Futuro do livro didático no Brasil
“A partir de 2021, todos os livros serão nossos, feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira do Brasil na capa. Vai ter lá o hino nacional. Os livros hoje em dia, como regra, são um montão de amontoado de muita coisa escrita. Tem que suavizar aquilo. Falar em suavizar, estudei na cartilha Caminho suave, você nunca esquece. Não esse lixo que, como regra, está aí. Essa ideologia de Paulo Freire”
Jair Bolsonardo, presidente da República
Sabe quem é o maior comprador de livros do mundo?
O governo brasileiro.
Isso graças ao Programa Nacional do Livro Didático – PNLD, que organiza a compra dos livros didáticos utilizados em todas as escolas públicas deste país.
Uma obra dos governos PT? Não. Um programa criado em 1985 e aprimorado desde então, governo a governo.
Como esses livros são comprados? Por licitação, comparando preços, como pode se fazer ao comprar cadeira, carteira ou qualquer objeto? Não. Livro não se compra assim.
O PNLD estabeleceu, ao longo dos anos, comissões de pesquisadores que realizavam uma análise minuciosa de todos os livros didáticos lançados pelas editoras. E a partir dai elaboravam pareceres.
Cada escola então reunia seus professores para decidirem (lendo esses pareceres encadernados em um guia) qual coleção de livro, de cada disciplina, eles pretendiam adotar. E o governo federal comprava o que foi escolhido em cada lugar.
Isso permitia que se respeitasse diferenças regionais e de formação dos professores. E note que coisa bonita: não tinha imposição do governo, nem algo que possa chamar de “viés ideológico”, já que em cada lugar uma coleção de livros diferente podia ser adotada. Inclusive os professores eram livres para ignorar os livros mais bem classificados pelos pesquisadores e escolher uma coleção que considerassem mais fácil de usar. E isso acontecia muito.
Até o governo Dilma, esses especialistas eram pesquisadores/professores de grandes universidades públicas, com notório saber na área, pessoas que dedicaram uma vida à pesquisa em educação.
Eu trabalhei num centro de excelência em pesquisa sobre leitura, escrita e alfabetização, o Ceale da UFMG, que fez várias avaliações para o PNLD – de livros de português e alfabetização – e também para o PNBE, que analisava os livros literários e dicionários que poderiam ser comprados para as bibliotecas escolares (1).
A pressão em cima desses pesquisadores era imensa. Ouvi histórias de terem que chamar a polícia para espantar os lobistas de editoras que assediavam os pesquisadores para tentar fraudar o sistema e interferir nas avaliações. Isso porque esse é um negócio bilionário, e constante. Afinal de contas há décadas o governo brasileiro compra livros para os alunos da rede pública.
O governo Temer começou a destruir o PNLD ao permitir que se tirasse essas avaliações das mãos dos maiores pesquisadores do país em cada área; entregando para pessoas com formação mais básica, sem doutorado, sem relevância no seu campo de pesquisa, sem a alta qualificação necessária.
O governo Bolsonaro parece ter a clara intenção de destruir de vez essa política de Estado que existe há 35 anos no Brasil, acabar com um dos traços mais republicanos desse país que é essa forma como os livros produzidos pelas editoras chegam até a sala de aula: com um filtro da pesquisa científica/pedagógica, mas respeitando a escolha dos professores que utilizam esses livros com seus alunos.
Bolsonaro fala em colocar bandeira do Brasil na capa, mutilar conteúdos, mudar a linguagem e uma porção de intervenções que jamais compete a um presidente que se pretenda democrático meter o bedelho. Isso terá um efeito dramático para educação brasileira! (2)
Temos que ter consciência da formação deficitária de boa parte dos professores da educação básica. Um bom livro ajuda o professor a se atualizar na sua área e a conseguir organizar melhor sua aula, serve a ele como formação continuada. Fora ser obviamente um suporte para a aprendizagem dos alunos.
Outra informação importante para prestarem atenção é que, depois da Bíblia, os livros didáticos são os livros que mais circulam pelas casas pobres deste país.
É triste demais que a qualidade desses livros esteja tão perigosamente ameaçada. Inclusive de passar a conter conteúdo anticientífico, revisionismo histórico, teoria da conspiração, pregação religiosa, moralismo e preconceitos.
Tudo é possível que este governo enfie nos novos livros didáticos. Já que o presidente provavelmente colocará os lunáticos da laia dele (e não pesquisadores) para avaliar as coleções produzidas pelas editoras. E os donos de editoras mais inescrupulosos, interessados num pedaço desse orçamento bilionário, podem se adequar. E muito provavelmente os professores perderão a chance de escolher qual coleção usar.
Estejam atentos que Bolsonaro faz isso não só para impor o seu “viés ideológico” (que seriam livros sem o que ele chama de ideologia de gênero e com muito patriotismo), mas também para enriquecer parceiros com ligação direta com editoras e outras megaempresas na área de educação.
Tem gente com muita grana por trás dessa conversa fiada do presidente de que os livros didáticos brasileiros são “lixo”.
Por favor, amigos, se importem com isso! O que estamos prestes a perder com o desmantelamento das políticas do livro didático demorou demais a ser construído. Os brasileiros não podem deixar a educação pública andar para trás nessa velocidade.
Notas
1
Eu nunca trabalhei como avaliadora do PNLD. Meu contato foi indireto, quando trabalhei por alguns anos como jornalista do Ceale, uma instituição ligada à faculdade de educação da UFMG, que realiza pesquisas e também atividades voltadas para a formação de professores alfabetizadores.
2
Ver: FERNANDES, Talita. Bolsonaro chama livros didáticos de “lixo” e propõe que material seja suavizado em 2021. Folha de S.Paulo, 3 jan. 2020 <https://bit.ly/2SXg34K>.
Sobre a autora
Sílvia Amélia de Araújo trabalhou como jornalista no Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita – Ceale, instituição da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde ajudou a criar o “Letra A”, um jornal para professores alfabetizadores brasileiros. Foi professora substituta no curso de Comunicação Social da UFMG.