Ato de defesa de Bolsonaro, em São Paulo, resvala para a confissão de culpa
Os milhares que compareceram à Av Paulista ouviram argumentos distorcidos e sermões religiosos em defesa do presidente que se posicionou como réu confesso, pedindo misericórdia.
por Cezar Xavier
Nesse domingo (25), durante o ato na Avenida Paulista, o ex-presidente Jair Bolsonaro fez um discurso acuado, reconhecendo a existência da minuta do golpe, mas negando ter a intenção de promover um golpe. Em meio a ataques ao PT, ao governo Lula e defesa de terroristas condenados em 8 de janeiro, Bolsonaro pediu uma lei de anistia para os criminosos e declarou que a minuta do golpe não passava de uma declaração de estado de sítio após as eleições, rejeitando a ideia de que representaria uma ameaça à democracia.
“O que busco é a pacificação, é passar uma borracha no passado. É buscar maneira de viver em paz, não continuarmos sobressaltados”, disse Bolsonaro. A partir desse argumento, ele também apontou para a multidão de mobilizados no domingo, considerando que as penas para golpistas não são razoáveis: “É por parte do parlamento brasileiro uma anistia para os pobres coitados que estão presos em Brasília”.
O ato se mostrou mais do mesmo que se esperava de uma reunião de políticos que argumentam em cima de falsificações dos atos e desinformação. Mas a presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, qualificou a tarde de discursos confusos e ocos como mais uma prova para as investigações. “Pedir anistia é confissão de culpa. Bolsonaro é réu confesso. É o que faltava depois de tantas provas”, afirmou no X. Ela ainda desmascara que o pedido de anistia para os condenados não passa de defesa em seu próprio interesse. “Bolsonaro está mirando sua própria impunidade. É incapaz de defender interesses que não sejam os dele”.
Como disse a líder petista, no entanto, o discurso amaciado é incapaz de esconder “o prontuário antidemocrático, ditatorial e fascista de Jair Bolsonaro. Continua sendo e sempre será uma ameaça à democracia, ao estado de direito e à paz”. Para ela, o réu disse no palco o que silenciou para a Polícia Federal, já que em meio a seus asseclas sua versão fabulosa sobre o decreto de golpe não seria confrontada “com as provas da conspiração, que previa tropas na rua e prisão de ministros e adversários”.
O evento, no entanto, revelou mais pelo que não disse do que pelas palavras proferidas. A ausência de ataques às instituições, nenhuma disseminação de fake news recorrentes, nem de defesa da ditadura militar, foram notáveis. Embora não tenha citado os tribunais, disse que não se pode admitir que um poder tire pessoas do jogo das eleições, ao fazer referência à própria inelegibilidade.
“Nós não podemos concordar que um Poder tire do palco político quem quer que seja, a não ser por um motivo extremamente justo. Não podemos pensar [em] ganhar as eleições afastando os opositores do cenário político.”
Sua justificativa sobre a intenção de perpetrar um golpe revelou sua percepção da minuta e como ele nega qualquer atentado contra a democracia, enquanto pede anistia para os presos de 8 de janeiro. Isso sugere que Bolsonaro está ciente de sua situação vulnerável e possibilidade de prisão iminente.
Para o ex-presidente, o fato de não haver tanques na rua seria a prova de que não houve tentativa de golpe. Ocorre que as investigações apuraram que houve consulta sobre apoio aos chefes das Forças Armadas e envolvimento de grandes empresários. No discurso, mencionou que precisaria de apoio político e de empresários, o que negou que teria feito. Mas evitou entrar no mérito das inúmeras acusações que pesam contra ele, como a Abin paralela.
Cara do bolsonarismo
No entanto, a presença de apoiadores na Avenida Paulista demonstra que o bolsonarismo continua representando uma força significativa no país, mesmo após a derrota nas eleições de 2022. Esta manifestação, com sua mistura de religião e fanatismo, reforça a narrativa persecutória do bolsonarismo. Foi capaz de sugerir que a investigação sobre jóias roubadas do acervo do Palácio não passam de perseguição política.
O ato procurou terceirizar os ataques mais contundentes a autoridades atuais, enquanto preservava a fisionomia condoída de Bolsonaro. Um dos discursos mais lembrados por esse simbolismo foi o do pastor Silas Malafaia, com críticas a Alexandre de Moraes. O religioso “manifestou repúdio” ao presidente Lula e reclamou que há uma “engenharia do mal” para prender Bolsonaro. Em seu personagem desinformativo mais conhecido, ele inverteu os sinais ao sugerir que Lula sabia de antemão do 8 de Janeiro. Esqueceu que Bolsonaro viajou ao exterior, enquanto seu círculo executava o golpe na Praça dos Três Poderes, para citar a viagem do presidente para Araraquara (SP), ocorrida naquele dia. Com essas suposições estranhas, o religioso procurou encobrir a dimensão dos crimes cometidos naquele dia.
Do ponto de vista político, os governadores Tarcísio de Freitas (SP), Romeu Zema (MG) e Ronaldo Caiado (GO) buscam herdar o espólio do bolsonarismo e reconhecem a importância do apoio de Bolsonaro para suas futuras candidaturas. Essa aliança é evidente, especialmente considerando o apoio de setores evangélicos presentes no evento. A conexão entre Bolsonaro e os evangélicos foi ressaltada pelos discursos religiosos de líderes e apoiadores.
Além disso, a manifestação evidenciou a estratégia de contra-ataque preparada pelo bolsonarismo caso Bolsonaro seja preso. A narrativa de que ele é um perseguido escolhido por Deus, por defender valores como a pátria, a família e a vida, será explorada para desacreditar qualquer processo judicial contra ele. Esta estratégia, combinada com a retórica de luta contra o sistema e os valores conservadores, visa manter o apoio popular e a coesão do movimento.
A face mais evidente do fanatismo religioso foi personificada em Michelle Bolsonaro, que abriu a manifestação em tom de sermão messiânico na igreja. Buscou apresentar o marido como um escolhido dos céus. Deu o tom para os discursos de parlamentares, como o senador Magno Malta (PL-ES), que segurava a bandeira de Israel enquanto discursava.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), preferiu um tom político de campanha eleitoral. Desceu do carro com Bolsonaro ao som do jingle da campanha presidencial derrotada. Destacou as supostas qualidades de Bolsonaro no governo, mencionando seu legado na defesa de valores como a liberdade.
O deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) resumiu o que viu numa reação nas redes sociais: “Não me importa se flopou ou não flopou, o que tenho certeza é o seguinte: amanhã, a vida continua. Investigação, prova, indiciamento, processo até que… TOC TOC TOC. Aí vai chorar abraçado com o Bob Jeff. Acabou”, disse, referindo-se à iminente prisão, já executada contra Roberto Jefferson, que chegou a atirar em policiais federais ao ser abordado.
Em suma, o evento na Avenida Paulista não apenas revelou a fragilidade política de Bolsonaro e sua tentativa de se proteger de uma possível prisão, mas também destacou a persistência da polarização política no Brasil, como já vêm detectando as pesquisas de opinião. A aliança com setores evangélicos, a estratégia de contra-ataque e a narrativa de perseguição são elementos-chave que sustentam esse movimento, mesmo diante de desafios políticos e legais. Enquanto isso, o país continua profundamente dividido, sem perspectivas de conciliação política à vista.