Defensores e defensoras de direitos humanos na produção de um futuro coletivo

Proteger os defensores de direitos humanos, especialmente quilombolas, indígenas e outros povos e comunidades tradicionais, que são a principal defesa de nossos biomas, é o primeiro e um dos mais importantes passos para assegurar um meio ambiente seguro e, por conseguinte, os direitos humanos de todos. Artigo inédito escrito para o livro Direitos Humanos no Brasil 2025, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos

Macaé Maria Evaristo dos Santos*

O enfrentamento da crise climática é indissociável da proteção de defensores e defensoras de direitos humanos, especialmente indígenas, quilombolas e de outros povos e comunidades tradicionais. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e o Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (Filac), 80% das áreas indígenas possuem bosques e, pelo menos, 45% dos bosques intactos da bacia amazônica são territórios indígenas. Mesmo que ocupem 28% dos territórios, indígenas e outros povos e comunidades tradicionais emitiram somente 2,6% das emissões brutas de carbono da região. Entre 2000 e 2016, a floresta intacta nas áreas indígenas reduziram só 4,5%, enquanto nas não indígenas foi de 11,2%.

Assim, a defesa de defensoras e defensores de direitos humanos, principalmente indígenas e quilombolas, é uma ação concreta de reversão da emergência climática. A intensificação de proteção desses defensores segue tendo que ser uma prioridade: a relatora para defensores da ONU indicou que os defensores em mais risco no Brasil são quilombolas e indígenas. O relatório “Na linha de frente” indicou que a cada mês aproximadamente duas pessoas são assassinadas por defenderem direitos humanos. Foram mapeados 486 casos de violência contra defensores. São 1.657 defensoras e defensores que sofreram violências desde 2019. No entanto, o ano de 2024 foi o com menor número, sinal de que o investimento na política também vem assegurando maior proteção. No mesmo estudo, a região Norte foi considerada a mais violenta do país para defensores com 34,4% dos casos, seguido pelo Nordeste com 23%. O Pará especificamente foi o estado mais violento, com 103 casos, seguido do Mato Grosso do Sul com 49. Foram 326 os casos que ocorreram em áreas rurais (67,1%, e a maioria das pessoas assassinadas são negras (36,4%) e indígenas (34,5%), 80% são homens.

Para o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania lutar contra emergência climática, quanto ao uso predatório da natureza e contra o ponto de não retorno é também fortalecer a luta pela proteção de indígenas e outros povos e comunidades tradicionais. É preciso proteger os “guardiões da floresta” e para isso é necessário assegurar a participação dos diretamente afetados na construção das políticas de proteção.

É por esse motivo que ao longo de 2024, com a missão de aprimorar o Programa Nacional de Proteção às Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania cumpriu uma série de oitivas e consultas públicas a fim de subsidiar os trabalhos do Grupo Técnico de Trabalho Sales Pimenta[1] e para elaboração do Plano Nacional de Proteção a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos.

Em São Paulo, uma declaração chamou a atenção e está documentada nos arquivos públicos do governo brasileiro: “Quem defende direitos humanos, hoje, tem medo. Se você abrir a boca, você pode ser o próximo a ser silenciado”. Dados oficiais dão conta de que cerca de 1.414 pessoas estão sob proteção do Estado brasileiro por lutarem pelo direito à vida e ao meio ambiente. A maior parte dos defensores assistidos é composta por representantes de povos e comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas (50%), que sofrem ameaças em conflitos no campo (71%) e defendem o direito à terra como principal militância (30%). Quando vidas estão ameaçadas por lutarem a favor de seus territórios e do bem comum, passamos a compreender que já ultrapassamos o limite do razoável: enquanto as estatísticas afirmam que a mudança climática é uma realidade avassaladora, vidas historicamente vulnerabilizadas nos alertam sobre a necessidade de que a justiça climática socialmente justa seja o centro de um novo paradigma existencial.

Tendo em vista as estruturas de desigualdade, também são esses mesmos grupos que sofrem os maiores impactos em momentos em que se vive eventos extremos climáticos. Um exemplo são as enchentes no Rio Grande do Sul. Um relatório da organização Anistia Internacional indica que, segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), 145 comunidades tiveram danos diretos das cheias, totalizando 17.552 pessoas quilombolas atingidas. Segundo um levantamento feito pelo próprio governo do Rio Grande do Sul, citado no mesmo relatório, 100% das comunidades quilombolas tiveram danos à sua subsistência. A mesma pesquisa revelou que os povos indígenas foram duramente afetados com as inundações de 2023 e 2024 no estado. Os quatro povos oficialmente reconhecidos – Charrua, Guarani, Kaingang e Xokleng –, com mais de 36 mil pessoas em 72 municípios, tiveram, ao menos, 70% dos territórios atingidos pelas cheias, reverberando na afetação de 90 comunidades e 8 mil famílias, que somam cerca de 30 mil pessoas.

Assim, preservar os direitos de povos indígenas e quilombolas é garantir um futuro seguro para o planeta. Essa perspectiva vem sendo confirmada inclusive no campo normativo internacional. Em 2022, a ONU emitiu uma resolução em que classifica o direito ambiental como um direito humano fundamental. Essa classificação traz um alerta e passa uma mensagem importante em meio às mudanças climáticas e à necessidade de transição energética, que reforça que nós somos parte integrante da natureza.

No mesmo sentido, a Opinião Consultiva 23, emitida em 2025 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, determina a indivisibilidade e interdependência da proteção do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável e dos direitos humanos, que inclusive são impedidos de serem desfrutados em sua plenitude a cada efeito adverso climático. Dentre os direitos violados estão o próprio direito à vida e à integridade física. O documento aponta que a vulnerabilidade dos povos indígenas às mudanças e ao extremo climático são também correlacionadas à relação espiritual e cultural dessas comunidades com seus territórios. Foi determinada por essa Opinião uma nova forma de dano, que é o dano significativo, que ocorre toda e cada vez que um dano ao meio ambiente impede que se exerça em plenitude o direito à vida e à integridade física.

Proteger os defensores de direitos humanos, especialmente quilombolas, indígenas e outros povos e comunidades tradicionais, que são a principal defesa de nossos biomas, é o primeiro e um dos mais importantes passos para assegurar um meio ambiente seguro e, por conseguinte, os direitos humanos de todos. Essa conexão é reforçada pelo Acordo de Escazú, pactuado em 2018 na Costa Rica, no qual os governos da América Latina e Caribe aprovaram um pacto regional que possui como linhas fundamentais a transparência ambiental, o acesso à participação e à justiça, e a proteção aos defensores ambientais. Este importante avanço na pauta está aguardando aprovação do Congresso Nacional desde 2023.

Este é o ano da 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP 30, em Belém, o mesmo território em que Sales Pimenta perdeu sua vida na luta e que atualmente é um dos que possui maior risco para defensores. O protagonismo da sociedade civil na construção de políticas públicas eficazes e justas no campo climático, com arranjos que possam vencer o racismo ambiental e o ônus desproporcional que vem sendo pago por aqueles que mais protegem o meio ambiente é o principal vetor de fortalecimento da nossa democracia e luta por justiça social.

Temos a oportunidade histórica de inverter a lógica da exploração predatória da natureza e seus povos e do abuso em favor da política em sua concepção mais digna e comprometida com a emancipação de toda a população global. A luta contra as desigualdades sociais e em favor da agenda de emergência climática deve ser fundada na perspectiva dos povos, que nos mostram que o modelo baseado na exploração predatória da natureza nos leva cada dia mais perto do ponto de não retorno. Somente a luta coletiva é capaz de produzir um futuro plural, diverso e com garantia dos direitos humanos das gerações futuras.

*Macaé Maria Evaristo dos Santos é professora, assistente social, política e ministra de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania.

[1] Gabriel Sales Pimenta foi assassinado em 1982. O defensor de direitos humanos de origem mineira advogava por movimentos sociais em conflitos no campo, no sudeste do Pará. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou, em 2022, o Brasil pelo assassinato do defensor. Em relação ao colegiado, este foi criado pelo decreto nº 11.562, de 13 de junho de 2023, fruto não só da decisão da Corte Interamericana, mas também de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), em janeiro de 2017, requisitando que a União elaborasse um Plano Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos.

Fonte
Diplomatique

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