Governo federal não teve influência na redução de homicídios no País
As maiores quedas de assassinatos ocorreram em estados do Nordeste, governados pela oposição e sem apoio federal
Sérgio Moro fez questão de alfinetar os jornalistas quando foi ao púlpito falar sobre o lançamento da iniciativa mais recente de seu ministério, no fim do mês passado. Na visão do ministro, a redução da criminalidade por Bolsonaro não tem tido a “necessária exposição” nas telas e páginas da mídia brasileira. E completou: “Não me lembro de outro período histórico que tivesse havido uma redução de 22% dos homicídios nos quatro primeiros meses”. É verdade. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que monitora mês a mês os indicadores em todo o Brasil, as mortes violentas caíram 22% no primeiro semestre deste ano em comparação com o do ano passado. Mais de 6 mil vidas foram poupadas de lá para cá. Vinte e três estados e o Distrito Federal registraram quedas.
É falso, porém, que o governo federal tenha tido alguma influência nessa redução.
A queda gradual nos homicídios ocorre, na prática, desde 2015. Naquela época, 9 estados tiveram menos mortes do que no ano anterior. Em 2016, foram 15 – número que se repetiu em 2017, quando os estados das regiões Norte e Nordeste foram palco de sucessivas rebeliões e episódios de violência nas periferias. Os indicadores de 2018 confirmam tal tendência. Segundo a edição mais recente do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, matou-se 10,4% menos naquele ano do que no período imediatamente anterior.
“Os patamares altos eram explicados por um conjunto muito pequeno de estados, que em 2018 conseguiram retomar o controle da situação. Por isso os números caíram, especialmente no Nordeste”, explica Renato Sérgio de Lima, diretor da instituição.
A baixa da violência naquela região é a maior do País. Três estados tiveram quedas superiores a 30% no primeiro semestre deste ano: Sergipe, Rio Grande do Norte e Ceará. Este último, aliás, respondeu sozinho por um quinto da queda nas mortes no Brasil. Diante do turbilhão de crises encomendadas, o governo tenta apropriar-se dessa melhora nos indicadores. Volta e meia, Bolsonaro e os comandados aludem para rebater qualquer crítica. Conforme ele declarou nas redes sociais, um sinal de que o governo “está no caminho certo”. Não é o que dizem governadores e especialistas.
Autor de um extenso trabalho sobre facções criminosas, o sociólogo Gabriel Feltran classifica os homicídios em cinco tipos diferentes. Em primeiro lugar vêm as mortes por conflitos do mundo do crime. Em 2018, esses assassinatos corresponderam a cerca de 80% das mortes violentas no Brasil. A série histórica do anuário mostra que os estados que tiveram maior queda na última década (São Paulo, Paraná, Piauí e Mato Grosso do Sul) são os mesmos nos quais o Primeiro Comando da Capital não apenas consolidou o domínio das cadeias, mas a presença hegemônica na regulação dos códigos de conduta do crime. “O PCC implementa mecanismos pragmáticos de redução dos conflitos internos ao universo criminal, regulando os homicídios internos.”
Negociação. A reacomodação dos conflitos entre o PCC e facções locais afetou os indicadores no Norte e Nordeste.
Na sequência aparecem os casos ligados à letalidade policial: vítimas e oficiais mortos em confronto totalizam 11,45% do total das mortes violentas intencionais no Brasil e, em 2018, cresceram quase 20%. Isso significa que 1 em cada 10 assassinatos ocorreu pelas mãos da polícia. Nessa guerra, morre em média 1 policial para cada 18 mortes cometidas pela polícia. As vítimas dessa violência continuam a ser os jovens pobres e negros: mais de 75% dos mortos por policiais em 2018 tinham a pele escura e idade entre 15 e 29 anos. Ao contrário do que o governo alardeia, a violência policial não tem relação de causa e efeito com a baixa nos homicídios. Se a matança fardada estivesse ligada à paz nas ruas, São Paulo não teria visto uma redução de 11% na taxa de homicídios, cuja letalidade policial encolheu 10%. E em Roraima, o estado mais violento do País no ano passado, não teria havido um crescimento de 65% na taxa de homicídios, uma vez que a taxa de mortes policiais subiu 183%.
Em seguida aparecem os feminicídios (entre 6% e 8%), latrocínios (3,3%) e assassinatos ligados à homofobia (1%). Os crimes violentos contra a mulher tiveram um aumento explosivo no último ano. Cresceu 4% o total de feminicídios e houve recorde nos registros de estupros. “Esses registros mostram que nossa sociedade continua cruel e violenta, e que essa violência não está no bandido de fuzil na esquina.” diz Lima.
A verdade é que as propostas do governo Bolsonaro para a segurança, como a flexibilização na posse de armas e o pacote anticrime, ainda não foram implementadas. Também minguou o repasse federal aos estados. O Sistema Único de Segurança Pública, lançado no fim do ano passado pelo governo Temer, não saiu do papel. A única parcela do Fundo Nacional de Segurança liberada até agora, de 250 milhões de reais dividida por todos os estados, tem sido usada para custear a atuação da Força Nacional – que de nacional tem só o nome. Todo o contingente de peritos, policiais e bombeiros é emprestado pelos estados, que continuam a pagar os salários desses oficiais. Não houve, até agora, nenhuma medida contundente na Segurança Pública, diz Lima. “Apenas discurso político”, completa.
Para continuar a investir, os governadores cobram atuação efetiva da União. “Todas as despesas com segurança pública são custeadas pelo estado, o investimento do governo é irrisório”, afirma Antonio de Pádua, secretário de Defesa Social de Pernambuco. O estado tem uma das iniciativas mais longevas no combate à violência. Há 12 anos, toda a estratégia de segurança pública foi encapsulada em um programa chamado Pacto pela Vida, que levou um prêmio de gestão pública da Organização das Nações Unidas. Em 2018, foi inaugurada uma secretaria especializada em prevenção às drogas e à violência. A redução das mortes no estado em 2019 foi de 23%.
Na segunda 9, a reportagem acompanhou a participação dos governadores Rui Costa, da Bahia, e Helder Barbalho, do Pará, em um evento com empresários em São Paulo. Tanto o governador baiano quanto o paraense defenderam uma atuação mais ampla no combate à violência. “Se o Estado não é capaz de ofertar serviço públicos, a validade da política policial expira, o crime volta mais empoderado. Além da criminalidade em si, o descrédito estatal fragiliza a sociedade”, disse Barbalho. Menos de um mês após o massacre que deixou 56 mortos no presídio de Altamira, o Pará registrou um dia inteiro sem mortes.
O governador Rui Costa pediu que o tráfico de drogas seja tratado como crime federal. “O PCC é uma organização criminosa complexa, de âmbito internacional hoje, não há como os estados isoladamente resolverem essa questão. Ou a União busca uma ação articulada com outros países, ou vamos ficar pra sempre tentando.” O petista também defendeu um novo olhar à questão das drogas. “Precisamos testar outras abordagem além da criminal e policial.”
Naquela data em que chamou pra si as boas-novas, Moro lançava um programa batizado de “Em Frente, Brasil”. O nome ufanista esconde uma proposta esquálida. A versão piloto da proposta será testada agora em cinco cidades: Ananindeua (PA), Paulista (PE), Cariacica (ES), São José dos Pinhais (PR) e Goiânia (GO). E sob investimento 25 vezes menor que o indicado. Ficou fora, por exemplo, a cidade cearense de Maracanaú, a mais violenta do País, segundo o Ipea.