Legítima defesa da honra: O poder simbólico da decisão do STF
‘O Júri é soberano conforme a Constituição Federal Brasileira, mas a dignidade humana também é’
Por Dra. Mariana Serrano e Dra. Amanda Claro
Em 2006 um homem ataca sua ex-mulher a facadas na saída da igreja, em uma cidade próxima a Belo Horizonte. Estava na clássica posição de “inconformado com o término”, “perde a cabeça” e a esfaqueia por estar, a mulher, “tendo um caso com um outro homem”. Não se nega que houve um crime e que quem o cometeu foi o acusado.
Este homem vai ao banco dos réus, perante um júri desta cidade mineira. A urgência de defender a facadas a honra do homem contra a suposta “traição” de sua ex-mulher é exibida pelo advogado de defesa como um direito. O famigerado argumento da “legítima defesa da honra”, pelo qual a imagem como homem naquela cidade tem valor superior ao da vida daquela mulher e por isso ele merece absolvição.
A legítima defesa existe no código penal como instrumento para justificar uma conduta criminosa. Um crime passa a não ser considerado contrário à a lei se cometido diante de uma situação de agressão, em proteção contra ela, para pará-la, impedi-la.
Acontece que a lei não delimita exatamente o que pode ser resguardado pela legítima defesa, deixando espaço para a criação da tese de que a honra também poderia ser defendida legitimamente, pois faria parte de uma pessoa tanto quanto sua vida ou seu corpo.
Historicamente, a legítima defesa da honra se consolidou como tese de defesa para absolver pessoas acusadas de “crimes passionais”, sobretudo quando os casos eram tratados no Tribunal do Júri – onde defender a honra masculina tem apelo pois os julgadores são a própria sociedade, imersa numa cultura machista. Foi nesse apelo que o advogado do agressor apostou.
Mas antes mesmo do acusado ser julgado em Minas, nos idos de 2001, o Supremo Tribunal Federal já havia abolido a utilização deste conceito, engrossando o coro das ativistas pelos direitos das mulheres de que a legítima defesa da honra é uma tese nefasta, que privilegia a reputação masculina em detrimento das tantas mulheres que são diariamente vitimadas pela lógica da posse masculina sobre os seus corpos.
De lá para cá diversos avanços legais em proteção às mulheres foram conquistados, como, por exemplo, a própria Lei Maria da Penha ou mesmo a tipificação do feminicídio, incluído no Código Penal como circunstância qualificadora do homicídio – o que aumenta a pena do crime.
Por que então, em outubro de 2020, o mesmo STF absolveu este homem pelo crime cometido em legítima defesa da honra?
As artimanhas do Código de Processo Penal
Voltemos ao dia do julgamento. Embora abolido o conceito pelo STF, o advogado não foi impedido de utilizá-lo. O júri ouviu estes argumentos. Não é possível desescutar.
Ao fim da sessão de julgamento, depois de apresentados argumentos de todas as partes, ao júri foi perguntado se o crime aconteceu. Sim, responderam. Depois perguntaram se foi o acusado quem o cometeu. Sim, também confirmaram.
Seguindo a ordem legal, confirmada a existência do crime e sua autoria, é feita uma simples pergunta: o réu é culpado?
Não, eles disseram.
Nada mais foi perguntado. O acusado é absolvido, o julgamento se encerra. Como isso pode acontecer?
Veja, era um júri, formado por pessoas leigas, representantes da sociedade que foi atingida coletivamente pelo crime cometido. Essas pessoas são obrigadas a responder perguntas objetivas para chegar ao resultado do julgamento, mas ao contrário de um juiz, não precisam justificar sua resposta.
O agressor foi absolvido quando o júri respondeu se, apesar de confirmada a existência e a autoria do crime, ele seria culpado de tê-lo cometido. Esta é uma valoração subjetiva. É o chamado “quesito absolutório genérico”.
E contra essa resposta, acerca da culpa do acusado, de fato não cabe recurso. Por sua natureza subjetiva, seria inviável enfrentá-la com questões objetivas, como as provas. A sociedade, por meio do júri da pequena cidade mineira que lhe dá voz, não o considera culpado. Foi esse o motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal absolveu o homem que esfaqueou a ex-mulher – por uma tecnicalidade do Código de Processo Penal.
Mas será mesmo que este é um julgamento apenas técnico?
Antes de tudo, não se leia “tecnicalidade” com algo negativo. Faz parte da essência fundamental do Direito a construção de uma linguagem técnica capaz de ordenar a realidade no sentido de uma finalidade social. Aqui, a finalidade é garantir que o Júri, expressão do conjunto da sociedade, se manifeste de maneira soberana e possa expressar um desejo íntimo sem a necessidade de justificar-se pela linguagem jurídica que não domina. É uma ferramenta de inclusão do povo em uma linguagem que se compreende excludente enquanto rege a todos nós. A soberania do Júri é importantíssima garantia constitucional.
No entanto, a problemática não reside na simples expressão da vontade soberana no Júri, como fizeram crer os votos vencedores na Suprema Corte brasileira. Mas sim em se considerar válida qualquer expressão subjetiva de um conjunto de pessoas, sobretudo quando submetidas a uma tese de defesa ilegal. Todas sabemos que a legítima defesa da honra fez parte deste julgamento.
Faltou aos nobres Ministros a compreensão de que, embora nunca saibamos com certeza os motivos de foro íntimo que levaram cada jurado a inocentar o acusado, estamos inseridas em uma sociedade machista que reduz os corpos e vidas de mulheres a uma categoria sub-humana, desvalorizada e disponível.
A realidade concreta de nossos corpos e nossas vidas vale menos do que a honra impalpável de um homem.
Corpos de mulheres não geram empatia em um júri, que reserva sua compreensão a um homem que não soube lidar com as frustrações da vida. É incômoda a realidade de que o ciúmes sentido por aquele ex-marido cause mais empatia a um júri do que a violência sofrida por aquela mulher, que estava apenas seguindo em frente com a sua vida.
O STF não é só um Tribunal técnico – ou, pelo menos quando convém, ele exerce a prerrogativa de não o ser. A mudança de posicionamento do Tribunal sobre a possibilidade de prisão sem sentença penal transitada em julgado é um grande exemplo.
Somos absolutamente favoráveis ao posicionamento da Corte na ADC 54, pela inconstitucionalidade da prisão anterior ao trânsito em julgado da sentença condenatória. Mas a história demonstra que o STF tem força para promover interpretações constitucionais mais ou menos amplas de acordo com interesses e valores sociais, vide o julgamento do Habeas Corpus do ex-presidente Lula, diametralmente oposto ao da ADC 54.
Acreditar na neutralidade do órgão e, mais ainda, na neutralidade da Constituição Federal, não é só ingenuidade, mas uma má interpretação da Constituição Cidadã, que é, inclusive, bem marcada pelos fortes valores de defesa dos Direitos Humanos.
Assim, não podemos deixar de questionar: é válido o julgamento de um júri que foi submetido a uma tese ilegal para formar seu convencimento? É válida a condução de um processo que desumaniza a mulher, colocando nesta a responsabilidade pelo crime de que foi vítima?
O Júri é soberano conforme a Constituição Federal Brasileira, mas a dignidade humana também é. Se o júri é composto da própria população, que está inexoravelmente sujeita ao machismo estrutural, é permitido que seja apresentada uma tese de defesa que revitimiza e humilha as mulheres, como forma de convencimento para absolvição de seus agressores?
Não somos culpadas dos crimes de que somos vítimas
A honra masculina não é superior à vida de uma mulher. As mulheres não são culpadas pelas agressões de que são vítimas, não são provocadoras de seus próprios feminicídios.
É contraditório, para não dizer revoltante, que, no mesmo ordenamento jurídico em que é criminalizado o feminicídio, seja permitido levar a júri arguições da legítima defesa da honra. O sistema jurídico é uno e indivisível e não admite a existência de teses contraditórias, muito menos as que rifem as vidas de mulheres.
A defesa da vida da vítima – e sua repercussão sobre a vida de todas as mulheres no Brasil – também é elemento essencial a ser considerado para anular o veredicto do Júri. Lembramos, o Júri é soberano, o que não significa um passe livre para arguições que reforcem as mazelas das nossas estruturas sociais.
O Direito é complexo porque é espaço de disputa de poder e narrativa. Desta vez a vida das mulheres perdeu.
Dra. Mariana Serrano – Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP. Coordenadora do Núcleo de Diversidade e Inclusão no Trabalho da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP. Membra da Comissão de Direito Sindical da OAB/SP, além de Co-fundadora da Rede Feminista de Juristas e do Projeto Trabalho e Assédio. Especialista em Direito Sindical e Coletivo do Trabalho, além da defesa de mulheres e pessoas LGBTQIA+ no Direito de Família, Sucessório e Criminal.
Dra. Amanda Claro – Mestre em International Business and Management pela University of Westminster, em Londres. Graduada em Direito pela USP. Co-fundadora da Rede Feminista de Juristas. Atuação especializada em gestão estratégica, gestão de recursos humanos e processos de restruturação com foco em pessoas.