Contee na rede: Perseguição a professores na ditadura incluiu escutas em sala
O jornal O Globo publicou hoje (17) reportagem com o diretor da Contee e da Feteerj, Antonio Rodrigues, sobre a perseguição, as demissões e a censura aos docentes durante a ditadura.
Por Alessandra Duarte
RIO – Sala de aula de ensino primário com escuta, professor demitido porque falava do compositor e cantor Geraldo Vandré com alunos, censura a jornal de estudantes de 2º grau (atual ensino médio). A violência contra professores universitários e faculdades é conhecida nos relatos sobre a ditadura militar, mas os professores de colégios de ensinos fundamental e médio também foram vigiados, reprimidos e censurados no período.
O controle da educação básica no país pelo regime militar não se deu apenas em forma de perseguição contra professores com história pessoal de militância. Tampouco se limitou à criação das famosas disciplinas OSPB (Organização Social e Política Brasileira) e Educação Moral e Cívica, trazidas pela ditadura com o decreto-lei número 869, de 12 de setembro de 1969, que tornou Moral e Cívica obrigatória nas escolas de todos os níveis e, naquelas de 2º grau, também OSPB.
A tentativa de controlar a educação básica veio também em forma de censura ao conteúdo ensinado, aos livros adotados, aos termos que podiam ser ditos.
Para apurar situações como estas vividas por professores da educação básica de colégios na época, a Confederação Nacional de Trabalhadores de Educação pretende lançar, ainda neste primeiro semestre, uma Comissão da Verdade específica para a educação, segundo a direção do Sindicato de Professores de Pernambuco, entidade que integra a confederação.
Ao longo das últimas semanas, O GLOBO levantou histórias sobre o impacto da repressão sobre o ensino no Brasil e conta a seguir alguns destes casos.
PM dentro de colégio e demissão por causa de Vandré
Em 1968, as turmas de 2º grau do Colégio de Aplicação (CAP) da UFRJ tiveram uma censora.
— Ela falava que era uma orientadora dos textos dos alunos no jornalzinho deles. Mas era uma censora do jornal — resume Antonio Rodrigues, então professor de geografia do colégio.
A orientação da professora que exercia esta função consistia no seguinte, conta Antonio: ler os artigos escritos pelos alunos e — naqueles que tratavam de temas como internacionalização da Amazônia ou guerra civil espanhola — dizer que eles não eram os autores dos textos.
— “Ah, isso aqui foi seu pai que escreveu”. E cortava o texto. Ela não gostava de temas políticos. Até que os alunos, entre eles (Carlos) Minc e (Alfredo) Sirkis, por exemplo, zangaram-se tanto que um dia publicaram uma edição do jornal em branco, só com uma faixa preta na transversal com a palavra “Censurientação”.
A direção da escola reagiu colocando um PM dentro do CAP. O ato só fez alimentar uma escalada: a tréplica dos alunos foi pichar as salas de aula com “Democracia” e “Fora o guarda”. O guarda teve que sair para os alunos aceitarem voltar a entrar.
O episódio foi um dos principais vividos por Antonio Rodrigues durante seu exercício do magistério em tempos de ditadura. Ainda no CAP, haveria outro, no início dos anos 1970: durante um seminário de professores, apareceram por lá “dois sujeitos de paletó, gravata e mosquetão nas costas” procurando por ele.
— Não sabiam como eu era. O pessoal disse que eu não estava. Saí do colégio pelos fundos, corri pela Lagoa, atravessei o Corte do Cantagalo, então ainda sendo construído, peguei ônibus, troquei de ônibus em Cascadura, e dali fui para casa, na época em Nova Iguaçu — lembra o professor, hoje com 80 anos, vice-presidente do Sindicato de Professores do Município do Rio e integrante do Conselho estadual de Educação. — Não voltei mais lá. No dia seguinte, comprei uma bola e fui brincar com meu filho.
Em 1969, Antonio Rodrigues já tivera um exemplo não só da repressão contra escolas, mas dentro das próprias; “uma autocensura que era talvez pior”. Ao vê-lo debatendo sobre músicas de um LP de Geraldo Vandré com alunos do 2º grau, uma orientadora educacional do Centro Educacional de Niterói (CEN) disse à direção do colégio que o professor Antonio estaria fazendo “proselitismo político”, pois falava com os alunos de músicas “proibidas”. Ele foi demitido imediatamente.
— Não precisava de ditadura lá fora; ela já estava dentro da escola — diz.
Antonio é também um ex-militante estudantil que, na noite de 31 de março de 1964, quando ainda fazia faculdade e trabalhava como postalista dos Correios, teve que sair fugido da empresa para casa. Escapou escondido entre malas de correspondência, num caminhão dos Correios.
Depois das experiências no CAP e no CEN, o professor foi viver escondido “e deprimido, porque você fica só, as pessoas passam a te evitar, e você também passa a não procurá-las para não envolvê-las”. E lá foi ele criar galinhas em Tinguá. Passou a ganhar seu sustento vendendo ovos para a rede Bob’s.
Antonio voltaria ao magistério em 1981, ao entrar no Colégio Pedro II. Aposentou-se nele, em 2003.
— Era o vetusto Pedro II, mas preservava seus quadros. Um professor de Física de lá, por exemplo, que tinha sido perseguido na rede estadual, foi preservado no Pedro II. Era um colégio tradicional, mas que na ditadura protegeu sua esquerda.
Na sala de aula em frente ao quartel de Lamarca
Um desenho dado de presente por uma professora a um aluno deu muita confusão na Osasco de 1970. Naquele ano, uma professora de artes no Colégio Estadual Quitaúna, estudante de belas-artes em SP, fez como trabalho de faculdade um desenho de Che Guevara. Um aluno seu no Quitaúna gostou, pediu e o ganhou dela, que ainda pôs de dedicatória “Ao guerrilheiro de amanhã”. Mas o aluno do Quitaúna — colégio em frente ao quartel onde servia Carlos Lamarca — era José Domingues, irmão de Roque Aparecido, da VPR de Lamarca, e João Domingues, da VAR-Palmares. O desenho acabaria descoberto pela repressão.
Quem narra o caso é Risomar Fasanaro, professora do Quitaúna à época, mas de português. A de artes era Regina Célia, uma de suas melhores amigas.
— Acharam que Regina era da luta armada. Não era ligada a nada! O Dops foi ao colégio, e ela não estava. Liguei para ela e disse para me ver no dia seguinte, mas não falar comigo. Eu andaria atrás dela contando tudo, e a Regina Célia só ouviria. Ela foi se esconder e queimou outros desenhos que poderiam gerar suspeita, como um de crianças da África — conta Risomar, no mesmo ano presa em Recife, sua terra natal, só porque tirou fotos do quartel onde o pai, militar, tinha servido. — Acharam comigo uma foto com amigos e me fizeram identificar todos. Aquele tempo foi uma barra. Foi o tempo da metáfora, você desconfiava de toda palavra dita.
De história social à geografia, os livros proibidos pelo regime
A relação entre ditaduras e livros nunca foi fácil, e não seria diferente com o regime militar brasileiro e as obras adotadas pelos colégios de 1º e 2º graus.
Um dos livros mais visados foi “História das sociedades”, do professor Rubim Aquino, conta sua ex-mulher, a professora Lucia Naegeli. Além da proibição de sua obra em muitos colégios do país, o próprio Aquino, já falecido, sofreu perseguição: estava no grupo de professores demitidos do São Vicente em 1983 e foi preso e “colocado num quarto escuro, gelado, com cobra e som de gente sendo torturada”, diz Lucia.
Em Diamantina (MG), Paulo Freire era vedado nos colégios de 2º grau de formação de professores, conta o pedagogo Sinésio Bastos:
— Era uma obra tão proibida que uma vez , em 1971, fui acusado de pregar revolução armada por ter falado de Freire na faculdade de filosofia da cidade.
O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) conta que também teve um livro proibido no período:
— Foi “História da sociedade brasileira”, que escrevi com Lucia Carpi e Marcus Ribeiro. Falava de tortura, trazia poema de preso político — diz Alencar, lembrando outra forma de perseguição a professores de 1º e 2º graus: — Todo professor que passasse em concurso público precisava apresentar um “nada consta” do Dops. O meu levou seis meses para sair.
O professor de geografia Antonio Rodrigues escondeu livros na casa da sogra, “pendurados entre o teto e o telhado”, numa época em que era vigiado pelo regime. Chegaram a revistar sua casa:
— Levaram livros de capa vermelha. Acho que “Geografia da fome” (Josué de Castro) foi por isso. Deviam achar que era “O livro vermelho”, de Mao.
Escola primária com escuta nas paredes
Em Volta Redonda, terra da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), não foi fácil ser professor durante o regime militar. A cidade era considerada “de segurança nacional”, lembra Maria das Dores Pereira Mota, então professora de 1ª a 4ª série na Escola Municipal Macedo Soares e Silva — construída já durante o regime, afirma a professora, com salas de aula que contavam com escutas embutidas nas paredes.
— Eu dava aula para a 4ª série. Um dia, em 1968, um aluno perguntou o que era imperialismo americano. Expliquei de forma geral. E disse que o país vivia, naquele momento, um regime que estava sendo sustentado por este imperialismo — conta Maria das Dores. — Quando acabou a aula, o então presidente da Fundação de Educação de Volta Redonda, que era um coronel, estava na porta da sala me olhando. Eu tomei aquilo como uma intimidação.
Também na cidade, em 1964, pouco tempo depois do golpe, a professora de ensino primário Nair da Silva Schocair estava dando aula num colégio de um bairro operário quando viu um carro parar em frente à escola e dele sair um militar “com muitas medalhas”. Ele se postou na janela e ficou assistindo a toda a aula de Nair.
— Isso aconteceu duas vezes. Na primeira, não falei nada. Os alunos, a maioria filhos de operários da região, é que me perguntaram baixinho: “Ele veio prender a gente?”. Na segunda vez, na saída da aula, ele disse para eu entrar no carro. Perguntei se era um convite ou uma ordem, e ouvi que “por enquanto era um convite” — conta a professora, hoje aposentada. — Ele me levou até o centro da cidade. No carro, quis saber a orientação pedagógica da escola, quem me pagava, quem me orientava.
Segundo Nair, os militares teriam ficado desconfiados por causa do proprietário do imóvel onde funcionava o colégio, e que o alugava para a prefeitura: ele era filiado ao PCB:
— Deviam achar que a escola era comunista, né?
Contra uma demissão em massa, uma vigília
A ditadura já estava vendo seu fim quando o Colégio São Vicente, no Rio, resolveu lembrar como as coisas eram no início. Em 1983, uma nova direção assumiu a escola e resolveu demitir 11 professores considerados politizados além da conta. O episódio, polêmico, é lembrado até hoje por educadores.
Foi quase na véspera do Natal. Em 22 de dezembro, quando um professor já havia sido afastado, outros dez foram chamados ao colégio.
— Achavam que não ia repercutir, que não haveria ninguém lá, com a época de férias. Mas estava havendo uma aula extra para o 3º ano. Eu fui o terceiro a ser demitido aquele dia. Mas, no segundo, a notícia já tinha chegado aos alunos, que foram para os orelhões telefonar e chamar outros. De repente, já havia uns 500 estudantes no colégio — lembra o professor de matemática Marcelo Sá Corrêa, então funcionário do São Vicente. — Outro grupo de professores, entre eles o (deputado) Chico Alencar, foi demitido depois, por apoiar os que tinham sido afastados.
Daquele dia, e até 15 de janeiro de 1984, alunos, pais e professores passaram a fazer uma vigília no colégio, em protesto — e “teve aluno que não foi em casa este tempo todo, a mãe ia lá levar toalha e sabonete”, lembra Marcelo. No Natal, pais levaram ceia. À noite, alunos cantavam paródias, “para não deixarem os padres de lá dormir”. A escola não impediu a vigília, mas, numa das assembleias de alunos, chegou a cortar a luz. E nenhum professor foi recontratado.
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Assista ao vídeo: 50 anos de Golpe – Antonio Rodrigues, professor censurado
Do jornal O Globo