As más intenções de transformar o trabalho remoto em modalidade EaD na educação básica
Por Adércia Bezerra Hostin dos Santos*
Na velocidade que se deram os fatos desde o alerta da Organização Mundial da Saúde (OMS), com o início da pandemia do Covid-19 em nível mundial, houve uma reviravolta não só econômica, mas sobretudo social. No Brasil, não foi diferente quanto ao impacto do que a pandemia tem causado quanto a estresse e mudanças de hábitos, principalmente quando, a cada dia, somos submetidos a decretos, medidas provisórias que flexibilizam relações de trabalho e uma enxurrada de informações.
Na educação não foi diferente. A questão é que, em meio ao turbilhão, muitos professores ainda não se deram conta das consequências dessa prova de fogo: fazer com que o trabalho remoto seja aceito a qualquer preço.
No escopo dessa discussão está o que significa o trabalho remoto. No contexto atual, ele é uma ferramenta de apoio pedagógico que, por intermédio do professor, através de plataformas digitais e outros instrumentos disponibilizados pelas instituições de ensino, permite que o aluno acompanhe e realize atividades de acordo com as disciplinas da sua série, uma medida paliativa para o ensino-aprendizagem neste momento de excepcionalidade.
Entretanto, o que em um primeiro momento parece um avanço na educação, abre brecha para se tornar uma modalidade EaD, reconhecida ao moldes de como acontece no ensino superior, com grande parte dos professores sendo substituídos por tutores, e tendo sua carga horária falsamente subtraída — e, consequentemente, sua remuneração, embora o trabalho on-line demande ainda mais tempo de preparação —, entre outras questões da ordem pedagógica que podem ser consideradas.
É preciso levar em consideração que essa modalidade de ensino teve início como uma alternativa para lugares onde o acesso à educação era impossibilitado através dos meios tradicionais, como no campo e em áreas ribeirinhas. A ampliação da demanda, contudo, faz com que o ensino a distância nem sempre seja ofertado com a devida preocupação em relação à qualidade. No ensino superior, por exemplo, isso deixa muito a desejar no quesito principal, que é a garantia de excelência através do tripé do ensino x pesquisa x extensão. Já no caso da educação básica, independentemente de acontecer no setor privado ou na rede pública, isso trará consequências estruturais, com o desmonte da docência, da inclusão e da educação como política social.
Um dos efeitos será, em pouco tempo, o escoamento de dinheiro público para a inciativa privada e um abismo social e meritocrático a ser enfrentado. Isso pode vir por parte de emendas à PEC do Novo Fundeb, que, caso sejam aprovadas, podem retirar o dispositivo regulador e permitir o uso do dinheiro público para financiar o ensino através de instituições com ou sem fins lucrativos. Tal emenda, proposta pelo deputado Tiago Mitraud (Novo-MG), casa-se com os interesses mercantis da compra de programas e plataformas digitais de grandes empresários, como já se apresentam a Fundação Lemann e a Imaginable Future; empresários que olham a educação pelo ponto de vista da especulação financeira e do lucro, na lógica do mercado.
Uma das propostas da Fundação Lemann para a rede pública consiste em viabilizar a educação a distância a partir do uso de celulares e em parceria com as operadoras de banda larga e serviços móveis. Lemann incentiva o uso da plataforma Khan Academy, que é financiada pela fundação. A articulação é feita também com outras organizações, como o Instituto Natura, a Fundação Itaú Social, a Fundação Roberto Marinho e o Instituto Unibanco. O que está em xeque nessa grande estratégia privatista para a educação pública é a entrada das grandes empresas num mercado que corresponde a 80% de matrículas da educação básica, que hoje se configuram na rede pública de ensino, com mais de 45 milhões de estudantes e cerca de 5 milhões de professores. Usando exatamente a mesma lógica do mercado, que se apropriou hoje de aproximadamente 80% do ensino superior do país, grandes grupos econômicos, como o caso da Kroton/Anhanguera (atual Cogna), já se preparam para entrar de forma competitiva no mercado de EaD para educação básica.
O que isso significa? Baixo custo para instituições de ensino privadas, que podem gerir com menos investimentos a contratação de professores para ministrar as aulas on-line e substituí-los pelo famosos “tutores”, como já ocorre na EaD no ensino superior. Na rede pública, a oferta deve passar pelos mesmos moldes, diminuindo a necessidade inclusive da contratação via concurso público. Você já se deu conta de que uma aula programada poderia atender toda uma rede de ensino, ministrada por apenas um professor? Você já pensou, professor/a, que o real motivo de as entidades educacionais e sindicatos estarem alertando para o que está sendo colocado neste momento de excepcionalidade é o retrato de uma política educacional privatista para o próximo período?
Romantizar o trabalho remoto ou a EaD para a educação básica não é o caminho!
Por anos a fio as professoras da educação básica — com ênfase principalmente na educação infantil e no ensino fundamental I — carregaram o estigma da “tia”, no sentido maternal da palavra. Foi necessária uma longa discussão no âmbito da academia, dos pensadores e dos trabalhadores da educação para considerar que o ato pedagógico era antagônico às obrigações familiares. Houve de se reforçar que a escola não era a extensão da casa e que as distinções objetivas nos davam a chancela para ter uma relação de autonomia e de construção crítica do fazer e do ato pedagógico, alicerçado por um pensamento emancipador e libertário a ser promovido junto ao educando.
Nessa caminhada, é imprescindível destacar que as professoras da educação infantil e do ensino fundamental I, sempre com seus materiais ultracoloridos, EVAs, canetinhas, carimbos, moldes, trilhas sonoras próprias, foram relativamente complacentes com todas as demandas impostas, desde as imensuráveis festinhas — das noites de pijama às festas juninas; das comemorações para os dias das mães e dos pais até o encerramento do ano letivo — até a confecção de painéis, cartões de Páscoa, Natal, dia do estudante, volta às aulas, término das aulas, sempre munidas de uma disposição e criatividade aguçadas pela demanda.
Para além do material concreto do que era estabelecido no cotidiano, agora o que está colocado é: como dominar as redes sociais, as relações virtuais, os espaços pedagógicos, etc.? Não há o que se questionar quanto à importância, aos significados e às contribuições das tecnologias em termos de avanços para o conhecimento e o trabalho docente. O que se destaca nesse sentido é a maneira como essas relações culturais se impõem como obrigações. De uma hora para outra, as mesmas professoras desse segmento também terão de dar conta de mais essa supertarefa, sem pestanejar, cumprindo, às vezes de forma inconsciente, o papel da “supertia”, em nome do zelo que tem pelos alunos, sem perceber que esse comportamento acrítico diante dos fatos terá um peso no futuro.
No depoimento emocionado da professora da educação básica R.C.S., apoiada pelo marido também professor LC.S., a realidade da educação pública e de certa forma de uma parcela da educação privada é relatada.
“Ainda não sei editar vídeos, vou aprender. Então o que tenho feito tem a ver com sobrevivência, uma necessidade. Mostrar que temos sim que ficar em casa e não temos que levar nossos filhos à escola — também tenho um menino que está no 3º ano — , para que não arrisquemos as nossas vidas e a das demais pessoas. (…) Aqui em casa, está assim. Meu marido também é professor, de Matemática, e está na correria. Nosso menino é aluno e também estamos acompanhando para que consiga fazer todas as atividades. Nossa internet é ruim. Para baixar nossos vídeos na plataforma ou YouTube, são horas. (…) fico imaginado como está sendo para outras famílias, (…), com pais que às vezes não são nem alfabetizados. (…) Alguns alunos conseguem fazer tudo apenas à noite, porque têm que usar o celular do pai ou da mãe que trabalham. E, no celular, é ruim. (…) As aulas que tenho gravado são a partir das 21h da noite, quando meu filho já está mais quietinho, dormindo, ou assistindo a algum desenho. E tenho que montar a parafernalha na sala, com celular que não foca direito, em cima de caixas, em cima de cadeira, com filho às vezes entrando no banheiro sem fechar a porta, e tendo que começar tudo de novo, por aparecer o barulho do xixi na filmagem e, depois, o da descarga.”
Não obstante, casos como o relatado são rotineiros. Estamos aqui falando de um casal de professores e uma criança na residência. Nem todos tem apartamentos amplos, muitas crianças tem sido inclusive sendo privadas do sol. E quanto as mães que ainda precisam sair para trabalhar por conta da flexibilização do comércio, com filhos em idade escolar, e que não têm com quem deixá-los e nem acesso aos meios tecnológicos? Crianças não têm autonomia para ficar sozinhas e os jovens, muitas vezes, não têm acesso adequado às tecnologias para acompanhar as aulas. Tenho inclusive visto professores, no ato de tentar entender essa demanda, encaminhar várias atividades para serem impressas. Imprimir? Onde? Com quais recursos?
Se há desigualdade entre as famílias, há também entre as escolas. E aqui é necessário ressaltar a importância da universalização e a equiparação do acesso à educação como bem público, sem distinção, seja para rede pública ou para o setor privado.
De qualquer forma, sabemos que no ensino médio, muitos professores já se aventuravam por esses lados. Afinal, precisavam ser vistos, apreciados, disputados, poucos se preocupando com o efeito rebote que poderia vir. Não estar em harmonia com a “era digital” era ser enquadrado como fora dos padrões. Muitos jamais questionaram que esses atos de ousadia serviram para avaliações punitivas, demissões, olhar unilateral fora do contexto em que as atividades estavam sendo estabelecidas. Em tempos de “likerização”, alguns se desdobraram para serem disputados, com as intervenções dos alunos, através das mídias. Nessa realidade, olhares mais críticos podem observar que tudo o que é descontextualizado perde seu sentido. Às vezes essas estratégias digitais cumprem um papel de fomento à informação; em outras tantas, podem causar danos severos à imagem do professor.
O que precisa ficar claro é que romantizar esse processo atual com empenho hercúleo, sem um olhar crítico sobre o que está sendo proposto, nos levará a desigualdades sociais sérias, que não podem ser, como estão sendo, secundarizadas. Os professores chegam a se questionar como se dará a inclusão dos alunos com necessidades especiais, déficit de atenção e questões afins? Como será enfrentado esse processo pelos alunos da rede pública de ensino? Todos os professores possuem condições para exercer essas práticas tecnológicas? Como se dará a educação do campo e a educação indígena, levando em conta a diversidade de perfis?
Tenho percebido pessoas que dominam melhor esses novos instrumentos às vezes irritadas com as que apresentam alguma angústia. Não se é capaz de prever se todos, ao final, estarão hábeis no uso das ferramentais digitais e, infelizmente, as relações se descortinam nessas horas. Se no setor privado pode existir uma espécie de disputa por quem mais pode passar uma imagem de bom professor e provar que dá conta — algumas vezes em um processo individualizado e se contrapondo à essência das relações, inclusive com alunos e colegas de trabalho que podem não disponibilizar do acesso a essas ferramentas —, a conscientização fica muito mais árdua no sentido de fazer compreender como isso está acontecendo na rede pública, na qual o mercado empresarial também disputará espaço e poderá prevalecer sobre as concepções pedagógicas das escolas e por vezes não respeitando as especificidades da comunidade escolar.
Em seu depoimento citado há pouco, a professora R.C.S. conclui ressaltando a importância do ambiente escolar como espaço de socialização, de aprendizado e respeito à diversidade, de mediação e de reflexão. E que não é honesto, portanto, usar a necessidade peculiar imposta por um momento de crise para invalidar o papel da escola e desvalorizar a importância fundamental do professor numa sala de aula. Pelo contrário. No atual contexto, a proposição do professor e cientista político Daniel Cara se torna a cada dia mais necessária: “antes mesmo de o isolamento acabar, é necessário acordar um Pacto Nacional pelo Direito a Educação, baseado em um esforço de todos e todas pelo ensino-aprendizado no país, pois a educação só se realiza na relação entre educadores e educandos”.
*Adércia Bezerra Hostin dos Santos é pedagoga, mestranda do curso de Sociologia e Ciências Políticas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), presidente do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região /SC (Sinpro), Coordenadora da secretaria de Assuntos Educacionais da (Contee) e membro da diretoria do Fórum Nacional de Educação (FNPE). Autora da Coluna “Para onde caminha a educação” aqui no Tribuna Universitária.