“É muito difícil dizer que o pior já passou”, diz Nicolelis sobre a pandemia do coronavírus
País atingiu a marca de 5 milhões de infectados nesta quarta-feira. Óbitos vão a 148.288
O Brasil chega à marca de 5 milhões de infectados pelo coronavírus sete meses após a confirmação do primeiro caso, em fevereiro. Mais de um milhão deles se concentram no estado de São Paulo, o mais afetado do País. Embora a média de mortes por Covid-19 tenha recuado nas últimas semanas, o patamar ainda é elevado. E cidades muito impactadas no começo da pandemia, como Manaus, voltam a acender sinal de alerta frente a uma possível nova onda de contágios.
CartaCapital convidou o médico e cientista brasileiro Miguel Nicolelis para avaliar o curso da doença no Brasil, as estratégias de enfrentamento ao vírus, as omissões e as expectativas para a chegada de uma possível vacina. Ele é cauteloso ao analisar os dados das últimas semanas: “É muito difícil dizer que o pior já passou. No Brasil, a gente aprendeu que essa frase é extremamente perigosa de ser usada”. Confira a entrevista:
Carta Capital: O Brasil apresenta queda na média móvel de mortes há pelo menos duas semanas e um movimento ainda instável em relação ao número de novos casos de Covid-19. Em que momento estamos da pandemia? O pior já passou?
Miguel Nicolelis: Eu não teria a irresponsabilidade de falar isso. Nós tivemos uma pequena queda que já foi vista em outros países, como nos EUA, mas a situação lá explodiu de novo no começo de junho. Só agora eles estão tendo níveis um pouco mais baixos, basicamente os mesmos números de óbitos diários que temos neste momento, 800 em média. E isso para um país que tem uma população 50% maior do que a nossa. Ou seja, nós estamos em um patamar de instabilidade, onde qualquer surto mais importante pode levar a um crescimento de casos, vide o que aconteceu no Rio de Janeiro. Há duas semanas, a taxa de ocupação de leitos da rede pública na cidade do Rio de Janeiro chegou a 79%, e na rede privada chegou a 90%. É muito difícil dizer que o pior já passou. No Brasil, a gente aprendeu que essa frase é extremamente perigosa de ser usada.
CC: O senhor vê alguma similaridade entre os estados que hoje têm aumento no números de mortes?
MN: O Brasil é um país continental, com múltiplas dinâmicas do vírus acontecendo, o que representa na atualidade a marca dos erros de manejo e dos poucos acertos que ocorreram em um passado recente. Quando você olha para as curvas de contágio a longo prazo, é possível ver essas impressões.
O estado de São Paulo, por exemplo, tem a quarentena mais longa do mundo, porque nunca efetuou um lockdown correto. Um estudo epidemiológico nosso indicou que a cidade de São Paulo foi responsável por mais de 85% do espalhamento de casos pelo Brasil, nas primeiras três semanas de pandemia.
E as rodovias que cruzam a cidade e saem para o restante do País, 26 federais, foram responsáveis por 30% do espalhamento dos casos. Agora, temos pequenas quedas, com patamares ainda altíssimos.
Até o dia 29 de setembro, o estado de São Paulo ainda contabilizava mais de 200 mortes por dia, além de milhares de casos diários. Ainda é uma catástrofe. Eu ainda não vejo motivos para comemorar. A recomendação inicial foi para que se fizesse um lockdown preciso por algumas semanas, restringindo inclusive o tráfego não essencial pelas rodovias. A meu ver, o manejo no estado foi absolutamente inapropriado.
Na Bahia, também se recomendou o lockdown ainda em junho, mas o prefeito [Antônio Carlos Magalhães Neto (DEM)], infelizmente, achou ser exagero. Todas as projeções que fizemos em relação ao número de óbitos à época se materializaram. É muito triste ver isso.
Também temos casos em que a curva do vírus se materializou com atrasos, caso do Centro-Oeste, Minas Gerais, e Amazonas, onde também aconteceu o que previmos em um estudo, o efeito boomerang, com o interior impulsionando novamente os casos para a capital. Em Manaus, basicamente a dinâmica do vírus foi ao Deus dará: pode agir da maneira como quis.
Por fim, há impactos positivos na contenção do vírus em locais que fizeram algum lockdown, ainda que não completamente, como São Luíz, Fortaleza, Recife (com menos ênfase) e grande João Pessoa. O efeito é duradouro.
CC: O senhor ainda acha possível contar com o isolamento social como estratégia de contenção do vírus, dado o contexto de reabertura econômica, e as quedas nas taxas de isolamento anunciadas pelo IBGE?
MN: Não só é possível como necessário. Madrid, na Espanha, está retornando ao lockdown parcial, que pode virar total a qualquer momento. A Inglaterra está fazendo a mesma coisa. A França está resistindo, mas provavelmente não vai ter o que fazer. Nenhum país do mundo renunciou ao isolamento social como forma de mitigar os problemas causados pelo coronavírus até que exista uma vacina. O efeito da estratégia já foi demonstrada em vários artigos científicos. No Brasil, onde foi minimamente implantado, os efeitos foram claros. Não tem como renunciar a uma das poucas coisas que a gente sabe que é efetiva.
Agora, o problema é a disposição política, sobretudo em um momento de eleição que, na minha opinião, deveria ter sido adiada pelo potencial de desencadear surtos ao longo das campanhas e no próprio dia da votação. Preocupa a eleição virar a pauta principal e todo o resto ‘desaparecer’, porque a verdade é que o vírus continua circulando, e não deixa nem as pessoas mais poderosas do mundo imunes, haja visto os diagnósticos recentes do presidente americano, Donald Trump, e da primeira dama.
Tem ainda o componente de responsabilidade cívica da sociedade brasileira que, aparentemente, acha que a pandemia acabou. Basta olhar as praias cheias aos finais de semana, o futebol ocorrendo como se nada tivesse acontecendo. É um problema de disposição política, mas também psicológica de aceitação e combate à pandemia. Definitivamente, o problema não está na ferramenta de controle, no isolamento social, mas naqueles que deveriam entender o seu uso, implementá-lo e não o fazem.
CC: O Brasil conseguiu efetivar alguma estratégia de enfrentamento ao Covid-19 ou o senhor acha que o vírus apenas trilhou o seu curso?
MN: Na maior parte do País, simplesmente seguiu o seu curso. O vírus sofreu pequenos constrangimentos com o isolamento social parcial adotado e vejo a região Nordeste com maior destaque nesse sentido, ainda que não da maneira ideal. Mas na maior parte do País o que vimos foi a dinâmica do vírus sendo imposta por conta própria, sem nenhum grande impedimento.
CC: Como o senhor avalia a corrida pelas vacinas no Brasil? É factível falar em uma vacina ainda este ano?
MN: Acho difícil uma vacina ainda neste ano; já estamos em outubro. E isso não só do ponto de vista de validação dos resultados e autorização, mas também de logística, não tem como. Segundo que, até agora, não temos uma clareza dos resultados da fase 3. Houve o relato de complicações da vacina de Oxford, umas das três mais avançadas. Precisamos aguardar pela publicação dos dados para que a gente possa avaliá-los com cuidado. Existe uma politização muito grande, tanto no Brasil como fora. A gente viu nos EUA o presidente Trump tentando forçar a barra para dizer que uma vacina estará pronta antes das eleições americanas, o que pelo visto não é verdade. Então, acho, que neste momento, temos muito pouco a falar, temos que aguardar resultados mais concretos.
CC: O tema do volta às aulas é amplamente debatido no País. Alguns especialistas dizem que o Brasil pagará caro por ter aberto bares e comércios e ter deixado as escolas por último. Como o senhor vê essa declaração do ponto de vista epidemiológico? O erro está em não abrir as escolas ou de ter liberado o retorno das demais atividades econômicas?
MN: Na minha opinião, não temos a menor condição de abrir as escolas no Brasil. Os exemplos internacionais já são múltiplos, veja o que aconteceu na França ao reabrirem as escolas em setembro. Houve uma explosão de casos, tanto que muitas escolas tiveram que ser fechadas e alunos, postos em quarentena. Evidentemente, acho que não tinha que ter liberado aglomerações em bares, liberado o futebol – foram atos completamente irresponsáveis que geraram problemas como o que estamos vendo no Rio de Janeiro.
Estamos em outubro. Não vejo o menor sentido em arriscar uma potencial explosão de surtos abrindo as escolas. As pessoas não param para pensar que não serão só as crianças as expostas, mas os professores, funcionários, o entorno das unidades. Dizer que as escolas têm que ser reabertas porque reabriram bares é um absurdo, um raciocínio que não faz o menor sentido. O preço alto que vamos pagar é pela falta de um manejo mais apropriado da pandemia desde o começo, a nível federal e de outros estados.
CC: Sobre o futebol, nas últimas semanas acompanhamos uma queda de braço jurídica pela liberação de um jogo entre Palmeiras e Flamengo. O time carioca enfrenta um surto de coronavírus. Além disso, o Ministério da Saúde anunciou a possibilidades dos estádios receberem 30% de torcedores…
MN: Isso é a prova de mais uma parte da falta de sanidade, de responsabilidade, do negacionismo de todas as evidências que quase provocaram uma tragédia. Veja só o número de jogadores infectados em um único time, o Flamengo. Depois, na sequência, o Fluminense. Isso já tinha acontecido no começo do campeonato com times como Goiás, CSA, Sampaio Correa. O número é enorme e evidentemente mostrou que quem gere essa atividade não está preocupado em usar a lógica e as evidências científicas. A proposta de trazer público de volta para os estádios é completamente insana e curiosamente estava sendo capitaneada pelo time que sofreu na pele um número enorme de pessoas infectadas, o Flamengo. Eu não vejo como a gente pode justificar jogo de futebol em meio a uma pandemia ainda fora de controle.
Tivemos imagens que vão permanecer por décadas. O jogo do Flamengo, pelo campeonato carioca, no Maracanã, do lado de um hospital de campanha, onde pessoas lutavam pela própria vida e, aparentemente, naquele dia, duas pessoas faleceram. Então qual é a lógica, qual a mensagem que se passa quando se tem um jogo acontecendo ao lado de um hospital, no meio de uma pandemia fora de controle? Que imagem do Brasil nós estamos construindo? Um país que se vangloriava de ser feliz, amigável, de valorizar a boa vida, hoje dá mostras de completa falta de empatia humana, e torna-se exemplo negativo no mundo todo. Isso sem contar que a pandemia acontece enquanto 20% do Pantanal é queimado, e uma fração inominável da Amazônia desaparece. Esse é o Brasil de hoje, a antítese de qualquer sociedade que se diz civilizada.
CC: Recentemente, o senhor levantou uma hipótese sobre a presença do vírus da dengue ser um potencial inibidor do coronavírus. Em que momento o estudo se encontra?
MN: Estamos diante de uma hipótese epidemiológica em um estudo que aponta uma possível competição entre o vírus da dengue e o coronavírus. Encontramos correlações inversas entre a incidência da dengue e a de coronavírus: onde tem muita dengue, tem pouco coronavírus e vice-versa. Há algumas evidências fora do Brasil nesse sentido, e a principal vem de um estudo israelense que avaliou amostras sorológicas de 95 pacientes que tiveram dengue no ano passado. Vinte e duas delas deram falso positivo para o coronavírus. Outros estudos menores também apontaram resultado parecido.
Agora, repetimos essa análise com amostras sorológicas de 84 países do mundo, da América Latina, do Caribe, Ásia e África e estamos preparando um trabalho para publicação. Estamos seguindo a trilha da hipótese e vamos tentar avançar com ela, fazendo parcerias dentro e fora do Brasil. Até o momento temos o achado e estudos independentes de vários lugares do mundo que dão suporte à hipótese.