Fernanda Saforcada: 55% da educação superior na América Latina pertencem ao setor privado

Em entrevista à CLADE, pesquisadora fala sobre como a América Latina e o Caribe são hoje uma das regiões do mundo com mais estudantes em universidades privadas

América Latina e o Caribe (AL&C), junto com a Ásia Meridional ou o Sul da Ásia, é das regiões do mundo com mais privatização na educação superior. Mais de 50% das matrículas de AL&C estão nas universidades privadas. Isso significa que a maior parte de estudantes na região não tem acesso à educação superior pública.

Essa constatação está presente em “Formas de privatização e mercantilização da educação superior e o conhecimento na América Latina”, pesquisa elaborada pelo Instituto de Estudos e Capacitação da Federação Nacional de Docentes Universitários (Conadu) de Argentina, em parceria com Internacional da Educação (IE).

De autoria de Fernanda Saforcada, Daniela Atairo, Lucía Trotta e Aldana Rodríguez Golisano, a pesquisa analisa as tendências regionais em relação à privatização e à mercantilização da educação superior na América Latina e no Caribe.

A CLADE conversou com uma das autoras, Fernanda Saforcada. Dividida em duas partes, a entrevista aborda alguns dos motivos pelos quais a região da América Latina e do Caribe enfrenta um contexto de “hiperprivatização” da educação superior. Igualmente, traz à luz os conceitos que distinguem privatização de mercantilização, as aproximações e os afastamentos entre o processo de privatização da educação básica e o que afeta o ensino superior e, sobretudo, a disputa de sentidos sobre a educação e como a privatização é política e ideológica, para além das questões econômicas.

Nesta primeira parte, o diálogo se concentra nos motivos, na trajetória e nas concepções do processo de privatização e mercantilização da educação superior na região.

Boa leitura!

A pesquisa afirma que a América Latina, junto com a Ásia meridional, é dasregiões do mundo com mais privatização na educação universitária. Quais são os principais motivos para esse cenário?
Fernanda Saforcada A Ásia Meridional ou Sul da Ásia e América Latina e o Caribe são efetivamente as duas regiões mais privatizadas, são as duas que superam 50% das matrículas no setor privado. Ou seja, são mais estudantes na educação superior privada do que na educação superior pública.

Isso toma outra dimensão quando vemos os números de outras regiões. Na Europa, por exemplo, só 13,7% de estudantes estão no setor privado, na América do Norte só 28%. Isso nos dá a dimensão do que implica pensar em mais de 50% de estudantes no setor privado.

Os motivos pelos quais se dá essa hiperprivatização têm a ver com duas questões comuns em nível global. Por um lado, a educação superior se expandiu de maneira notória entre a década de 1990 e a atualidade. Por outro lado, houve uma diminuição dos recursos públicos, em alguns casos, e o congelamento desses recursos, em outros.

Quando digo que houve uma expansão da matrícula, estou falando que a matrícula triplicou: atingiu 300%, em números globais, o incremento das matrículas da educação superior na América Latina.

As razões, em princípio, são duas. Uma delas tem a ver com os próprios processos sociais de crescimento de escolaridade e distinção social ou de prestígio, de busca de certificações de maior nível. É o que foi denominado inflação de títulos. Ou seja, as pessoas buscam o título de educação superior porque isso supostamente faz a diferença. A outra questão é que, nos anos 90, houve uma expansão da escolaridade no ensino médio muito notória, pelo crescimento da matrícula, o que se consolidou com a sanção de leis que estabelecem a obrigatoriedade do ensino médio na maior parte dos países, nos primeiros anos do século. Isso também gerou uma quantidade maior de jovens que terminam o ensino médio e buscam o acesso à educação superior.

Essa pressão por um maior acesso à educação superior conviveu com políticas neoliberais na década de 1990, que geraram um subfinanciamento da educação superior pública. Claramente, a curva de financiamento para a educação superior, se nos anos 90 era decrescente, neste século (XXI), foi crescente, embora com muitas diferenças de um país para outro.

No entanto, esse crescimento de recursos não chegou a cobrir o necessário em termos de reconstruir o que havia sido enfraquecido nos anos 1990 por falta de recursos. Também não conseguiu responder ao crescimento da demanda.

Essa tensão entre maior demanda por educação superior e recursos insuficientes se resolveu de duas maneiras. Por um lado, cresceram e se aprofundaram os processos de seleção para a entrada na universidade. Ou seja, com a alta demanda, o que fizeram foi criar mais barreiras para o acesso. Por outro lado, a introdução ou o aumento de taxas.

Nisso, Argentina foi uma exceção. Não gerou processos de seleção e manteve a gratuidade da universidade pública. No entanto, como resposta para essa maior demanda com menor quantidade de recursos, surgiu a precarização do trabalho docente.

Outra questão foi o que muitos autores denominam mercantilização do público. A situação da falta de recursos forçou as universidades públicas a desenvolver modalidades de autofinanciamento, que podem se dar por meio do incremento ou da introdução de taxas para estudantes. E também por meio da venda de serviços para setores privados e para o setor produtivo, como forma de buscar outros modos de captação de recursos, já que o Estado não conseguia cobrir o necessário.

“Fundamentalmente, o incremento das matrículas no setor privado, em termos numéricos, está muito relacionado com o aprofundamento dos sistemas de seleção para o acesso à educação pública”

Esse é um pacote em relação à tensão entre mais demanda e menos recursos – ou recursos não proporcionais a essa demanda. A outra tensão é que estudantes, na medida em que não acessam o setor público, ou com o enfraquecimento do setor público, vão para o setor privado.

Fundamentalmente, o aumento das matrículas no setor privado, em termos numéricos, está muito relacionado com o aprofundamento dos sistemas de seleção para o acesso à educação pública. Essa situação é concomitante com o processo de expansão das universidades privadas de relativamente baixo custo.

As universidades privadas de baixo custo oferecem matrículas muito mais econômicas que as de privadas mais tradicionais. Assim, concentram uma grande quantidade de estudantes que querem ingressar à educação superior e não conseguem acessar o setor público porque os processos de seleção são muito severos. Geralmente, para passar nesses processos de avaliação, estudantes têm que entrar em algum tipo de curso pré-vestibular que é pago, e muitos não têm como pagar. Ou, inclusive, não conseguem pagar as taxas adicionais cobradas pela educação superior pública.

Por outro lado, na medida em que as universidades públicas se mostram debilitadas de alguma maneira, estudantes vão para as universidades privadas de elite, ou tradicionais porque pensam que ali vão receber uma melhor formação.

Essa situação produz o fenômeno da privatização, inserido em um contexto de hegemonia neoliberal. Esses impulsos se apresentaram fortemente na década de 90 do século XX, em um contexto neoliberal em que havia políticas públicas educativas, científicas e culturais que construíram simbolicamente o imaginário coletivo de que o privado era melhor.

No contexto dos governos pós-neoliberais, embora houvesse políticas ativas de fortalecimento do sistema público, essas não conseguiram frear a tendência ao crescimento absoluto e relativo do setor privado. Então, nos países com governos populares, progressistas, houve um grande fortalecimento do sistema público e políticas fortes de expansão e fortalecimento desse setor, mas o sistema privado também continuou crescendo.

O estudo analisa a privatização e a mercantilização da educação universitária. Quais são as principais diferenças entre os conceitos de mercantilização e privatização?
Fernanda Saforcada – Em termos gerais, quando falamos dos processos de privatização dos serviços públicos, estamos falando de como empresas públicas passam a ser geridas e exploradas pelo setor privado. Ou seja, estamos falando de passar para as mãos particulares, ou para a esfera privada, instituições do setor público.

No caso educativo, é diferente. Embora isso se observe em alguns casos, não é o mais comum. A privatização educacional tem sido mais comum, por um lado, no crescimento do setor privado porque o Estado diminuiu sua oferta de educação pública, gerando um terreno fértil para o crescimento do setor privado, em quantidade de instituições e de estudantes. Às vezes, inclusive, são impulsionadas políticas que estimulam de alguma maneira a expansão do setor privado.

Quando falamos de privatização, temos que levar em conta quem financia e quem oferece a educação. Nos formatos tradicionais privados, quem financiava era a família, e quem oferecia a educação era uma instituição privada ou particular. A partir dos anos 90 do século XX, essa configuração muda, e aparecem formas de privatização que combinam o financiamento público com a gestão privada, ou o financiamento particular com a gestão pública.

A isso acrescentamos a privatização dos currículos, que se dá quando, por exemplo, contrata-se uma empresa para definir um desenho curricular. Pode ser que a escola seja pública, financiada com fundos públicos mas, nesse caso, quem define os conteúdos ensinados é uma instituição privada.

“Falamos em privatização quando nos referimos à expansão do setor privado, e ao fato de termos mais pessoas formadas no setor privado. Por sua vez, falamos de mercantilização quando a universidade pública passa a ser gerida e funcionar como se fosse uma empresa. Em relação ao direito à educação, as duas coisas são preocupantes”

Quando falamos em mercantilização, estamos falando sobre como certos aspectos, dimensões, processos e procedimentos do âmbito público começam a funcionar com lógicas mercantis. Um exemplo muito claro é quando se introduz o critério de competência dentro do setor público para distribuir recursos públicos, com uma lógica que pressupõe a competição entre instituições. Isso é introduzir uma prática do mercado para regular um aspecto do setor público.

No caso das universidades, falamos em privatização para nos referir à expansão do setor privado: por exemplo, existem mais instituições privadas, mais pessoas matriculadas e graduadas no setor privado. Por sua vez, falamos em mercantilização para nos referir a como questões do setor público passam a funcionar com lógicas do mercado, como por exemplo a venda de serviços por universidades públicas, ou a gestão desses centros educacionais como se fossem empresas. Em relação ao direito à educação, as duas coisas são preocupantes.

“Garantir o direito à educação como um direito social implica pensar a educação pública com toda sua amplitude, com o radicalismo e a complexidade que implica uma educação pública e igualitária para todas e todos. Uma educação que contemple as pluralidades e as diferenças, que garanta o bem comum e se oriente por ele”

Quando pensamos o direito à educação como um direito individual, formal, jurídico, que pode ser exercido ou não, é plausível que esse seja realizado por meio da educação privada. Agora, se pensamos que o direito à educação é um direito social, que deve ser garantido para o coletivo social e definido em termos do que é o bem comum, a única forma de responder a esse direito é pela oferta de uma educação pública e por meio do sentido do público. O sentido do público, não como espaço aberto para qualquer pessoa, como uma praça ou um café, mas na maneira pela qual historicamente se configurou o sentido do público na educação, que é de pensar o público como um bem comum.

Nesse sentido, garantir o direito à educação como um direito social implica pensar a educação pública com toda sua amplitude, com o radicalismo e a complexidade que implica uma educação pública e igualitária para todas e todos. Uma educação que contemple as pluralidades e as diferenças, que garanta o bem comum e se oriente por ele.

Existe algum país da região que se destaca em termos de privatização universitária na região? Por quê?
Fernanda Saforcada – Existem alguns países que claramente se destacam. O Chile, com certeza, já que tem 85% das matrículas universitárias no setor privado. O Brasil é um dos países com os índices mais altos também, com 73% das matrículas universitárias no setor privado. Em seguida, vêm: Peru com 72%, e Porto Rico e El Salvador, com 70%. Esses cinco países são os que apresentam uma situação de maior aprofundamento da privatização.

Temos muito instalada a ideia de que justo é quando as coisas são equivalentes, então parece que é justo falar de 50% das matrículas no setor privado, e outros 50% no setor público. Mas, quando falamos em educação e direitos, isso não é justo.

Em termos de garantia de direitos, igualdade, justiça social e de construção do bem comum, espera-se que a grande maioria de estudantes e instituições faça parte do setor público. Como comentei, existem cinco países em nossa região que têm 70% ou mais de seus estudantes no setor universitário privado, e essa situação é a mais extrema da privatização. Mas, temos também países em que 40% de estudantes, ou mais, estão no setor privado, o que também é muito preocupante.

Por sua vez, em Cuba, 100% das instituições universitárias são públicas. Já em Uruguai, 86% das instituições pertencem ao setor público.

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