Espanha: novas regras para as relações de trabalho
O neoliberalismo de Temer e Bolsonaro se inspirou nas mais de 50 alterações na regulação laboral realizadas pela Espanha nos últimos 40 anos, sendo as de 1994 e de 2011/2012 as mais amplas. Essas medidas visaram à extensa flexibilização dos contratos laborais, estimularam o trabalho temporário e de curta duração, facilitaram demissões, deram prevalência aos acordos por empresa (inclusive para reduzir salários, direitos e condições de trabalho), atacaram os sindicatos e fragilizaram as negociações. Reduziram o custo do trabalho com a promessa de crescimento econômico e emprego.
Clemente Ganz Lúcio*
No Brasil, o mesmo ocorreu em 2017, com a autorização da terceirização sem limites e a ampla Reforma Trabalhista.
Resultados observados lá e aqui: desemprego alto, geração de ocupações precárias, temporárias, inseguras e de curta duração, arrocho salarial, redução da massa de rendimentos do trabalho, fragilidade do poder de consumo das famílias, fraca demanda, desigualdade social e anemia da economia.
Depois de 9 meses (março a dezembro de 2021) de negociação tripartite envolvendo o governo espanhol, as entidades sindicais (CCOO e UGT) e empresarias (CEOE e Cepyme), chegou-se a um acordo ambicioso, que mudou a trajetória do sistema de regulação laboral e de relações de trabalho na Espanha. Esse acordo foi referendado pelo Conselho de Ministros e, em 25 de janeiro de 2022, o Congresso de Deputados da Espanha aprovou o Decreto 32/2022.
Destaque-se que esse acordo vem na continuidade de outras importantes iniciativas tomadas em 2021 pelo governo espanhol como, por exemplo: o aumento do salário mínimo que atualmente está em 1.000 euros pagos em 14 parcelas, a equiparação de direitos trabalhistas para os ocupados em home office/teletrabalho, políticas de formação, inserção profissional e para a geração de emprego, de inspeção do trabalho, com prioridade para combater a precarização do trabalho entre os jovens, de igualdade salarial entre homens e mulheres, e outras importantes medidas.
O novo acordo social tripartite espanhol é resultado de processo de negociação para formular respostas, a partir das propostas das partes interessadas, às mudanças que ocorrem no mundo do trabalho, relacionando-as com o projeto, estratégias e perspectivas de desenvolvimento daquele país.
Destaque-se que a base da mudança se assenta em política de desenvolvimento produtivo e socioambiental que tem o objetivo de gerar emprego de qualidade para todos, como elemento estruturante da política de incremento da produtividade de toda a economia. Aposta-se na relação virtuosa entre inovação, tecnologia e trabalho e na construção dos mecanismos de partilha dos ganhos econômicos alcançados, gerando crescimento da renda do trabalho, aumento da massa salarial e sustentação da demanda oriunda do consumo das famílias.
O fundamento considera que a produtividade, para além dos fatores tecnológicos e de inovação, entre outros, será incrementada pela qualidade das condições de trabalho que recepciona a força laboral mobilizada, pela segurança gerada pelos vínculos laborais de prazo indeterminado, pela política de proteção dos empregos, pelo investimento em formação profissional contínua, refletindo na segurança que trabalhadoras e trabalhadores terão para projetar o futuro, organizar o orçamento familiar e investir na educação dos filhos.
Para promover a partilha do resultado econômico do trabalho de todos há que se ter sindicatos fortes, de ampla base de representação, com capacidade de construir acordos coletivos setoriais que sejam duradouros, renováveis, bem como promover proteção efetiva e plena para todos que estão inseridos em ocupações mediadas por novas tecnologias dos aplicativos e plataformas, bem como para os que estão na informalidade ou terceirizados.
Esse novo acordo, marco do sistema espanhol de relações de trabalho e de direitos laborais tem sua história marcada e sustentada pelo diálogo social mobilizado pelo governo. Trata-se claramente de escolha política essencial: fazer transformações cujos conteúdos e trajetórias sejam fruto de construção coletiva e compartilhada entre os atores sociais, neste caso, empresários e trabalhadores.
O governo fez escolha política que visa renovar e fortalecer a própria democracia e suas instituições e, com essas, construir vínculos de confiança para pactuar compromissos com a implementação das transformações enunciadas no projeto do governo e formuladas no espaço das diferenças e divergências entre os interesses representados.
Método de concertação que se assenta no princípio da lealdade com o espaço de diálogo, com o reconhecimento e respeito pelo outro que é diferente e, por vezes, divergente. Metodologia de construção propositiva que tem como base o aporte do conhecimento técnico e científico, para compartilhar diagnósticos e formular prospecções e proposições, construindo pela mediação do debate político os campos de possibilidades para caminhos, objetivos e metas, para fazer escolhas e planejar o processo de construção econômico, social e político.
A reforma recoloca o protagonismo dos sindicatos no jogo social e econômico para disputar a regulação das condições de trabalho e dos salários, valorizando as negociações coletivas setoriais e impedindo que acordos por empresas reduzam os patamares fixados setorialmente. A negociação coletiva e a boa-fé das partes envolvidas são fortalecidas com a prorrogação dos contratos coletivos até que novo seja firmado.
A fragmentação da organização do sistema produtivo em complexas redes de fornecedores terceiros tem resposta sindical afirmativa, garantindo aos sindicatos o direito de representação de todos os trabalhadores com a ampliação do âmbito de negociação e de cobertura dos acordos para os serviços terceirizados na cadeia produtiva das empresas.
Outra diretriz estruturante da nova legislação é a concepção da qualidade do emprego, do direito e da dignidade da pessoa que vive do trabalho — o combate à cultura da temporalidade como predominante nas formas de contratação com graves impactos sobre as taxas de rotatividade. A reforma orienta o sistema produtivo para gerar empregos estáveis e, portanto, abandonar a flexibilidade demandada pelas empresas com a geração de precarização dos postos de trabalho e vulnerabilidade na condição de vida dos trabalhadores.
Para isso, a diretriz base da reforma afirma que o contrato de trabalho de prazo indeterminado é a forma prevalente de inserção laboral. De outro lado, coloca limites ao contrato de prazo determinado, em especial ao de curtíssima duração (poucos dias, menos de uma semana), eliminando a possibilidade dos contratos de empreitada ou de serviço que foram a forma mais perversa do contrato de curtíssima duração. Para os setores com sazonalidade cíclica recorrente, regula o contrato fixo descontínuo.
Dá prioridade aos jovens, ao regular de maneira mais equânime os direitos trabalhistas vinculados ao primeiro emprego e aos contratos de experiência.
A busca da estabilidade do emprego enveredou para instrumentos que permitem que as empresas enfrentem crises sem demitir. Aproveitando a experiência de enfrentamento da pandemia, renovou-se o mecanismo de ajuste temporário de emprego, possibilitando a redução da jornada ou suspensão do contrato com a preservação da renda do trabalho, materializado no Erte (Expediente de Regulação Temporária de Emprego).
A experiência espanhola de diálogo social recupera para o campo político a atividade essencial de mediação de interesses, de maneira a alçá-los à conformação negociada do interesse coletivo e do bem comum.
Trata-se também de recolocar a democracia participativa no centro dinâmico da renovação da vida política e das instituições, afirmando a finalidade de processar pactuações capazes de firmar as regras do jogo social e das relações sociais de produção econômica.
(*) Sociólogo, assessor do Fórum das Centrais Sindicais, consultor, ex-diretor técnico do Dieese (2004-2020).