Expansão da EaD no ensino superior prejudica a qualidade da formação
Por Gabriel Grabowski
O Censo do Ensino Superior (ES) de 2022, divulgado pelo Inep/MEC em outubro passado, revelou e confirmou um crescimento excessivo da Educação a Distância (EAD) no Brasil. Excessiva porque demonstra que o número de ingressantes no ensino superior na modalidade EAD foi o dobro dos ingressantes na modalidade presencial e, nesta perspectiva, deve superar os ingressos presenciais brevemente. Em nenhum outro país tamanha expansão existe.
Preocupado e pressionado, o MEC (Ministério da Educação) abriu Consulta Pública até 20 novembro 2023 para revisar os critérios de credenciamento de Instituições de Ensino Superior (IES) para a modalidade a distância e estabelecer limites à oferta de cursos da área de saúde na modalidade de educação a distância (EaD). A motivação para revisar a regulação da oferta foi intensificada após a publicação do relatório do GT EaD que analisou os cursos de Direito, Enfermagem, Odontologia e Psicologia nesta modalidade virtual.
O Sinpro/RS, com o apoio da Federação dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (FeteeSul), Sinpro/Noroeste e Sinpro/Caxias, também promoveu o V Seminário Nacional Profissão Docente e debateu o crescimento dessa modalidade de ensino nas mãos das empresas de educação e os impactos dessa expansão na qualidade do ensino e nas condições de trabalho dos professores.
Desde 2004, quando se instituiu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), por meio da Lei nº 10.861, as IES, os Cursos Superiores de Graduação e os Estudantes (Enade) são avaliados. Porém, o exercício das funções de regulação, supervisão e avaliação das instituições e dos cursos superiores de graduação e pós-graduação do sistema federal de ensino são fixadas por decreto presidencial.
Em 2017, o então presidente Michel Temer, atendendo pressão e interesses das IES privadas sem fins lucrativos, emitiu o Decreto nº 9.057 flexibilizando a regulamentação, a supervisão e avaliação. Naquele momento, ao analisarmos o referido decreto, criticamos a nova regulação como sendo irresponsável. Atualmente, não somente confirma-se tal irresponsabilidade, como o excesso de cursos e matrículas em EaD coloca em risco a qualidade do sistema federal de ensino superior brasileiro formando precariamente milhões de estudantes e profissionais. Logo após este decreto, o número de polos em EaD das IES expandiu-se 6.583 para 15.394, sem necessidade de supervisão e avaliação in loco nestas unidades.
Chegamos agora em 2022 a condição de que apenas cinco instituições privadas concentram 27% de todos os alunos do ensino superior no Brasil. Dos 9,4 milhões de matriculados nos cursos de graduação do país em 2022, mais de 2,5 milhões estudavam nestas cinco instituições, sendo 91% das matrículas na modalidade EaD. Tamanha concentração, com instituições que investem na bolsa de valores, é um risco aos estudantes e a qualidade do ensino superior brasileiro.
Juntas, a Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera (do grupo Cogna), o Centro Leonardo da Vinci, a Universidade Cesumar, a Universidade Estácio de Sá e a Universidade Paulista detêm mais alunos que as 312 instituições públicas de ensino superior no Brasil, que possuem ao todo 2,07 milhões de estudantes
Esta concentração de matrículas em EaD em tão poucas Instituições de Ensino Superior (IES), privadas, com fins lucrativos, sem pesquisa e extensão, com pouca atividade formativa, sem articulação teórico-prática, com turmas de até 2 mil alunos, inviabiliza um trabalho de qualidade do professor. Nas IES pequenas, também, são atribuídas diversas disciplinas a um único tutor com baixo salário e formação específica.
O número de ingressos em cursos de graduação a distância tem aumentado substancialmente nos últimos anos, tendo ultrapassado a marca histórica de 3 milhões de novos estudantes em 2022. Por outro lado, o número de ingressantes em cursos presenciais vem diminuindo desde 2014. Em 2021, foi registrado o menor valor dos últimos 10 anos. Em 2022, foi registrado uma quebra da tendência e o número de ingressantes em cursos presenciais voltou a subir um pouco.
A taxa de desistência de estudantes matriculados nesta modalidade em IES com fins lucrativos chegou em 2019 a 58,19%, enquanto que nas IES sem fins lucrativos foi de 51,08. A avaliação de cursos em EAD e o desempenho de estudantes no ENADE é negativa, preponderam os conceitos 1 e 2, ou seja, reprovados. Porém, estas instituições permanecem funcionando mesmo não atendendo o mínimo de qualidade estipulado pelo Sinaes, ou seja, conceito 3, 4 ou 5.
Na contramão da expansão das matrículas e da EaD, o número de docentes em atuação na educação superior de graduação, na rede particular, vem diminuindo. Em 2015, a rede privada possuía 190.989 professores e, em 2022, baixou para 151.425 (quase 40 mil a menos). Enquanto isto, o número total de matrículas no ensino superior continua subindo e a participação das instituições particulares já absorve 78% do total de matrículas. Enquanto isto, o número de professores nas redes públicas continua crescendo e chega a 173.378, para atender um total de 22% matrículas, ofertando ensino, pesquisa e extensão com maior qualidade.
O que está em discussão não é somente o uso de tecnologias, a modalidade de EaD na educação superior e a possiblidade de “jovens trabalhadores” poderem cursar uma formação superior acessível, como alegam os defensores da modalidade EaD. O que precisa ser discutido e questionado é o excessivo uso em escala tão elevada no Brasil, considerando nossa breve tradição na educação, com enormes desigualdades sociais, econômicas e tecnológicas, nos constituindo na maior rede ofertante do mundo de ensino na modalidade de EaD. Deve-nos alertar, que esta oferta, dirige-se para jovens, majoritariamente, trabalhadores, pobres, sem tempo e espaço para a dedicação aos estudos, em instituições privadas mercantis. Não há país nas américas e nem no mundo com uma taxa tão elevada de educação a distância como a brasileira.
A Unesco publicou, em julho de 2023, o Relatório Global de Monitoramento da Educação 2023 abordando o tema da Tecnologia na Educação: Uma ferramenta a serviço de quem? Trata-se de um alerta, principalmente, sobre o uso excessivo, intensivo e como as ferramentas tecnológicas estão fazendo parte do cotidiano das salas de aulas (sejam presenciais ou virtuais), bem como as plataformas digitais ameaçam o papel das universidades e representam desafios regulatórios e éticos.
O historiador, arqueólogo e professor da UFRGS, Francisco Marshall, diz que a cegueira brasileira funda-se na opção multissecular de não se reconhecer na educação um valor social fundamental. Houve e há esforços e resultados notáveis na luta pela educação, mas esses lutam contra forças hostis, causa de nossa permanente crise educacional. Uma parte da sociedade é contra a educação, e disso decorrem salários vergonhosos do professorado, a degradação da escola pública e os recentes ataques a educadores e instituições de ensino. Ainda pior, há hoje políticas públicas decididas a acabar com o belo modelo da educação.
Já o professor e pesquisador Júlio C. G. Bertolin, autor do livro Qualidade em Educação Superior, alerta que esta EAD praticada no Brasil dilapida o que as políticas de democratização ajudaram a melhorar no sistema de ensino. Esse contexto coloca em pauta o importante debate sobre a qualidade em educação superior, uma vez que, na emergência da sociedade do conhecimento, os graduandos necessitam de uma formação integral – tal qual a antiga ideia da Paideia Grega –, com capacidade de proporcionar uma educação que forme indivíduos que, além de competentes, criativos e inovadores, sejam críticos, empoderados, com capacidade de agência, cosmopolitas e tolerantes.
Este Brasil anti-paidéia, impõe, que a formação inicial e continuada de professores seja quase que exclusivamente em EAD. Os cursos superiores de formação de professores (as licenciaturas) já atingem 64% de suas matrículas em EAD e os ingressos nesta modalidade, em 2022, corresponderam a 81%. Isto ocorre só no Brasil. Nas IES privadas as matriculas em licenciaturas são 88% em EAD, enquanto nas IES públicas, inversamente, a maioria é presencial: 81,6%. Dentre os cursos de licenciatura, prevalece o curso de Pedagogia com quase a metade dos alunos matriculados (49,2%) ou pouco mais de 821 mil alunos matriculados. Destes, 650.164 estudantes cursam Pedagogia em EAD, sem formação teórico-prática, sem estágio em salas de aula, que irão trabalhar na educação infantil e alfabetizar nas séries iniciais do ensino fundamental.
O próprio ministro da educação Camilo Santana se posicionou no sentido de que “Precisamos garantir que os cursos de pedagogia e licenciatura devem ser focados no presencial. […] Um professor não pode ser formado sem a experiência prática de sala de aula, isso não existe.” Sabe-se que isso vai contra os interesses de grandes grupos educacionais, que tem uma fonte de lucro fácil e gigantesco, e quem perde é o país e o povo brasileiro.
O debate acadêmico sobre o cenário atual da Educação Superior no Brasil, segundo os pesquisadores Artur Jacubus, Rosangela Fritsch e Ricardo Vitelli (Unisinos), pode ser expresso pelas metamorfoses e processos de mercantilização da Educação Superior no mundo e no Brasil como consequências e reflexos do capitalismo global, do projeto neoliberal e do protagonismo do Estado; pelas influências das políticas educacionais mundiais protagonizadas por organismos internacionais e multilaterais e pelo panorama da expansão e das tendências da Educação Superior Brasileira marcado pela fragmentação, flexibilização, heterogeneidade e diversificação de conceitos, configurações e modelos institucionais no âmbito do projeto societário capitalista neoliberal global.
A educação sempre foi e continuará sendo essencial na formação humana e par ao desenvolvimento de uma coletividade ou nação. O Brasil praticou, historicamente, a dualidade estrutural na educação: formação acadêmica sólida para os filhos das elites e profissionalização de mão-de-obra barata para os filhos dos trabalhadores. A EaD reproduz está lógica, pois é precária e destinada a estes jovens trabalhadores.
A educação, seja básica ou superior, exige tempo e espaços organizados e estruturados, professores pesquisadores bem formados, com tempo integral presencial, mediados por tecnologias inclusivas, em espaços públicos comuns, para desenvolverem aprendizagens significativas dos estudantes para a vida de todos em sociedade justas.
Gabriel Grabowski é professor, pesquisador e escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.