Durante governo Bolsonaro, mais de 3,5 mil crianças indígenas de até 4 anos morreram no Brasil
Dados foram apresentados pelo Cimi nesta quarta; Relatório mostra que, em 2022, 180 indígenas foram assassinados no país
Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), entre 2019 e 2022, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) registrou um total de 3.552 óbitos de crianças indígenas na feixa etária entre 0 e 4 anos. A informação está no relatório Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, lançado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) nesta quarta-feira (26), em Brasília (DF), com dados de 2022. Os dados fornecidos pela Secretaria revelam a ocorrência de 835 mortes de crianças indígenas desta faixa etária em 2022.
Com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), o Cimi obteve da Sesai informações parciais sobre as mortes de crianças indígenas nessa faixa etária. “As crianças são as maiores vítimas deste cenário de violência”, sintetizou a professora Lucia Helena Rangel, uma das coordenadoras da publicação.
O relatório
O relatório traz um panorama de quatro anos de paralisação total das demarcações de terras indígenas, aumento dos conflitos, invasões nos territórios e desmonte das políticas públicas voltadas aos povos indígenas e dos órgãos responsáveis por fiscalizar e proteger seus territórios.
“Estamos diante de um cenário de horrores. São horrores cometidos contra pessoas, naturezas, espíritos, contra todos os povos”, pontuou Lucia Helena Rangel.
O cenário desolador ficou evidenciado em casos como as mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, brutalmente assassinados em junho na região da Terra Indígena (TI) Vale do Javari (AM), e pela crise sanitária e ambiental sem precedentes no território Yanomami, gerada pela expansão do garimpo.
O levantamento do CIMI, organizado em três capítulos, reúne dados sobre violações contra os direitos territoriais indígenas, como conflitos, invasões e danos aos territórios; violências contra a pessoa, como assassinatos e ameaças; e violações por omissão do poder público, como desassistência nas áreas da saúde e da educação, mortalidade na infância e suicídios.
As informações foram obtidas junto a fontes públicas como a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e secretarias estaduais de saúde.
“Foi um governo criminoso que cometeu uma série de abusos, excessos absurdos e que até agora está impune”, completou.
O evento de lançamento da publicação anual do Cimi nesta quarta (26) ocorreu na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e contou com a presença de lideranças indígenas e representantes da CNBB e do Cimi, dentre eles, Dom Ricardo Hoepers, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); Dom Roque Paloschi, presidente do Cimi e arcebispo de Porto Velho (RO); Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, secretário executivo do Cimi.
Negligência do poder público na crise humanitária Yanomami
Os casos de violência contra os povos indígenas por omissão do poder público sistematizados no relatório são um dos que mais surpreendem. É nesta parte que entram os alarmantes dados sobre a desassistência por parte do governo que gerou a crise humanitária que atinge o povo Yanomami em Roraima.
“Por conta do mercúrio hoje tomamos água do rio contaminada. A partir daí começa o nosso sofrimento. É triste ver a mãe perder a criança”, pontuou Júlio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye’kwana (RR). “Nós povos indígenas, durante 4 anos, lutamos, resistimos, e não desistimos. Até hoje não estamos desistindo”, completou em sua fala a liderança.
Ye’kwana destacou também que o governo atual tem que criar estratégias para enfrentar o garimpo, a qual denominou como facções criminosas
“Está difícil resolver os problemas que foram causados. Hoje, o governo tenta consertar, mas está sendo difícil pra gente, porque ainda tem os poderosos que atuam contra os povos indígenas. Mas não vamos desistir. Somos fortes. Porque estamos na nossa terra. Na terra chamada Brasil. Eu nasci aqui. Essa é a minha terra”, destacou.
“Nossa floresta foi destruída, os rios foram contaminados, os lugares sagrados foram destruídos. Os nossos conhecimentos estão indo embora. Estamos preocupados porque temos grande ligação com a natureza. A natureza nos sustenta, e os povos indígenas sustentam a natureza. Queremos viver em paz”, completou.
Violência por conflitos territóriais
Em 2022, a postura antiíndigena do governo Bolsonaro também se refletiu no aumento de conflitos por direitos territoriais, com 158 registros em todo o país. Já a exploração exploração ilegal de recursos, invasões possessórias e danos ao patrimônio dos indígenas somaram 309 casos, pelo menos em 218 terras indígenas de 25 estados do país.
Em estados como Mato Grosso do Sul, Maranhão e a Bahia, os conflitos resultaram em assassinatos, inclusive com o envolvimento de forças e agentes policiais.
Foi o caso da morte de Gustavo Silva da Conceição, garoto Pataxó de apenas 14 anos, brutalmente assassinado na TI Comexatibá, no extremo sul da Bahia, durante um dos vários ataques a tiros efetuados por grupos que os indígenas definem como “milicianos”.
Em vídeo apresentado no início do evento, Candara Pataxó voltou ao local do atentado para mostrar as marcas dos tiros que tiraram a vida de seu filho.
“Tinha mais crianças também. Estou nessa luta porque sei do valor que ele tinha. Para não acontecer com outras crianças, porque tem outras crianças que têm sonhos”, pontuou a mãe.
Presente na mesa, Erilsa Pataxó, vice-cacica da TI Barra Velha (BA), emocionada, deu sequência à denúncia da parente.”Eles que chegaram delimitando nosso território, e hoje a gente não tem mais direitos. Quando a gente vai à luta, nosso povo é morto”, pontuou em sua fala.
“Hoje estamos sendo atacados por todos os lados. Hoje já começamos a sofrer dentro do útero da nossa mãe”, completou.
Atualmente, 62% entre as 1.391 terras e demandas territoriais indígenas existentes no Brasil ainda carecem de regularização, de acordo com o Cimi. Dentre as 867 terras indígenas com pendências, pelo menos 588 não tiveram nenhuma providência do Estado para sua demarcação.
Esses territórios ainda aguardam a constituição de Grupos Técnicos (GTs) pela Funai, responsável por proceder com a identificação e delimitação destas áreas. Os poucos GTs abertos ou recriados em 2022 só foram constituídos por determinação judicial em ações movidas pelo Ministério Público Federal (MPF) – e nenhum deles concluiu seus trabalhos.
“A Funai foi criminosa durante esses 4 anos. As mortes todas que aconteceram nesse período de indigenistas, de indígenas, de mulheres, de crianças, são fruto da tamanha irresponsabilidade que a Funai cometeu neste tempo”, apontou Lucia Helena Rangel.
Violência contra a pessoa
Em relação aos assassinatos de indígenas em 2022, foram registrados 180 casos em todo o Brasil. Assim como nos três anos anteriores, Roraima, Mato Grosso do Sul e Amazonas seguem sendo os estados que registraram o maior número de assassinatos de indígenas, com 41, 38, e 30 casos respectivamente. Os dados são da Sesai, do SIM e de secretarias estaduais de saúde.
O Cimi levantou no relatório que estes três estados concentram 65% dos 795 homicídios de indígenas registrados entre 2019 a 2022.
Dentre esses casos, destacam-se os assassinatos de lideranças Guarani e Kaiowá como Marcio Moreira e Vitorino Sanches, nos meses seguintes ao caso conhecido como “Massacre do Guapoy”, que vitimou o Kaiowá Vitor Fernandes.
Josiel Kaiowá, liderança Guarani Kaiowá em MS, é sobrevivente do massacre. Presente na mesa, ele pontua que ação foi comandada pela Polícia Militar, sem ordem de reintegração de posse.
“O massacre começou às 5 da manhã e acabou às 6 da tarde. Foi um dia inteiro sem ter como a comunidade respirar”, relembrou.
“Nós do povo Guarani Kaiowá não vamos nos calar, até que todos os nossos territórios sejam demarcados. Estamos dispostos a ir no nível máximo da nossa resistência”, completou.
A liderança Kaiowá aponta que um desafio para o atual governo progressita de Lula (PT) é que para os proximos relatorios não se repitam mais essas violências, e isso passa, pela demarcação das terras indígenas.
“Nós não estamos negociando nossa terra, nós estamos dispostos a morrer, mas nunca transformar a terra em mercadoria. A terra é mãe, somos ligados a ela, terra é sagrada, não se vende, o lugar da felicidade e não da violencia”, pontuou.
O Cimi também levantou que os três estados que acumulam os maiores índices de assassinatos de indígenas também são os campeões no número de suicídios. Entre 2019 e 2022, foram totalizadas 535 mortes de indígenas por suicídio, sendo 74% deles no Amazonas, Mato Grosso do Sul e Roraima.
Edição: Leandro Melito