Dica Cultural: Torto Arado, um retrato pulsante do Brasil profundo

Torto Arado, de Itamar Vieira Junior (2019) — vencedor do Prêmio Jabuti de Romance Literário, do Prêmio Oceanos e do Prêmio Jabuti de Livro Brasileiro Publicado no Exterior — é uma obra que faz emergir o Brasil profundo, conduzindo o leitor a uma escuta sensível de vozes historicamente silenciadas. Ambientado no sertão da Bahia, o romance revela uma terra pulsante de memória, resistência e espiritualidade.
A narrativa acompanha as irmãs Bibiana e Belonísia, descendentes de pessoas escravizadas que vivem em uma comunidade rural submetida às estruturas opressoras do latifúndio. A trama evidencia a persistência das violências herdadas do período escravocrata. Essa delimitação histórica torna-se ainda mais nítida quando Belonísia afirma que seu pai, Zeca Chapéu Grande, “havia nascido quase trinta anos após declararem os negros escravos livres, mas ainda cativo dos senhores de seus avós” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 147).
Desde as primeiras páginas, a obra nos captura com uma linguagem lírica e ao mesmo tempo cortante. O acidente que marca o início da história — quando Belonísia perde a língua — torna-se um poderoso símbolo da opressão histórica: é a mutilação literal da fala, da possibilidade de denúncia, de liberdade. Mas também uma forma alternativa de comunicação e sobrevivência. O silêncio forçado de Belonísia é um espelho das ausências que permeiam a história do Brasil — ausências de justiça, de escuta, de reconhecimento.
Itamar constrói uma narrativa em que a ancestralidade, a oralidade e a religiosidade afro-brasileira ocupam um lugar central. A alternância de vozes aprofunda a compreensão das nuances de uma realidade historicamente invisibilizada. Com uma linguagem simples, mas de intensa carga poética, o texto revela uma força singular.
As vozes narrativas se movem entre passado e presente, entre vivos e mortos. Sem recorrer a um discurso panfletário, Itamar estrutura o romance sobre um eixo invisível de crítica social. Denuncia as condições de exploração dos trabalhadores rurais, a violência imposta pelos latifundiários e a permanência de estruturas escravocratas no campo brasileiro. A luta pela posse da terra é tratada sem perder de vista a dimensão afetiva e espiritual que une os personagens ao território que habitam.
Ao contar a história sob a perspectiva de duas irmãs em uma família liderada por um curandeiro, o autor lida com o sagrado e os cultos de matriz africana não como pano de fundo ou exotismo, mas como força vital que guia e sustenta a comunidade. Trata-se de uma religiosidade que se entrelaça com a luta social, a cura e a memória. Nesse sentido, Torto Arado é também um livro sobre corpos — corpos que trabalham, sangram, dançam e incorporam.
Ao final da leitura, é impossível sair ileso. Torto Arado planta em nós a inquietação: quantas histórias como as de Bibiana e Belonísia ainda permanecem enterradas sob a terra dura do esquecimento histórico? Ao dar voz a essas mulheres e à sua comunidade, Itamar Vieira Junior não apenas escreve sobre a história do Brasil rural — ele devolve a palavra aos que foram privados dela.
VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. São Paulo: Todavia, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 24 abr. 2025.
Antônia Rangel