Ex-diretor do Inpe: pandemia exaltou o valor da ciência contra o negacionismo

Ricardo Galvão é um dos pesquisadores brasileiros mais reconhecidos no mundo e foi exonerado por Bolsonaro

Esta sexta-feira é o Dia Mundial do Meio Ambiente, comemorado todo o ano pela ONU em 5 de junho. Desta vez, a data é marcada pelo impacto da pandemia de coronavírus, que acabou acelerando reivindicações antigas dos ambientalistas. Menos consumo, menos transportes, mais prioridade à produção local. Mas quais dessas mudanças vieram para ficar?

“Nenhum de nós pode pensar que vai pegar o seu ônibus para o futuro independente dos outros, e não só estamos interligados como também temos deficiências e mostramos que estamos fracos sob vários aspectos”, avalia o físico Ricardo Galvão, professor da USP e ex-diretor do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Um dos pesquisadores brasileiros mais reconhecidos no mundo, apontado pela revista Nature como um dos 10 mais influentes de 2019 – mas exonerado pelo presidente Jair Bolsonaro –, ele observa ainda que a Covid-19 evidenciou a importância da valorização da ciência. “Três ou quatro meses atrás, o negacionismo avançava no mundo todo, mas as pessoas estão voltando um pouco atrás. Toda a vez que temos um governo tosco, medíocre na sua formação e muito rudimentar na formação de políticas, o país vai sofrer.”

RFI: Muito tem se falado sobre o fato de essa crise, por mais dramática que seja sob o ponto de vista sanitário e humano, ser também uma ocasião histórica para repensar o nosso modo de vida. Poderíamos incluir uma série de recomendações mais ecologistas no nosso cotidiano e no meio empresarial. Como o senhor vê o futuro pós-pandemia, deste ponto de vista?

Ricardo Galvão: Essa avaliação é correta. Creio que esta crise nos tornou mais conscientes de que o mundo todo está ligado. Nenhum de nós pode pensar que vai pegar o seu ônibus para o futuro independente dos outros, e não só estamos interligados como também temos deficiências e mostramos que estamos fracos sob vários aspectos. Vamos ter de mudar muito a maneira de pensar o futuro.

O primeiro ponto importante é nos conscientizarmos que uma evolução, neste século ainda, que seja sustentável e socialmente justa, não pode mais ser baseada num capitalismo predatório. Temos de ter consciência de que não podemos mais ficar quietos quando vemos a degradação do meio ambiente.

Tem uma situação muito clara no Brasil. A evolução do coronavírus na Amazônia está muito rápida, com Manaus bastante afetada. Infelizmente, neste ano também, tivemos um maior aumento do desmatamento, e em época de chuvas. Logo virá a época de seca e nós estamos prevendo que, se o governo não fizer nada, haverá um aumento violento dessas queimadas na Amazônia, que trazem doenças respiratórias, como sempre ocorreu. Pelas previsões que estão fazendo os cientistas brasileiros, é muito provável que o pico do coronavírus se sobreponha ao pico do aumento das queimadas. As consequências serão sérias para os sistemas de saúde da região.

No Brasil, a pandemia traz pelo menos dois desafios ambientais graves: o aumento do desmatamento da Amazônia, que se acelera à margem do problema da Covid-19, e a infecção de comunidades indígenas pelo vírus. Mais de 1,8 mil indígenas já teriam sido contaminados pela Covid-19. Tudo isso acontece sob um governo que não esconde o desprezo pelos temas ambientais. O quanto 2020 poderá terminar com um balanço trágico nessas duas questões?

Infelizmente, o cenário é bastante sombrio. Não só para o Brasil, mas também o impacto do que está acontecendo para a humanidade. Sabemos a importância da Amazônia para a biodiversidade, o meio ambiente, o regime de águas, etc. O governo, com seu discurso, estimulou a invasão de terras indígenas. No ano passado, quando eu ainda era diretor do Inpe, em abril nós monitorávamos constantemente o desmatamento e as invasões de terras indígenas. Não foi dada a devida atenção para isso e vimos, agora, no Estado do Pará, perto da cidade de Itaituba, invasões enormes de terras indígenas.

Não se tem nenhum controle dessas pessoas: estão transmitindo doenças para os indígenas, como os colonizadores transmitiram quando conquistaram a América. A história está voltando outra vez. A humanidade deveria se voltar para esse assunto e colocar uma certa pressão no governo brasileiro para que isso seja controlado.

O senhor foi exonerado do Inpe por insistir no valor dos dados científicos do instituto sobre o desmatamento. Agora vemos, novamente, o governo federal desprezar a ciência na gestão dessa crise do coronavírus. Conforme a sua experiência, a ciência já foi tão contestada quanto agora?

Já houve várias ocasiões em que a ciência foi contestada fortemente. Quando Hitler começou a demitir cientistas judeus, um grande físico que foi prêmio Nobel, criador da mecânica quântica, foi até ele para solicitar que não os demitisse. A resposta do Hitler foi aterrorizadora. Ele simplesmente disse que a política alemã não seria alterada. Se a expulsão dos cientistas judeus significasse um retrocesso da ciência alemã, então a Alemanha ficaria muitos anos sem ciência.

Tivemos, na História, muitos casos desses, que nos fazem infelizmente reviver. Toda a vez que temos um governo tosco, medíocre na sua formação e muito rudimentar na formação de políticas, o país vai sofrer. Qualquer país do mundo vai sofrer. Nós não teremos desenvolvimento econômico neste século sem ser com uma base sólida no avanço da ciência.

Nesta semana mundial do Meio Ambiente, 700 personalidades europeias assinaram um manifesto para pedir que a retomada da economia seja uma retomada verde. Vemos que já há mais pressão nesse sentido sobre as indústrias, produtoras de energia e tantos outros setores que, pela poluição, aumentam o aquecimento do planeta. O senhor acredita em resultados concretos, pós-pandemia?

Creio que algumas medidas mais objetivas têm que ser tomadas. O discurso dos governantes têm sido na direção correta, mas as propostas têm sido muito débeis.

Por exemplo, é possível que os países se unam, até mesmo sob a égide da ONU, e criem um selo verde, para que todos os produtos produzidos de florestas tropicais tenham a aprovação de um consórcio internacional que vá na direção de reduzir impostos, facilitar a venda no exterior. Essas medidas, que têm impacto econômico, não estão sendo tomadas, e são medidas fáceis.

Muito da exploração da Amazônia, da mineração, etc, é feita por empresas estrangeiras no país, e os países são conscientes disso. Eles têm que ser muito mais pró-ativos em medidas concretas, que mostrem que há ganhos econômicos explorando a biodiversidade das florestas tropicais de uma forma sustentável.

Que mudanças o senhor acha vieram para ficar? Muitas pessoas refletem sobre o consumo excessivo ou sobre usar mais bicicleta, duas medidas que acabamos obrigados a fazer por conta da quarentena. Comprar no comércio local, já que estamos com restrições de deslocamento, ou sobre a pertinência de tirarmos férias em lugares cada vez mais distantes?

Certamente já está tendo esse efeito. Acho que algo que já é positivo é que, três ou quatro meses atrás, quando parecia que o negacionismo avançava no mundo todo, as pessoas comuns estão voltando um pouco atrás. Pelo coronavírus, começaram a ver a importância e a relevância da ciência e a se conscientizar de que não podemos continuar explorando a nossa mãe Terra dessa forma que exploramos, usando de uma forma inconsciente o que ela nos oferece.

Tenho 72 anos e há 62 eu só uso bicicleta, praticamente não uso carro. Além disso, creio na importância que a sociedade vai dar ao olhar produtos e verificar se eles não tem determinados elementos químicos nocivos ou são produzidos de uma forma sustentável. Esse vai ser o grande impacto.

Carta Capital

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