Fernanda Montenegro: 95 anos de compromisso ético e 80 em defesa da arte e da cultura
A dama da dramaturgia brasileira chega aos 95 anos de idade e 80 de carreira ativa e influente, disputando prêmios internacionais e projetando a arte brasileira para fora e para dentro, espelhando o Brasil que defende para todos.
Nesta quarta-feira, 16 de outubro, Fernanda Montenegro completou 95 anos de idade e 80 de carreira, uma marca que simboliza muito mais do que a longevidade. Reverenciada como a grande dama da dramaturgia brasileira, sua trajetória pessoal e profissional está entrelaçada com a história do teatro, cinema e televisão do país, além de refletir um profundo compromisso com a defesa da arte, da cultura e das liberdades democráticas ao longo de oito décadas. Além de sua excelência artística, sua influência vai além dos palcos e telas, destacando-se também por sua importância política e cultural para o país.
Uma trajetória de personagens memoráveis
Nascida Arlette Pinheiro Esteves da Silva, em 1929, Fernanda Montenegro construiu um legado que transcende seu nome de batismo. A carioca Arlete começou sua carreira aos 15 anos como locutora e radioatriz na Rádio MEC. Em um tempo em que a imagem ainda não tinha a força que hoje exerce na sociedade, foi através do som que Fernanda começou a cativar o público. Em 1953, ao se casar com o ator e diretor Fernando Torres, passou a se chamar Arlette Pinheiro Monteiro Torres, e, juntos, formaram uma das parcerias mais sólidas e influentes da história cultural brasileira.
Fernanda Montenegro coleciona papéis inesquecíveis que refletiram questões sociais e humanas profundas. Na televisão, seus personagens em novelas como Baila Comigo(1981), Guerra dos Sexos (1983) e Belíssima(2005) tornaram-se icônicos. Ela interpretou desde a sofisticada Sílvia Toledo Fernandes, passando pela vilã Bia Falcão, uma das mais marcantes da teledramaturgia brasileira.
Sua atuação em novelas, como Babilônia(2015), ao interpretar Teresa, uma mulher idosa em um relacionamento lésbico, foi um exemplo de como ela nunca fugiu de papéis que pudessem gerar impacto social, desafiando tabus e gerando um importante debate sobre diversidade sexual em horário nobre. A polêmica em torno do beijo trocado por sua personagem e a de Nathalia Timberg representou um divisor de águas na discussão sobre a visibilidade LGBTQIA+ e o envelhecimento na mídia brasileira.
Impacto político e cultural
Fernanda Montenegro transcende a atuação com um forte posicionamento sobre questões políticas e sociais. Sempre discreta, mas firme em suas convicções, a atriz tem se mostrado uma voz ativa em defesa da democracia, da liberdade de expressão e da cultura. Ao longo dos anos, posicionou-se contra censuras, apoiou movimentos em prol da valorização das artes e do teatro, e criticou retrocessos no financiamento de projetos culturais. Sua figura pública não se limita à atuação artística; ela se tornou um símbolo de resistência cultural em tempos de adversidade.
Com Fernando Torres, a relação extrapolou o lar e foi para os palcos. Em 1950, Fernanda estreou no teatro profissional com Alegres Canções na Montanha, e, pouco tempo depois, em 1959, o casal fundou o Teatro dos Sete, uma companhia que trouxe ao público importantes montagens, como O Mambembee Com a Pulga Atrás da Orelha. Essa fase foi essencial para consolidar a qualidade do teatro brasileiro, em um momento em que a arte se mostrava uma forma de resistência às tensões políticas da época.
Durante os períodos mais sombrios da ditadura militar no Brasil, Fernanda não hesitou em apoiar a produção de peças e filmes que desafiavam o regime e suas incompreensíveis regras de censura, participando de obras críticas que defendiam a liberdade de pensamento.
Ainda que Fernanda se mantenha discreta sobre sua vida pessoal, sua postura política ao longo das décadas nunca foi passiva. Durante o regime militar, nos anos 1960 e 1970, Fernanda Montenegro foi uma das artistas que ousaram atuar em espetáculos que desafiavam a censura. Na peça Cristo Proclamado, por exemplo, a companhia Teatro dos Sete abordou questões religiosas e existenciais, tratando temas considerados sensíveis para o regime da época.
Nos últimos anos, em um contexto político em que as artes voltaram a ser atacadas e marginalizadas, ela tem sido uma defensora vocal da importância das artes em tempos de crise, destacando o papel fundamental da cultura na formação de uma sociedade crítica e informada. Fernanda continuou a usar sua voz, posicionando-se contra retrocessos políticos, especialmente em momentos em que a censura e o ataque às artes voltaram ao debate público.
Seus filhos, Claudio Torres e Fernanda Torres, seguiram carreiras brilhantes no cinema, teatro e televisão. Claudio é um dos mais importantes diretores e roteiristas do cinema nacional, enquanto Fernanda Torres é uma atriz de renome e destaque tanto na TV quanto nos palcos. Recentemente, Fernanda Montenegro e sua filha atuaram juntas na série Amor e Sorte (2020), ao lado do neto Joaquim, numa produção que, gravada durante a pandemia, mostrou a resiliência e a união familiar no enfrentamento de tempos desafiadores.
Sucesso internacional e legado
No cinema, Fernanda Montenegro consolidou seu nome internacionalmente com o filme Central do Brasil (1998), onde sua interpretação de Dora, uma professora aposentada que ajuda um menino a encontrar o pai, rendeu-lhe uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz, tornando-se a primeira latino-americana a receber tal honraria. Essa conquista colocou o Brasil no mapa da indústria cinematográfica global, contribuindo para o reconhecimento internacional do cinema nacional.
Embora o prêmio da Academia de Hollywood não tenha vindo, o reconhecimento global veio em forma de outros troféus, como o Urso de Prata no Festival de Berlim e o prêmio de Atriz do Ano da Associação Norte-Americana de Críticos de Cinema. Em 2013, Fernanda conquistou também o Emmy Internacional por sua atuação em Doce de Mãe, reafirmando sua versatilidade e vigor artístico.
Além dos prêmios, sua atuação no filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, leva novamente o nome do Brasil à disputa por uma indicação ao Oscar, desta vez na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, destacando-se por seu talento atemporal e resiliência criativa. Fernanda Torres, sua filha e protagonista do filme, pode ser indicada como melhor atriz. Este talvez seja o trabalho mais politizado das duas, ao mostrar as entranhas do absurdo da ditadura civil-militar na vida dos seus melhores cidadãos.
Relevância social
O reconhecimento pelo seu trabalho vai além dos prêmios e das telas. Em 2022, Fernanda Montenegro foi eleita imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), ocupando a cadeira 17, uma conquista que solidifica seu legado não apenas como atriz, mas como uma intelectual que ajudou a moldar o imaginário cultural do Brasil.
Fernanda não apenas representou o Brasil no exterior, como também promoveu discussões importantes no âmbito nacional. Ao interpretar personagens como Dona Picucha em Doce de Mãe (2014), trouxe à tona debates sobre envelhecimento, relações familiares e o papel das mulheres na sociedade.
Sua carreira vai além do entretenimento: Fernanda Montenegro tem sido uma defensora das causas feministas e dos direitos humanos, usando sua plataforma para amplificar vozes e discutir temas relevantes para a sociedade contemporânea. Sua atuação como Madrasta em Hoje é Dia de Maria (2005) e Nossa Senhora em O Auto da Compadecida(1999) trouxe camadas de complexidade a histórias tradicionais, ao mesmo tempo que reafirmava sua capacidade de lidar com temas populares de maneira inovadora.
Um ícone insubstituível
Aos 95 anos, Fernanda Montenegro continua sendo uma referência não apenas no meio artístico, mas também como uma figura de resistência e defesa da cultura nacional. Sua trajetória artística é também um reflexo de sua importância política: uma mulher que usou sua voz e sua arte para lutar por um país mais justo, democrático e culturalmente rico.
Fernanda Montenegro é mais do que uma atriz. Ela é um ícone da cultura brasileira, cujo legado permanecerá vivo por muitas gerações.