Conheça o poema “Que País é Este?”, de Affonso Romano de Sant’Anna
Literatura e democracia em cena no STF
No julgamento histórico do Supremo Tribunal Federal (STF), que resultou na condenação de Jair Bolsonaro e de sete réus pela tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, a ministra Cármen Lúcia recorreu à literatura para embasar seu voto. Entre as referências, destacou-se o poema Que país é este, de Affonso Romano de Sant’Anna, do qual leu alguns versos em plenário.
Com quase 400 páginas, o voto da ministra consolidou a maioria pela condenação dos acusados e trouxe à cena pública uma reflexão literária sobre a democracia, os valores nacionais e as contradições do Brasil. Ao evocar a poesia, Cármen Lúcia mostrou que a literatura também é uma trincheira contra o autoritarismo e uma ferramenta de resistência.
O poema completo
Publicada originalmente em 1980, a obra de Affonso Romano de Sant’Anna retrata, de forma contundente e crítica, as contradições históricas, políticas e sociais do país. Confira:
Que País É Este?
1
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno “Avante”
— e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso”
e éramos maiores em tudo
— discursando rios e pretensão.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
(…)
2
Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.
Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,
semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,
sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,
vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,
senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,
bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,
a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,
cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,
pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.
(…)
Publicado no livro Que país é este? e outros poemas (1980)
Sobre o autor
Affonso Romano de Sant’Anna nasceu em 1937, em Belo Horizonte, Minas Gerais, e faleceu em 4 de março deste ano. Foi um dos escritores e poetas mais influentes da literatura brasileira, responsável por popularizar a leitura no país e integrar a literatura à vida cotidiana e política. Em seis décadas de produção, publicou mais de 60 obras, entre poesia, crônica e ensaio.
Seu trabalho sempre dialogou com a realidade social brasileira, abordando temas como democracia, direitos humanos, cultura e identidade nacional.
Mais produções literárias de Affonso Romano de Sant’Anna para conhecer:
- Que país é este? e outros poemas (1980) — onde está publicado o poema lido por Cármen Lúcia;
- Sísifo desce a montanha (2015) — obra densa e provocativa sobre os paradoxos da existência humana;
- Entre leitor e autor (2015) — reflexão brilhante sobre a relação entre escritor e público e sobre o papel da literatura na sociedade.
A citação feita no STF mostra que a poesia de Affonso Romano de Sant’Anna segue viva, ressoando não apenas nos espaços literários, mas também nos espaços de poder. A LITERATURA PULSA NO CORAÇÃO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA!
Por Romênia Mariani





