Indígenas usam tecnologias para manter língua e cultura vivas

Parte das 170 línguas indígenas no Brasil corre o risco de desaparecer

O xokleng é uma língua falada apenas por uma comunidade indígena no Vale do Alto Itajaí, na região central de Santa Catarina, onde vivem mais de 2 mil pessoas. Boa parte das 170 línguas indígenas existentes no Brasil corre o risco de desaparecer. Por isso, desde a década de 1990, o linguista Namblá Gakran tem trabalhado para resgatar e manter vivo o idioma nativo. “Eu não sonhei em ser linguista, mas hoje eu sou”, diz o indígena sobre como se tornou um especialista durante a luta pela preservação da cultura do seu povo.

Gakran leciona em escolas indígenas da região e já formou duas turmas de licenciatura intercultural, para que também possam dar aulas e repassar os conhecimentos. A pandemia de covid-19 impediu a continuidade do curso neste ano. No entanto, o isolamento devido à crise sanitária também abriu a porta para uma pequena iniciativa de difusão da língua nativa.

Whatsapp

Desde o ano passado, a comunidade, que vive em áreas distantes fisicamente, se aproximou por meio de um grupo de Whatsapp onde compartilha seu dia a dia. Até indígenas que estão fora das aldeias, nas cidades, usam o canal para se comunicar com os que ainda vivem no território tradicional. A única diferença dos outros grupos de família e amigos da rede de comunicação é que nesse só é permitido se comunicar em xokleng. “Não se pode falar em português”, afirma Gakran.

Assim, as pessoas com menos conhecimento têm a oportunidade de praticar o idioma, especialmente em texto, com aqueles que têm maior domínio. “As pessoas que falam mais ou menos a língua entram no grupo e ali começam a aprender” explica o professor. Além dos fatos do dia a dia, como uma pescaria ou uma boa caça, o grupo, aos poucos, vai se tornando espaço para compartilhar as histórias tradicionais. “Quando surge uma oportunidade, nós contamos uma história do passado”, diz.

Importância da escrita

Reforçar a escrita do xokleng é um dos trabalhos que Gakran desenvolve ao longo dos últimos anos e considera fundamental para evitar que o idioma se perca. “O que falta é registro dessa língua. Não adianta só falarmos verbalmente, mas é preciso que a comunidade também possa manusear esse material”, defende, ao destacar a importância de publicações no idioma.

Foi justamente esse trabalho de registro que levou Gakran a se tornar doutor em linguística. Ele conta que há mais de 30 anos começou a gravar as histórias da comunidade, contadas pelos anciãos, em parceria com um pesquisador norte-americano. À época, a comunidade vivia um processo de afastamento da língua, impulsionado pela chegada de muitos não indígenas, com a construção da Barragem Norte no Rio Itajaí.

Hoje, ele avalia que o esforço de resgate da língua já apresenta bons resultados. “Antes só tínhamos falantes mais velhos da língua materna. Hoje, temos crianças monolíngues na língua xokleng”, comenta. Agora, ele busca parcerias com entidades ou empresas que ajudem a financiar publicações no idioma nativo. Segundo o professor, até mesmo o material didático para o ensino é escasso. “A gente busca parcerias com empresas e organizações para que possamos fazer um projeto que venha produzir material dessa língua”, ressalta.

Histórias ao redor do fogo

Em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, o cineasta Ariel Ortega trabalha justamente na perspectiva de resgatar a tradição oral do povo guarani mbya, muito mais numeroso e com uma língua falada em vários estados brasileiros. “De manhã, quando a gente acordava, e todos os saberes do dia a dia eram contados ao redor do fogo, tinha que prestar atenção”, lembra sobre uma tradição que perdeu força com a chegada de novas atividades, como as escolas.

Em 2007, Ortega enxergou a oportunidade de fazer as rodas de histórias, com mitos e fatos passados da comunidade, presentes novamente. “Com a chegada da tecnologia, quando a gente teve o acesso às câmeras de filmar, fomos aprendendo que poderíamos usar essas tecnologias para resgatar histórias antigas, mitologias, conversando e registrando essas falas dos mais velhos”, conta.

No início houve desconfiança, e o cineasta precisou convencer aos poucos a comunidade. “No começo, os mais velhos principalmente tinham certo cuidado para não falar muito. Muitos não queriam ser gravados”, lembra. Mas Ortega insistiu na necessidade de que os conhecimentos ancestrais fossem registrados. “Fui explicando muito bem a importância desse registro. Falei que muito dos nossos saberes e conhecimentos foram se perdendo porque a gente não tinha acesso a essas tecnologias”.

Desde então, Ortega já produziu cinco filmes, mesmo com dificuldades, como a falta de recursos. “A gente faz sem grana mesmo”, diz o artista que teve as produções exibidas em diversos festivais no Brasil e no exterior.

Mesmo sendo um defensor do uso da tecnologia, Ortega diz que tenta alertar os mais jovens para os perigos dos novos aparelhos que chegam com força às aldeias. “A tecnologia de celular tem muitas coisas boas. Mas ele tira uma coisa muita sagrada: a conexão com o que é real, com a natureza. Você ir pescar no rio, ver as estrelas à noite. Você não está mais ouvindo os pássaros cantarem. Você para de ir à casa de reza, para de meditar, porque foca horas no Youtube, nas redes sociais”.

Agência Brasil

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