Gratuidade nas ações trabalhistas: mitos que a realidade desmente

Por Alexandre Agra Belmonte*

É comum ouvir no debate público a narrativa de que existe uma “indústria de ações trabalhistas” no Brasil. Nessa história, a gratuidade da justiça é frequentemente apontada como a grande vilã, incentivando um número excessivo de processos e sobrecarregando o sistema.

No entanto, a realidade se mostra muito diferente e bem mais complexa. Desde que contextualizados, os números — então apenas absolutos — revelam que a alta judicialização é um sintoma de problemas estruturais profundos em nosso mercado de trabalho.

Vejamos.

Mito 1: problema é o acesso gratuito à justiça

A raiz do problema não é o acesso, mas a altíssima rotatividade de empregos.

Antes de culpar o trabalhador que busca seus direitos, é preciso olhar para um fato alarmante: o Brasil é o país com a maior rotatividade de mão de obra do mundo. Esse entra e sai constante de empregos, conhecido como turnover, não é uma característica natural do mercado, mas uma consequência direta da falta de proteção efetiva à motivação para a despedida arbitrária ou sem justa causa, o que a torna inclusive a justiça dos desempregados, porque reclamação no curso do contrato é despedida certa. Essa falha regulatória, além de provocar o repasse do custo da multa de 40% para os produtos e serviços — em detrimento do consumidor —, cria um ambiente de instabilidade crônica e gera um volume enorme de rescisões de contrato. Inevitavelmente, um número gigantesco de demissões resulta em um número gigantesco de conflitos.

Os dados confirmam essa conexão. Em 2023, pelo menos 30% de todas as ações na Justiça do Trabalho eram relativas a verbas rescisórias não pagas. Portanto, o foco na gratuidade da justiça como causa do problema desvia a atenção da questão central: um sistema que incentiva a dispensa e deixa o trabalhador desprotegido.

Mito 2: pessoas processam por qualquer motivo

Muitas ações são um pedido de socorro por direitos básicos, não por trivialidades.

A ideia de que os trabalhadores entram com processos por motivos fúteis não se sustenta quando analisamos as principais causas das ações. A maioria dos casos reflete problemas graves e sistêmicos, sendo os dois principais:

Inadimplência contumaz: o não pagamento de verbas rescisórias é uma prática recorrente. Para o trabalhador que acabou de ser despedido e está sem salário, recorrer à justiça requerendo gratuidade não é uma opção, mas a única forma de garantir sua sobrevivência e a de sua família.

Acidentes de trabalho: o Brasil ocupa a 4ª posição no ranking mundial de mortes por acidentes de trabalho e registra, em média, 83,6 acidentes por hora. Esse cenário trágico, que gera uma imensa quantidade de ações indenizatórias, não é uma fatalidade estatística. São acidentes que, segundo especialistas, poderiam ser evitados com a adoção de meios eficazes de prevenção, indicando uma falha de gestão e segurança por parte das empresas.

Somados o não pagamento de rescisões e os acidentes de trabalho respondem por mais da metade de todas as ações trabalhistas. Fica claro que a judicialização, nesses casos, é uma questão de necessidade e reparação, não de oportunismo.

Mito 3: quem entra na Justiça é mal-intencionado

O perfil de quem busca a Justiça do Trabalho é de necessidade, não de má-fé.

O perfil socioeconômico de quem recorre à Justiça do Trabalho desmonta o mito da má-fé. No Brasil, o Censo 2022 apurou que 90% da população ganha menos de R$ 3,5 mil por mês e 70% recebem até dois salários-mínimos. Além disso, mais de 75% dos reclamantes são trabalhadores que foram despedidos e, portanto, estão desempregados e sem fonte de renda. Para essas pessoas, arcar com os custos de um processo sem o benefício da gratuidade seria um obstáculo intransponível para exercer um direito garantido pela Constituição.

A análise fria dos fatos mostra que a gratuidade não é um incentivo ao abuso, mas uma ferramenta essencial para garantir que a balança da justiça não penda apenas para o lado economicamente mais forte. A análise dos fatos leva a uma conclusão inevitável, como resume o autor da análise original:

Culpar a vítima pela judicialização não me parece o caminho acertado na busca pela solução do problema.

Mito 4: regras são as mesmas para todos

Existe um surpreendente “dois pesos, duas medidas” no acesso à Justiça no Brasil.

Talvez, o ponto mais contraintuitivo seja a diferença de tratamento que o sistema judicial brasileiro dá ao trabalhador e ao consumidor. Nos Juizados Especiais, onde são julgadas em maioria as causas de consumo, o acesso na primeira instância é gratuito para todos — seja a pessoa rica ou pobre. Curiosamente, essa gratuidade universal não é apontada como um problema ou um incentivo à judicialização.

Em contrapartida, na Justiça do Trabalho, a gratuidade para o trabalhador é alvo de intenso debate e, muitas vezes, exige uma rigorosa comprovação de pobreza. Essa disparidade de tratamento revela uma gritante discriminação indireta, onde o acesso à justiça se torna mais difícil justamente para quem busca direitos de natureza alimentar.

Mudando o foco da pergunta

Ao desmentir esses mitos, fica evidente que a alta judicialização trabalhista não é a doença, mas um sintoma febril de um sistema com falhas profundas. A verdadeira causa reside em um tripé de problemas estruturais: uma legislação que permite a rotatividade recorde de empregos; um descumprimento contumaz da lei alimentado por uma fiscalização estatal insuficiente, já que o número de auditores está há tempos aquém do necessário, e alarmantes e evitáveis índices de acidentes de trabalho. Soma-se a isso a inexistência de meios administrativos eficazes para a prevenção e conciliação de conflitos.

Diante disso, em vez de questionar o direito de quem foi lesado, não deveríamos focar em como consertar as verdadeiras causas que geram tantos conflitos?

Alexandre Agra Belmonte é ministro do TST, pós-doutor em Direito Humanos, Saúde e Justiça pela Universidade de Coimbra, doutor em Justiça e Cidadania pela UGF e presidente da Academia Brasileira de Direito do Trabalho

Fonte
Conjur

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