, que diz respeito à dupla vista no processo de fiscalização.

São também alvos a serem abatidos: o Art. 6º, da Lei N. 605, que versa sobre faltas justificadas; o 7º, da Lei N. 605/49, que regula o repouso semanal remunerado; o 28, da Lei N. 8.212/91, que versa sobre a contribuição previdenciária patronal; o 9º, da Lei N. 7.284/85, que assegura um salário ao trabalhador demitido no período de 30 dias que antecedem à data-base; o 9º, do Decreto N. 3.048/99, que determina a incidência de contribuição previdenciária sobre aviso prévio indenizado; o 60, § 3º, da Lei N. 8.213/91, que dispõe sobre o pagamento dos 15 primeiros dias de afastamento do segurado, para tratamento médico.

São, ainda, alvos: dispositivos da Lei N. 7.347/1985, que versa sobre penalidade administrativa, no âmbito do Ministério do Trabalho; a Lei N. 7.418/85, que regula o vale-transporte; a Lei N. 8.078/90, no mesmo sentido da N. 7.347/85; a Lei N. 8.212/91, que regulamenta o custeio da Previdência Social; a Lei N. 8.213/91, que diz respeito aos benefícios da Previdência Social; a Lei N. 8.742/93, que versa sobre o benefício da prestação continuada; a Lei N. 10.101/2000, que trata da participação nos lucros das empresas; a Lei N. 10.593/2002, que estabelece as competências do auditor fiscal; o Decreto N. 3048/99, que regulamenta a Lei N. 8.213/91.

Quanto às súmulas, são alvos da CNI: a 60, que assegura a integração aos salários do adicional noturno, pago com habitualidade; a 85, que exige autorização de convenção ou acordo coletivo, para a compensação de horas; a 244, que trata da estabilidade à gestante, mesmo que o seu contrato seja temporário; a 277, que garante a ultratividade das normas coletivas; a 378, que dispõe sobre a estabilidade do trabalhador acidentado, ainda que sob contrato por prazo determinado; a 429, que regulamenta o tempo à disposição do empregador; a 437, que diz sobre o intervalo intrajornada; a Orientação Jurisprudencial (OJ) 173, inciso II, que estabelece restrições para o trabalho a céu aberto.

A desfaçatez da CNI chega ao extremo de, na proposta N. 76, advogar a tese de que as revisões de jurisprudências do TST não alcancem as situações pretéritas, pendentes de julgamento, mas apenas as que vierem a se concretizar após a sua aprovação. Ou seja, o que já aconteceu fica no buraco preto, sem passivo algum para as empresas. Sem dúvida, um negócio altamente lucrativo. Isto é que hipocrisia.

O inesquecível presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado federal Ulisses Guimarães, ao promulgar a CR de 1988, aos 5 de outubro daquele ano, disse que a nova Constituição não ficaria como obra inacabada e profanada, pois tinha cheiro de amanhã e não de mofo.

Pois bem. A CNI quer profanar a CR e transformá-la em peça de museu. Parafraseando o referido deputado, pode-se dizer que as propostas dessa confederação patronal têm cheiro de ontem e, portanto, de mofo, senão de putrefação.

À luta contra elas, em defesa da CR.

Goiânia, fevereiro de 2013.

José Geraldo de Santana Oliveira

OAB-GO 14.090

Consultor jurídico da Contee, da Fitrae-BC, da Fitrae- MT/MS, do Sinpro Goiás, do Sintrae-MS, do Sintrae-MT e do Sinpro PE.

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