Fernanda Saforcada: A privatização educativa se realiza também com fins ideológicos e políticos
Nesta segunda parte de uma entrevista à CLADE, a pesquisadora analisa em profundidade os motivos e as consequências da privatização da educação superior na região.
“Existe um interesse estratégico e político em interferir na educação, e uma das maneiras de fazer isso é retirar a educação do Estado”, explica a pesquisadora argentina Fernanda Saforcada, nesta segunda parte de uma entrevista sobre as tendências à privatização e à mercantilização da educação superior na América Latina e no Caribe.
Ao lado de Daniela Atairo, Lucía Trotta e Aldana Rodríguez Golisano, Fernanda Saforcada elaborou o relatório “Formas de privatização e mercantilização da educação superior e o conhecimento na América Latina”, que analisa as tendências, os matizes e os impactos dessa temática para o direito à educação, em âmbito regional.
Nesta parte do diálogo, Fernanda enfoca os motivos e as consequências dos processos de privatização da educação superior na região.
“Uma educação que tem como única finalidade obter recursos econômicos a custos baixos e, além disso, politicamente serve a certos setores que não querem que exista uma população mais educada. Assim se resolve de uma vez a demanda por educação superior e o interesse em que não exista mais educação”. Dessa forma, a pesquisadora explica as intenções de empresas com fins lucrativos do campo educacional, que cada vez mais investem na educação superior privada como um negócio.
A pesquisa menciona a tendência a um apagamento da fronteira entre o público e o privado na região. Pode explicar como e por que se dá esse processo?
Fernanda Saforcada – Falamos desse apagamento da fronteira entre o público e o privado por algumas questões que emergiram da pesquisa. A primeira se relaciona a como, juridicamente, deixa-se de falar em educação pública e educação privada, e passa-se a falar em educação em geral. Depois, distingue-se entre gestão estatal, ou particular, como se fosse só uma questão de gestão. O que está por trás disso é o interesse em fazer parecer que toda educação é pública, inclusive a privada. Isso se observa em todos os níveis educativos e também na educação superior.
Nesse sentido, está presente a ideia de que o privado também é público porque essas universidades finalmente servem a, ou têm “fins públicos”, “fazem um serviço público” e, portanto, não podem ser consideradas como qualquer outra entidade privada.
Então, o primeiro apagamento da fronteira entre o público e o privado se dá em como, jurídica, cultural ou simbolicamente, tende-se a mudar o sentido do público, pensando-se que dentro do público existe gestão estatal e gestão privada.
A segunda questão, que anda de mãos dadas com a anterior, é a ideia de que a distinção público versus privado não tem sentido, pois dizem que as universidades privadas mais tradicionais são iguais às universidades públicas. Afirma-se que apenas se deveria distinguir entre comerciais ou não comerciais, ou entre se são de qualidade, ou não. Em alguns países, aparece a distinção entre universidades com e sem fins lucrativos.
O que afirmamos é que essas distinções não implicam deixar de ter presente a diferenciação entre universidade pública e universidade privada.
Na pesquisa, nos propusemos a reconstruir as trajetórias da privatização nos distintos países, e isso ainda está em processo, já que só publicamos a primeira etapa. Mas, quando a gente vê essas trajetórias da privatização, o que encontramos é que a primeira onda de privatização se produz em meados do século passado e, sobretudo, pela ação da Igreja Católica. Nessa primeira leva, a maioria das instituições privadas que foram abertas eram universidades confessionais.
Pouco tempo depois, no contexto do desenvolvimentismo, foram abertas algumas universidades privadas com uma forte orientação técnica, mas poucas. No fim dos anos 80 e no começo dos anos 90 do século XX, aparece a privatização de instituições. Então, vemos que as universidades privadas que surgiram antes procuravam se distinguir das que apareceram nos anos 90 do século passado. Assim, passa a não ter mais sentido falar em público ou privado, e se começa a distinguir entre as universidades tradicionais e as novas, ou entre universidades comerciais e não comerciais, de qualidade e sem qualidade. Afirma-se que as novas universidades não têm qualidade.
Em nossa visão, as distinções mencionadas não tiram a importância de diferençar entre o público e o privado, em termos da forma como se regula o sistema.
Quando falamos em privatização, não falamos só em termos econômicos, mas também em relação a aspectos ideológicos e políticos. Quando falamos em instituições privadas em matéria educativa, superior ou básica, não nos referimos só a instituições privadas com interesse comercial ou econômico, pois muitas vezes o interesse é prioritariamente ideológico ou filosófico-político.
Por exemplo, nas universidades confessionais, pode ser que exista uma captação de recursos, mas o interesse não passa pelo recurso econômico, o interesse primordial tem a ver com a formação de subjetividades, de acordo com um certo ideário, doutrinário e ideológico. Então, somos muito enfáticas na importância de pensar a privatização com essa dupla dimensão.
Entendemos a privatização como processo pelo qual um sistema, um conjunto de instituições se orientam ao setor privado, ou passam a ser regidas pelo setor privado, seja por seus objetivos ou por suas formas de funcionamento econômico ou ideológico-político.
Em dita equiparação entre o público e o privado, desaparece essa lógica e parece que a diferença entre público e privado só tem a ver com a diferenciação entre comercial e não comercial, ou com as formas de financiamento. Propomos o contrário, pois as universidades são privadas porque funcionam de acordo com os interesses e o ideário de um setor particular.
Essas questões, que são de caráter mais simbólico e político, têm também uma expressão material no apagamento da fronteira entre o público e o privado, como estratégia. Essa foi a forma que encontraram em muitos países, para redirecionar fundos públicos – que historicamente eram investidos exclusivamente no setor público universitário – para o setor privado.
Neste século, principalmente nos últimos cinco ou seis anos, fundos de pesquisa que antes só eram outorgados mediante concursos ou outros dispositivos de distribuição, para pesquisadoras/es de universidades ou centros de pesquisa públicos, começaram a ser distribuídos de acordo com o critério de “qualidade”, incluindo o setor público e o privado. O que propõem essas políticas é que o que importa é a qualidade do projeto de pesquisa ou dos/as pesquisadores/as. Não se fala sobre público-privado. Qualquer pesquisador pode concorrer a receber esses fundos, seja de universidade pública ou de universidade privada. A mesma coisa acontece com as bolsas de pós-graduação e pesquisa, ou os sistemas de incentivos para pesquisadores/as.
O que encontramos é que existe uma massa de recursos muito substantiva que antes só ia para o setor público, e que esse apagamento do limite entre público e privado, e o deslocamento para outras lógicas de distinção entre instituições habilitam a que uma parte substantiva desses recursos seja direcionada para o setor privado.
Quais são as principais diferenças entre os modelos público e privado na educação universitária latino-americana, em matéria de acesso, qualidade, equidade, inclusão, etc.?
Fernanda Saforcada – Acredito que a grande diferença tem relação com o que um e outro constroem politicamente. Inclusive, vai além do que efetivamente é ensinado ou pesquisado nessas instituições. A ideia do público – pensado como bem comum – em termos simbólicos e políticos, é muito potente. Considero que faz parte de como a educação é construída, cultural e simbolicamente, a serviço de outras perspectivas políticas.
Quando começamos a analisar caso a caso, é claro, que a gente encontra muitas contradições. No Brasil, o setor público universitário é identificado como de maior qualidade e onde se produz quase a totalidade do conhecimento, em termos de processo de pesquisa. Mas, a condição para ingressar à universidade é a seleção, ainda que tenha sido tensionada com as políticas de cotas para pessoas negras, indígenas e com menos recursos. Ou seja, continuam construindo a ideia de uma distinção entre quem merece, ou não, estar na universidade pública. Certamente, defendemos a universidade pública, apesar dos processos de seleção que, do meu ponto de vista, vão contra o direito à educação.
A universidade pública é onde existem alguns elementos muito importantes que constituem o público mas, além disso, é onde existe a potência de construir algo distinto. Por isso, a privatização me preocupa mais em termos ideológicos e políticos, que no plano econômico.
Por outro lado, estão as universidades privadas de baixo custo, que são um problema no Brasil e no Peru, por exemplo. Não é algo que ocorra em todos os países, mas são instituições que estão oferecendo uma formação muito fraca na maioria dos contextos. Na verdade, não se importam com a educação, mas sim com o lucro. Captam uma quantidade de recursos muito substantiva e têm muitos jovens matriculadas/os. Isso lhes dá um poder muito grande em termos de negociar com âmbitos da política pública e atores de poder. Assim, as universidades privadas são atores com cada vez mais poder.
Nossa pesquisa demostra que a capacidade de incidência do setor universitário privado em âmbitos da política pública é notória. O setor tem capacidade de lobby no poder executivo e nos ministérios, e está apto a buscar estratégias que lhe permita participar, de maneira crescente, nos organismos e agências que tomam decisões sobre a política pública educacional. Por exemplo, se existe um conselho de educação superior, desenvolvem estratégias para obter cada vez mais representantes nesse espaço. Têm capacidade de lobby ou de fazer diretamente parte dos poderes legislativos. Costumam ter congressistas e legisladores próprios, inclusive financiam campanhas políticas para legisladores.
A pesquisa também afirma que existe uma disputa a respeito dos sentidos da educação. O que está em jogo?
Fernanda Saforcada – O que está em jogo é o sentido da educação. Não podemos ver a privatização universitária descolada da privatização da educação básica. Nessas últimas fases do capitalismo pós-Estado de bem-estar, brotou a visão do poder econômico na educação como um nicho comercial que ainda não havia sido explorado . Então, a partir dos anos 90 do século XX, houve uma investida clara do setor produtivo para explorar o potencial de lucro na educação, uma possibilidade de negócio em grande escala, que ainda estava maioritariamente em mãos dos Estados. Assim, foram pensando em como avançar na exploração desse negócio, a partir dos interesses dos países centrais e das grandes multinacionais e corporações, apostando no avanço do Acordo Geral de Comércio de Serviços (GATS em inglês) da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Quando, no fim dos anos 90 do século XX, não conseguem que os países abram o seu setor de educação ao mercado, como parte do Acordo Geral de Comércio de Serviços, algumas empresas começam a desenvolver estratégias para expandir o negócio de outras formas, seja com sedes locais, ou por meio de parcerias com empresas transnacionais para a venda de serviços educacionais.
Por outro lado, no contexto do neoliberalismo, construiu-se a ideia da crise do Estado e o privado como alternativa, de tal forma que se estabeleceram as bases simbólicas para a educação privada como saída, o que implicava formar outras subjetividades.
Aí existe um interesse estratégico político de certos setores do poder econômico e político em ter maior interferência na educação, e a forma de fazer isso é retirar a educação do Estado, redirecionando-a.
Milton Friedman, em seu livro “Liberdade para Escolher”, dizia que “a educação constitui uma ilha socialista no mar do mercado”. De algum modo, o que ele quis dizer é que existe algo no modelo educativo público, estatal, orientado a direitos, justiça social e igualdade, que se identifica com o socialismo. Na verdade, não é bem assim, mas em todo caso [a educação pública] caminha para um sentido social.
Existe um texto de Norbert Lechner, escrito a partir da análise do Chile nos anos 80 do século passado, que expõe como a construção da ordem que identificamos como neoliberal implicou em uma confluência entre neoliberalismo e neoconservadorismo. A ideia de colocar o mercado no centro do campo político e social – algo próprio do neoliberalismo – foi uma estratégia potente para desarticular as lógicas coletivas e de direitos do Estado de bem-estar, e construir ali um novo modelo conservador que restaurasse a ordem, as hierarquias e o controle social.
O raciocínio tem lógica, pois, se nos anos 90 do século XX presenciamos o auge do neoliberalismo, do individualismo e da liberdade de mercado, hoje os governos autoritários já não seguem unicamente a lógica neoliberal e do mercado, mas ganham terreno políticas e perspectivas próprias de uma lógica conservadora de controle, de hierarquia social, autoridade e ordem.
Nesse contexto, para os setores conservadores, é preciso romper a forma com que historicamente se conformaram os sistemas educativos nos Estados liberais. Nas origens dos sistemas educacionais nos nascentes Estados liberais, a educação era vista como uma ferramenta potente para a formação de cidadãos e cidadãs, ou seja, de sujeitos preparados para jogar as novas regras do jogo do Estado liberal. Essa é a origem da ideia de educação para todos e todas. Agora, no entanto, essa formação já não é necessária. Os Estados estão instalados. Todas e todos somos parte dessa ordem social e política, e já não é indispensável a educação de todas as pessoas para preservar essa ordem. Assim, segundo os setores neoliberais e neoconservadores, o que necessitamos agora, pelo contrário, é que a educação deixe de alimentar a ideia do igualitário, do direito. Para isso, temos que romper com a educação pública, ou, pelo menos, com sua definição histórica.
Acredito que temos que olhar essa progressão histórica para entender por que esse grau de ação e interferência de certos setores do poder econômico e político na educação e nas universidades.
Quais são os impactos da privatização da educação nos sentidos da educação e para os sujeitos das comunidades educativas?
Fernanda Saforcada – Para docentes, em geral, implica formas precárias de trabalho. Geralmente, as universidades e escolas privadas tendem a oferecer condições de trabalho mais precárias e instáveis, claro, com muitas diferenças entre uma instituição e outra.
Para estudantes, os impactos negativos são muitos, especialmente no caso das universidades de baixo custo. No Peru, por exemplo, existem universidades privadas que cobram taxas muito baixas das/os estudantes. Um congressista foi conhecê-las e identificou que, por exemplo, uma delas era um edifício com apenas duas salas de aula, uma com chão de terra e outra com o piso construído pela metade; com uma fachada que parecia de um edifício muito maior, mas que ao entrar no estabelecimento, esse se mostrava pequeno, tendo no máximo três professores responsáveis por lecionar todas as matérias de todas as carreiras.
Existem também universidades que só dão aulas à distância. Contratam um professor para que escreva os módulos, e depois os utilizam repetidamente sem novos custos. A única coisa que precisam fazer é manter um tutor que, em muitos casos, não tem formação.
Nesses casos, o que existe é realmente um golpe. Uma educação que tem como única finalidade obter recursos econômicos a custos baixos e, além disso, politicamente serve a certos setores que não querem que exista uma população mais educada. Assim, resolvem-se a demanda por educação superior e também o interesse em que não exista mais educação.
A educação universitária também tem fins político-ideológicos muito claros. Vemos, por exemplo, como algumas universidades privadas são as que formam os membros de governos de direita, ou dos governos que caminham no sentido de implementar políticas que, de maneira geral, limitam direitos nos distintos países.
As pessoas que ocupam esses cargos, em geral, formaram-se em determinadas universidades privadas. Então, o fato de serem instituições formativas lhes dá essa capacidade de incidência e influência nas políticas públicas.
A universidade tem relação com a formação de mais alto nível de um setor importante e crescente de nossas populações. Aqui temos uma questão política de enorme importância: a quem responde essa formação? Responde aos interesses de um setor particular e aos interesses do poder econômico? Responde aos interesses da igreja católica? Responde ao que democraticamente definimos como bem comum?