Gestão democrática: ‘A escola é espaço de emancipação’

“Trata-se de uma Escola Com Partido, porque é a escola que nos cala. Os projetos de Lei da Mordaça do movimento Escola Sem Partido não precisam sequer ser aprovados, porque muitos de nossos companheiros — estudantes e professores — já estão calados.” Foi assim que a coordenadora da Secretaria de Assuntos Educacionais da Contee, Adércia Bezerra Hostin dos Santos, resumiu sua denúncia feita hoje (24) na audiência da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados que discutiu gestão democrática e participação estudantil. Além da diretora da Confederação, participaram do debate representantes da União Nacional dos Estudantes (UNE), Denise Soares e Ludmila Brasil; da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes), Marcelo Acácio; da Associação de Docentes da UnB, Ailta Barros de Souza; e da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Luciana Custódio, além do o doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Erasto Fortes Mendonça.

É claro que os ataques a discentes e docentes não se se restringem às medidas que visam a censurá-los, persegui-los e criminalizá-los. Na verdade, no atual cenário político, econômico e social nebuloso, que se constitui, nas palavras de Adércia, num exemplo de estado de exceção, tentativas de amordaçar a educação têm se dado a partir de diversos nós: congelamento de investimentos públicos, corte de verbas das universidades e institutos federais (afetando ensino, pesquisa e extensão), reforma do ensino médio, inexequilibidade do Plano Nacional de Educação (PNE), militarização de escolas públicas, mercantilização do ensino, desmanche da educação pública, tentativas de privatização.

“É importante, neste momento, fazer uma retrospectiva da nossa luta. Num espaço muito curto de tempo, dado o golpe do impeachment em 2016 e essas últimas eleições, tivemos uma velocidade gigantesca de retrocessos no que tange às políticas públicas educacionais. Temos uma lei do PNE, que já traz as diretrizes e metas para a educação nacional, mas que foi inviabilizada. Temos outra lei que deveria ter sido aprovada há três anos, que é a do Sistema Nacional de Educação — necessário para regulamentar e definir responsabilidades para a educação pública e privada, uma obrigação do Estado, e assegurar um padrão mínimo de qualidade —, mas não foi discutida”, declarou Adércia.

“Esse preâmbulo é fundamental, porque a gente precisa se localizar no tempo e no espaço. Realizamos duas Conferências Nacionais de Educação, com mais de 5 mil participantes da sociedade civil organizada, e nossas deliberações estão sendo descartadas. Em vez disso, temos uma Emenda Constitucional 95 que avilta todos os investimentos em educação. As universidades federais tiveram suas verbas restringidas. A UNE, a Ubes, os estudantes guerreiros e corajosos que foram paras ruas fizeram essas verbas voltarem, mas precisamos saber, com transparência, como serão aplicadas. Isso é gestão democrática. Não foi nenhuma benesse do governo liberar esses recursos.”

Movimento estudantil

Destacar o papel do movimento estudantil na luta em defesa das políticas educacionais é essencial na discussão proposta na audiência, convocada para debater iniciativas para promoção da gestão democrática na educação e o fomento às entidades representativas de estudantes. Como os estudantes, tal qual em outros períodos históricos marcados pelo autoritarismo e pela repressão, são, juntamente com a classe trabalhadora, um dos principais braços de resistência e mostraram isso com as “tsunamis da educação”, não por acaso, assim como acontece com os trabalhadores, com a retirada de direitos trabalhistas e a perseguição às entidades sindicais, têm tido seu direito de organização afrontado.

Para se ter uma ideia, o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM) apresentou duas emendas aos Projeto de Lei 1967/2015, que dispõe sobre a fundação, a organização e a atuação de colegiados estudantis como entidades autônomas representativas dos interesses dos estudantes nos estabelecimentos de educação básica e superior, públicos e privados. Ambas as emendas são supressivas e retiram da proposta as prerrogativas de que os grêmios estudantis possam monitorar a gestão educacional e financeira de sua instituição e de que tenham autonomia de atuação. Em sua justificativa, além de desqualificar a organização estudantil, o parlamentar ainda comete o disparate de argumentar que “não há nenhuma referência à participação de estudantes na gestão econômica, administrativa ou pedagógica da escola particular e a única menção à gestão democrática está no inciso VI do artigo 206, mas é restrita ao ensino público, na forma da lei”.

Essa ofensiva não é isolada; faz parte de um contexto. Conforme ressaltado na convocação da audiência pública, “o cenário atual conta, por exemplo, com um ministro da Educação que tem uma experiência acadêmica questionável e diminuta na área da educação, estimulando acirramento contra professores e entidades estudantis, desqualificando a vida e a autonomia acadêmica, reduzindo-as à balbúrdia, a espaços de farra, falando em ‘colocar a polícia dentro da Unb’, atacando as entidades estudantis e suas condições de sustentabilidade.” É o caso da Medida Provisória 895/2019, duro ataque à fonte de receita gerida autonomamente pelas entidades estudantis, e do decreto instituindo o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), que “colide com a gestão democrática e é mais um estágio para a autorização do uso institucional da violência do Estado e para perseguição à escola pública e seus professores, além de representar um estímulo à exclusão educacional”. Isso sem falar na demora no processo de nomeação de reitores e na escolha de dirigentes não legitimados de forma democrática pelas comunidades acadêmicas.

Mercantilização

A experiência de atuação da Contee no âmbito do ensino privado demonstra ainda como a mercantilização do ensino e os diversos e perversos mecanismos de privatização da educação pública agravam esse quadro. “Qual a grande responsabilidade dos grandes grupo econômicos de ensino, de capital aberto, com o projeto educacional do país? Onde, nos projetos educacionais desses grandes grupos econômicos, se organiza a gestão democrática? Como são conduzidos os projetos pedagógicos desses estabelecimentos de ensino privado?”, provocou Adércia. “Isso é ilusório.” Ela lembrou que, depois de fatiarem entre si o mercado de ensino superior, tais corporações avançam com cada vez mais voracidade também sobre a educação básica. “Esses grandes grupos já entregam projetos prontos para estados e municípios e estão de olho na gestão dos fundos públicos através da iniciativa privada”, expôs. “A gente não pode mais defender apenas a educação pública, mas precisamos defender educação pública com gestão pública.”

A diretora da Contee enumerou os principais elementos do que chamou de “mancha histórica” que o Brasil vive hoje. “Tivemos uma reforma do ensino médico excludente e conteudista. Tivemos uma reforma trabalhista que desmontou os direitos dos trabalhadores do setor privado de ensino e falar em gestão democrática pressupõe discutir também relações de trabalho. Estamos vivendo um estado de exceção, com policiamento nas universidades e escolas cívico-militares. Tivemos uma enorme alta do desemprego e a população de rua triplicou. Em cima de qualquer padaria se abre hoje uma EaD — e não estão desqualidficando as padarias, estou desqualificando a oferta sem responsabilidade do ensino a distância, visando somente lucros”, observou.

“Todo jovem e toda criança têm direito de acesso à educação de qualidade, mas isso não é possível quando quem está por trás do homeschooling é uma Pearson da vida; não quando quem está organizando a formação de professores são esses grandes grupos econômicos”, pontuou. “A gestão democrática coloca tudo isso em pauta. Que se faça valer o PNE, o SNE e que se implante de fato uma gestão democrática na educação. Temos que sair do campo da utopia e lutar para que se transforme em realidade. A escola é um espaço de emancipação da classe trabalhadora e da sociedade geral.”

Assista ao trecho da audiência pública.

Por Táscia Souza

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