Há 95 anos, bombas caíam sobre São Paulo e arrasavam a cidade

Casas e prédios destruídos, explosões de bombas, soldados armados de metralhadoras, população assustada fugindo pelas ruas, locomotivas arrancadas dos trilhos, tanques de guerra cruzando a cidade e trincheiras abertas nas ruas. Quem contempla as fotografias antigas acredita que são cenas de uma cidade europeia durante a Primeira Guerra Mundial.

As imagens, porém, retratam a cidade de São Paulo parcialmente destruída pelo maior conflito bélico urbano da história do Brasil e da América Latina no século 20.

Apesar da destruição parcial de uma capital de Estado que despontava para o progresso industrial e das centenas de mortes provocadas pelo conflito armado ocorrido poucos anos depois da Primeira Guerra Mundial, a Revolução de 1924 completa 95 anos ainda pouco estudada, com detalhes desconhecidos e que, por isso, acabou entrando para a história como a “revolução esquecida”.

Comparando com outras revoluções, como a Farroupilha, no sul do país, e a Constitucionalista de 1932, que também ocorreu em solo paulista, são poucas as referências históricas e bibliográficas do movimento de 1924 para afastar o então presidente da República, Arthur Bernardes, e substituí-lo por alguém alinhado com as reivindicações das baixas patentes do Exército até a convocação de novas eleições – daí o fato dos revoltosos serem chamados de “tenentistas”.

O número de mortos e feridos, tanto militares como civis, são imprecisos e até as consequências políticas, econômicas e sociais do episódio de 1924 dividem os estudiosos.

Enquanto alguns livros falam em cerca de 500 mortos durante os 23 dias de combate nas ruas de São Paulo, parte deles civis, outros estimam em 800 os óbitos e em pelo menos 5 mil os feridos. Até o termo “revolução” não é consenso e alguns historiadores preferem chamar o episódio de motim ou levante, já que começou com militares rebeldes sem uma estratégia clara e precisa para atingir seus objetivos.

“Em comparação com a Revolução de 1932, ou mesmo a de 1930, a Revolução de 1924 é bem menos conhecida. Isso causa estranheza, porque, em seu curso, os ‘tenentes’ revolucionários ocuparam São Paulo por 23 dias e a cidade foi bombardeada por tiros de canhão, disparados com imperícia e que resultaram em muitas mortes e destruição”, afirma o historiador Boris Fausto, professor livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) e autor de livros como A Revolução de 1930 – historiografia e história (Companhia das Letras), História do Brasil (Edusp) e Getulio Vargas – O Poder e o Sorriso (Companhia das Letras).

“Além disso, as consequências da Revolução de 1924 foram menores do que as de 1930 e 1932. Cabe lembrar que a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, representou o fim da república oligárquica e o levante de São Paulo, em 32, foi um acontecimento em que o Estado mais importante da federação levantou-se em armas contra o poder central”, completa Fausto.

O que todos concordam é que a maior prejudicada foi a população civil, que sofreu, e muito, naquele mês de julho de inverno particularmente rigoroso em São Paulo, com temperaturas em torno dos 5°C, o que piorou ainda mais a situação das pessoas completamente desamparadas.

Pelo menos 1.500 edificações em toda a capital foram destruídas, o comércio foi saqueado, os hospitais não davam conta de tantos feridos, o abastecimento de água e luz foi prejudicado e quem pode fugiu da cidade, inclusive o governador do Estado de São Paulo na época, Carlos de Campos, que se refugiou em um vagão de trem na região da Penha, zona leste, onde instalou o seu governo.

Dos cerca de 700 mil habitantes na época, pelo menos um terço deixou a cidade, principalmente a elite. Aos que ficaram, restou enfrentar um período de guerra sem ao menos saber direito o que estava acontecendo, tamanha a falta de informação.

Principais meios de comunicação da época, os jornais impressos que conseguiam circular – muitos não tinham funcionários para produzi-los – traziam notícias do flagelo diário enfrentado pela população: fios de bondes arrebentados e eletrificados ficavam espalhados pelo chão, assim como os de energia elétrica e telégrafo.

Na Estação da Luz, os trens saíam apinhados de passageiros que fugiam rumo ao interior do Estado.

Em São Carlos (SP), foram montados abrigos públicos para acolher as dezenas de refugiados que chegavam diariamente de São Paulo e não tinham onde ficar, conforme registrado em jornais da época.

As raízes da revolta, liderada pelo general reformado Isidoro Dias Lopes, estavam no movimento tenentista ocorrido dois anos antes, no Rio de Janeiro. Na ocasião, 17 militares e um civil foram mortos por forças oficiais após marcharem pela Avenida Atlântica pedindo a deposição do presidente da República.

O episódio ficou conhecido como Revolta dos 18 do Forte de Copacabana e marcou o início do movimento tenentista, que lutava por questões como melhores salários, valorização dos militares, eleições livres, liberdade de imprensa e diminuição do poder das oligarquias agrárias da República Velha.

Até a data escolhida para o levante em São Paulo era a mesma do massacre de Copacabana: 5 de julho.

O curioso é que o objetivo inicial dos tenentistas passava longe de um conflito armado em São Paulo. A ideia era apenas organizar o movimento rebelde na cidade, que se consolidava como um próspero centro industrial e econômico e possuía uma localização estratégica, já que era um entroncamento importante de diversas ferrovias que interligavam o país.

Além de Isidoro, tiveram papel de destaque no movimento revolucionário os tenentes Juarez Távora, João Cabanas e Eduardo Gomes.

Após ações rápidas para tomar a área urbana e conquistar a adesão de militares nos quartéis locais do Exército e da Força Pública (atual Polícia Militar), o plano dos rebeldes era reunir-se com outras frentes formadas em outros Estados e todos partiriam para o Rio de Janeiro.

Na capital federal dariam um golpe para derrubar o presidente Arthur Bernardes, cujo governo era marcado pelo autoritarismo, instabilidade política (a maior parte do governo foi com o país sob estado de sítio) e sustentado pelos interesses das elites agrárias mineira e paulista, que se revezavam no poder durante o período conhecido como “república do café com leite”.

Os revolucionários não contavam, porém, com a rápida reação de militares legalistas alocados na cidade e reforços de outros Estados enviados rapidamente pelo governo federal. Além disso, não estavam preparados estrategicamente para um conflito bélico de grandes proporções.

“O movimento revolucionário era muito improvisado, não havia uma estratégia clara de combate e ocorreram diversas trapalhadas no decorrer do caminho”, explica a historiadora Ilka Stern Cohen, autora do livro Bombas Sobre São Paulo-A Revolução de 1924 (Editora Unesp).

O resultado foi uma guerra generalizada pelas ruas da capital paulista. Assentados no Campo de Marte, os rebeldes atiravam em direção ao Palácio dos Campos Elíseos, residência do governo estadual. As bombas dos canhões, porém, atingiam alvos civis, como o Lyceu Salesiano, tradicional internato localizado no Largo Coração de Jesus, na região da Luz.

Apesar do estrago, felizmente apenas dois alunos ficaram levemente feridos. Trincheiras eram abertas em ruas da região central e diversos bairros, como Mooca, Perdizes e Brás. O Jardim da Luz transformou-se em uma grande prisão.

Enquanto os revolucionários tentavam assumir o controle de posições estratégicas, como a sede dos telégrafos e quartel dos bombeiros, todos na região central, as forças legalistas cercavam toda a periferia e avançavam pelas ruas e bairros centrais para sufocar as tropas rebeldes.

A desproporção de forças era clara: enquanto o exército revolucionário contava com cerca de sete mil combatentes, as tropas federais do Exército e da Marinha mobilizaram 18 mil homens.

“Nem os bairros mais elegantes, como Campos Elíseos, Higienópolis, Cerqueira César e Santa Ifigênia foram poupados das bombas, embora em menor proporção do que os bairros operários, como Mooca, Brás e Ipiranga”, diz a professora Ilka, apontando para um foto que mostra os estragos em residências na rua Augusta.

“É um erro achar que apenas os bairros pobres foram atingidos. A cidade inteira foi bombardeada”, completa a historiadora, cujo livro foca os efeitos da guerra urbana sobre a população.

“Foi um bombardeio terrificante, igual ao usado pelos alemães contra os belgas na Primeira Guerra Mundial. Trata-se da maior batalha urbana na América Latina”, diz o jornalista e pesquisador Moacir Assunção, autor do livro São Paulo Deve Ser Destruída: A História do Bombardeio à Capital na Revolta de 1924.

Segundo ele, um balanço posterior da prefeitura estimou em US$ 300 milhões os prejuízos à cidade por causa da guerra. Fábricas famosas, como o Cotonifício Crespi, a Companhia Antarctica e os biscoitos Duchen tiveram os prédios destruídos.

“Consta que os coveiros não davam conta de enterrar tantos cadáveres, levando seus familiares a sepultá-los nos quintais de suas próprias casas”, diz Ricardo Peres, professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie.

Vencidos, cerca de três mil tenentes fugiram de São Paulo rumo ao interior e vagaram por meses até chegar ao Paraná onde, em abril de 1925, se juntaram a outros militares rebelados gaúchos liderados por Luis Carlos Prestes. O contingente deu início à Coluna Prestes, que percorreu mais de 25 mil quilômetros a pé por vários Estados do país.

“Meses depois do conflito, o governo estadual lançou um projeto de recuperação das áreas destruídas e se conseguiram recursos para reconstruir a Igreja da Glória, no Cambuci, e outros prédios públicos e particulares afetados”, diz Assunção.

Entidades como a Associação Comercial de São Paulo e o prefeito Firmiano Pinto tiveram papel importante durante todo o conflito, tentando manter uma certa ordem entre a população organizando a venda e distribuição de gêneros de primeira necessidade e produtos como gasolina e carvão.

“O curioso é que depois eles foram repreendidos e ameaçados de processo pelo governo federal, que achava que eles tinham colaborado com os rebeldes, enquanto estavam apenas tentando dar um mínimo de organização ao caos que se instalou na cidade”, diz Ilka Cohen.

O legado do levante de 1924 é visto com ressalvas pelos estudiosos. Para Assunção, o movimento serviu apenas para aprofundar o estado policial e a perseguição política por parte do governo federal, que se estendeu pelos anos seguintes.

“A maior consequência foi a repressão que, a meu ver, iniciou um estado policial no país que ganhou mais força no Estado Novo. O Departamento de Ordem Política e Social (Dops), por exemplo, foi criado em 1924”, diz Assunção. Para a historiadora Ilka Cohen, pouco ficou como legado do movimento de 24.

“Foi um evento marcante na época, mas que acabou se restringindo aos acontecimentos do conflito.”

De concreto, restam alguns resquícios da Revolução de 1924 na cidade de São Paulo. O principal deles é a marca de tiro de canhão na chaminé da antiga usina de energia elétrica no bairro da Luz, que resiste como uma lembrança solitária da guerra urbana que colocou a maior cidade do Brasil de joelhos, há 95 anos.

BBC

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