Edital do PNLD expõe autoritarismo bolsonarista
Desde que o presidente assumiu o poder, fogueiras e listas de proibições foram reacesas e reeditadas por apoiadores
Por Madalena Guasco Peixoto*
Não faltam, na história, episódios de perseguição aos livros com símbolos do conhecimento e da liberdade de expressão. Em 1933, mais precisamente no dia 10 de maio, foram queimadas em praça pública, em várias cidades da Alemanha, montanhas de obras de escritores alemães considerados “inconvenientes” ao regime nazista, entre as quais estavam inclusive os livros de Thomas Mann, que havia ganhado o Nobel de literatura quatro anos antes. Séculos antes, em 1559, o Papa Paulo IV promulgou a primeira versão do Index Librorum Prohibitorum, que listava publicações consideradas heréticas, anticlericais ou lascivas na opinião da Igreja Católica, sendo, portanto, por ela proibidas. Assustadoramente, a última edição do índice foi publicada em 1948 e só foi abolida pelo Papa Paulo VI em 1966, há apenas 55 anos.
Interessante como os anos — e décadas e séculos — passam, mas as ameaças, não. Desde que Jair Bolsonaro assumiu a presidência, fogueiras e listas de proibições foram reacesas e reeditadas por apoiadores — basta lembrar o caso, no ano passado, de um casal bolsonarista que literalmente ateou fogo em exemplares de Paulo Coelho depois de o autor criticar o presidente nas redes sociais ou do comunicado disparado às escolas estaduais de Rondônia pela Secretaria Estadual de Educação, que determinou, também no ano passado, o recolhimento de 42 obras de importantes autores nacionais e internacionais das bibliotecas. Apesar desses episódios pontuais, o governo encontra meios mais sub-reptícios de atacar o que julga um problema que transformar o país numa distopia de Ray Bradbury.
Um desses meios é agir diretamente sobre o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e isso tem dois impactos. O primeiro é, evidentemente, o pedagógico, com interferência nos conteúdos dos livros que serão adotados nas escolas. O segundo é sobre o mercado editorial, que, tendo o governo como um grande consumidor, passa a já pensar, escolher ou até autocensurar suas publicações de acordo com aquilo que sabe que o governo vai comprar. Não por acaso a primeira notícia sobre o recente edital do PNLD 2023 foi dada, no dia 12 de fevereiro, pelo site PublishNews, voltado para assuntos relacionados à indústria do livro, e não especificamente para a educação.
Foram eles os primeiros a apontar, o que foi repercutido pela imprensa depois, que, ao contrário do PNLD 2019, que “listava uma série de observâncias de princípios éticos — incluindo itens como a proibição de veicular estereótipos e preconceitos de condição socioeconômica, regional, étnico racial, de gênero e de orientação sexual e ainda de abordar a temática de gênero segundo uma perspectiva sexista, não igualitária, inclusive no que diz respeito à homo e transfobia ou de desconsiderar o debate acerca do compromisso educacional com a agenda de não-violência contra a mulher” —, o edital de 2023 apresenta deveres como “promover positivamente a imagem do Brasil e a amizade entre os povos e os valores cívicos, como respeito, patriotismo, cidadania, solidariedade, responsabilidade, urbanidade, cooperação e honestidade”.
Defensores do governo podem até tentar argumentar que todos esses enfrentamentos, embora não especificados, incluem-se nos itens em que o novo edital estabelece que a obra deve estar “livre de preconceitos ou discriminações de qualquer ordem” e “isenta de qualquer forma de promoção da violência ou da violação de direitos humanos”. As alterações, porém, não se restringem às questões de gênero, contra as quais os ultraconservadores que apoiam Bolsonaro e que ajudaram a elegê-lo já vociferavam bem antes de ele ser eleito, até mesmo no debate do Plano Nacional de Educação (PNE). Tampouco as mudanças representam um retrocesso apenas para as lutas identitárias.
Entre seus “princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social”, os quais as obras devem supostamente respeitar, está “Abster-se de vieses político-partidários e ideológicos”, ignorando que, se é verdade que a educação não deve ser partidária — no que toca especificamente as legendas existentes no processo eleitoral —, por outro lado, não há viés que não seja político e/ou ideológico e que é precisamente esse fato que faz da educação uma educação crítica.
Sintomático notar que o mesmo edital que determina que as obras que nele se cadastrem se abstenham ideologicamente é aquele que inclui “patriotismo”como princípio ético a ser observado. Ora, não é esse o mesmo conceito no qual se assenta o slogan do governo Bolsonaro? Também é esse mesmo edital que, a despeito de afirmar que cada projeto integrador deve sugerir atividades que possibilitem a colaboração e protagonismo do estudante na construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva”, exclui quaisquer referências à democracia do restante do texto.
Até o PNLD 2019, lançado dois anos antes, o edital falava na “observância de princípios éticos e democráticos necessários à construção da cidadania, ao respeito à diversidade e ao convívio social republicano”. Ao retirar, contudo, o adjetivo “democráticos” da frase, mesmo mantendo o restante intacto, o governo já altera todo o seu sentido e torna explícita sua propensão autoritária. Afinal, convívio “republicano” sem democracia é, no frigir dos ovos, uma ditadura, exatamente como aquela que acossou o país de 1964 a 1985 e que o presidente já deu mostras de idolatrar tanto.
*Madalena Guasco Peixoto é coordenadora da Secretaria-Geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee e diretora da Faculdade de Educação da PUC-SP