Em nome da memória, da verdade e da justiça
Golpe não se comemora; repudia-se. Em nome da verdade, da memória e da justiça. Em nome da democracia. Em nome da educação
Por José de Ribamar Virgolino Barroso*
Há cerca de um ano, neste mesmo espaço, iniciamos nosso debate afirmando que se há algo que democracia e educação têm em comum, além do fato de uma não prescindir da outra, de não existir em plenitude sem a outra, é a profunda ameaça que paira sobre ambas no Brasil atual.
Tratou-se, na época, de uma constatação, baseada no quanto questões como a Reforma do Ensino Médio, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a tentativa do Ministério da Educação (MEC) de ferir a autonomia universitária ao questionar a legalidade dos cursos sobre o golpe de 2016, o processo de financeirização do ensino, a desprofissionalização do magistério e a censura e a criminalização de docentes orquestradas pelo movimento Escola Sem Partido estavam — e continuam — relacionadas às mesmas forças golpistas e às mesmas consequências nefastas do governo ditatorial de 1964 a 1985 sobre a educação.
Em outras palavras, tudo isso — o controle da administração universitária, a perseguição a professores, o comprometimento da qualidade da educação pública (aliado à ruptura de um modelo econômico de distribuição de renda e ao desemprego e ao arrocho salarial), a perda de qualidade na formação dos educadores, a mudança curricular (com a retirada de disciplinas cruciais para o desenvolvimento da reflexão crítica) — poderia descrever tanto o lá e então, para usar um termo da obra teórica de Bertolt Brecht, quanto o aqui e agora.
Além de uma constatação, porém, aquele foi também um prognóstico de que os problemas poderiam ficar piores. E ficaram. Só para manter o tema da relação entre democracia e educação em pauta, fomos confrontados recentemente a duas estarrecedoras iniciativas do governo Bolsonaro, entre os tantos estarrecimentos que ele provoca.
Uma delas foi a criação de uma comissão para avaliar — o verbo sendo, aqui, um grande eufemismo — as questões que comporão o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), numa trapalhada que acabou levando, no último dia 27, ao pedido de demissão do coordenador responsável pela prova, Paulo César Teixeira.
A outra, que talvez tenha chocado mais a sociedade pelo grau de explicitação, mas que se forja na mesma ignorância e má-fé da primeira foi, a determinação do dito presidente, dada pelo porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, de que Ministério da Defesa faça as “comemorações devidas” pelos 55 anos do golpe que deu início à ditadura civil-militarque durou 21 anos no país, marcada por extrema censura, perseguição política, cassação de direitos civis, torturas — tanto em órgãos policiais oficiais quanto em centros de repressão clandestinos —, assassinatos, ocultações de cadáver.
No caso do Enem, o que existe é uma tentativa deliberada, ainda que finjam que não, de censurar e destorcer o conteúdo das questões, bem como destruir o exame enquanto política de democratização do acesso ao ensino superior. Enquanto isso, no caso do crime contra a história e a memória brasileiras que representa a celebração do golpe de 1° de abril de 1964 (cuja data anteciparam para o dia 31 de março para fugir da pecha do “dia da mentira”), escancara-se o outro motivo para a suposta “desideologização” da prova de avaliação do ensino médio: a imposição da ideologia conservadora e reacionária desse governo, com seus discursos de ódio e sua apologia à tortura, em nosso sistema educacional.
Golpe não se comemora; repudia-se. Em nome da verdade, da memória e da justiça. Em nome da democracia. Em nome da educação.
*José de Ribamar Virgolino Barroso é coordenador da Secretaria de Finanças da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee