Considerações de Paulo Freire em torno do ato de estudar
Este ano registra o centenário de nascimento do educador brasileiro Paulo Freire. Durante o ano, o Portal da Contee está publicando textos relativos à vida, obra e pensamento de Paulo Freire. O texto a seguir foi escrito pelo próprio Freire, em 1968, no Chile, para apresentar a relação bibliográfica que propôs aos participantes de um seminário nacional sobre educação e reforma agrária. Foi extraído da coletânea Ação cultural para a liberdade, da editora Paz e Terra:
Toda bibliografia deve refletir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo de usá- la, ou se a bibliografia, em si mesma, não é capaz de desafiá- los, se frustra, então, a intenção fundamental referida.
A bibliografia se torna um papel inútil, entre outros, perdido nas gavetas das escrivaninhas.
Esta intenção fundamental de quem faz a bibliografia lhe exige um triplo respeito: a quem ela se dirige, aos autores citados e a si mesmos. Uma relação bibliográfica não pode ser uma simples cópia de títulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere deve saber o que está sugerindo e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez, deve ter nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio. Desafio que se fará mais concreto na medida em que comece a estudar os livros citados e não a lê- los por alto, como se os folheasse, apenas.
Estudar é, realmente, um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura critica, sistemática. Exige uma disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a. Isto é, precisamente, o que a “educação bancária” não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade.
Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede, afinal, não é a compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê- la, terá respondido ao desafio.
Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação profunda.
Esta postura critica, fundamental, indispensável ao ato de estudar, requer de quem a ele se dedica:
a) Que assuma o papel de sujeito deste ato.
Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se põe em face do texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força mágica. Se se comporta passivamente, “domesticadamente”, procurando apenas memorizar as afirmações do autor. Se se deixa “invadir” pelo que afirma o autor. Se se transforma numa “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que ele retira do texto para pôr dentro de si mesmo.
Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras dimensões afins do conhecimento. Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva, alienar-se ao texto, renunciando assim à sua atitude crítica em face dele.
A atitude critica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a razão de ser dos fatos cada vez mais lucidamente.
Um texto estará tão melhor estudado quanto, na medida em que dele se tenha uma visão global, a ele se volte, delimitando suas dimensões parciais. O retorno ao livro para esta delimitação aclara a significação de sua globalidade.
Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais do texto que, em interação, constituem sua unidade, o leitor crítico irá surpreendendo todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no índice da obra. A demarcação destes temas deve atender também ao quadro referencial de interesse do sujeito leitor.
Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser despertado por um trecho que lhe provoca uma série de reflexões em torno de uma temática que o preocupa e que não é necessariamente a de que trata o livro em apreço. Suspeitada a possível relação entre o trecho lido e sua preocupação, é o caso, então, de fixar- se na análise do texto, buscando o nexo entre seu conteúdo e o objeto de estudo sobre que se encontra trabalhando. Impõe-se-lhe uma exigência: analisar o conteúdo do trecho em questão, em sua relação com os precedentes e com os que a ele se seguem, evitando, assim, trair o pensamento do autor em sua totalidade.
Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua preocupação, deve separá-lo de seu conjunto, transcrevendo-o em uma ficha com um título que o identifique com o objeto específico de seu estudo. Nestas circunstâncias, ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a propósito das possibilidades que o trecho lhe oferece, ora pode seguir a leitura geral do texto, fixando outros trechos que lhe possam aportar novas meditações.
Em última análise, o estudo sério de um livro, como o de um artigo de revista, implica não somente numa penetração crítica em seu conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente inquietação intelectual, num estado de predisposição à busca.
b) Que o ato de estudar, no fundo, é uma atitude em frente ao mundo.
Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto.
Os livros em verdade refletem o enfrentamento de seus autores com o mundo. Expressam este enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da realidade concreta estarão expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar é também e sobretudo pensar a prática e pensar a prática é a melhor maneira de pensar certo. Desta forma, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade, em suas relações com os outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa. A de quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca.
O exercício desta postura curiosa termina por torná-la ágil, do que resulta um aproveitamento maior da curiosidade mesma.
Assim é que se impõe o registro constante das observações realizadas durante uma certa prática; durante as simples conversações. O registro das ideias que se têm e pelas quais se é “assaltado”, não raras vezes, quando se caminha só por uma rua. Registros que passam a constituir o que Wright Mills chama de “fichas de ideias”∗ .
Estas ideias e estas observações, devidamente fichadas, passam a constituir desafios que devem ser respondidos por quem as registra.
Quase sempre, ao se transformarem na incidência da reflexão dos que as anotam, estas ideias os remetem a leituras de textos com que podem instrumentar-se para seguir em sua reflexão.
c) Que o estudo de um tema específico exige do estudante que se ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia que se refere ao tema ou ao objeto de sua inquietude.
d) Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de que ele trata. Esta relação dialógica implica na percepção do condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo do leitor.
e) Que o ato de estudar demanda humildade.
Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com a atitude critica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, às vezes grandes, para penetrar na significação mais profunda do texto. Humilde e critico, sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio, pode estar mais além de sua capacidade de resposta. Nem sempre o texto se dá facilmente ao leitor.
Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor instrumentar-se para voltar ao texto em condições de entendê- lo. Não adianta passar a página de um livro se sua compreensão não foi alcançada. Impõe, pelo contrário, a insistência na busca de seu desvelamento. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado.
Não se mede o estudo pelo numero de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de livros lidos num semestre.
Estudar não é um ato de consumir ideias, mas de criá- las e recriá-las.
∗Wright Mills – The Sociological Imagination.
Carlos Pompe